A AMBIVALÊNCIA DA RELIGIÃO [por Vinicius dos S. Xavier]

1. INTRODUÇÃO

Marx, na Introdução a crítica da filosofia do direito de Hegel, diz que “a crítica da religião é a premissa de toda crítica” (MARX, 2002b:85).

Propomos, então, uma reflexão sobre o duplo caráter da religião: seu caráter alienante, naquilo que Marx chamará de “Autoalienação humana” (MARX, 2002a:45); e seu poder ideológico, sob o qual, podemos dizer, a religião “(...) eleva o indivíduo sem libertá-lo de sua subordinação efetiva” (MARCUSE, 1997:103). Não obstante, a religião, além desse duplo caráter ‘ideológico-alienante’, pode, em via de dependência do momento histórico ao qual se situa, engendrar uma ruptura com a estrutura dominante. Assim, segundo Engels, pode agir “(...) como uma forma cultural, sujeita a transformações segundo o período histórico (...)” (LÖWY, 1991:12-13). Pierucci (1994:29) simplifica essa fórmula dizendo: “Religião para dominar, impor, religião para discordar, dissentir”.

Dentro dessa sociedade a religião tem significativo papel social. Ela, no seu movimento histórico, portou-se de variadas formas dependendo do momento histórico-político em que se encontrava. Peter Berger faz uma consideração a esse respeito: “(...) a religião aparece na história quer como força que sustenta, quer como força que abala o mundo” (BERGER, 1985:112). Também Otto Maduro (1983), em sua obra Religião e luta de classes, mostra como a religião sendo um campo social semi-autônomo pode servir como base para intervenções na sociedade de classes. Maduro mostra que as classes sociais perpassam toda a dinâmica do campo religioso e, por isso mesmo, a religião pode se valer de seus mecanismos para atuar na sociedade.

Para tanto, podemos dizer que existem dois movimentos dialéticos que a envolvem: o primeiro que relaciona religião a si própria: uma heterogeneidade interna, em alguns pontos antagonismos, como, por exemplo, a Teologia da Libertação que, segundo Löwy, “para os partidários da ordem estabelecida – tanto social quanto clerical – trata-se de um desafio prático ao seu poder” (LÖWY, 1991:25); e o outro, seria uma relação, contraditória, da religião com a sociedade como um todo.

Nessas relações dialéticas que envolvem a religião, observamos aquilo que Michael Löwy (1991:12) chamará de “(...) caráter contraditório do fenômeno religioso: à vezes, legitimando a sociedade existente, às vezes, protestando contra ela”, ou seja, como há uma relação com a sociedade, este movimento antagônico que existe na instituição, depende do momento e das condições materiais e históricas em que se situa. As contradições do sistema capitalista e a ação dos próprios religiosos transformam o campo religioso também em campo de protesto contra a dominação social, seja ele simbólico, seja concreto e ativo: “(...) a religião não é uma força conservadora nem uma força revolucionária: ela pode ser ora uma ora outra e pode inclusive ser as duas ao mesmo tempo, conforme os grupos sociais que coexistem dentro dela” (LESBAUPIN, 2003:30).

Com isso vemos que há uma intersecção nesse duplo movimento dialético: as condições materiais e históricas condicionam os movimentos religiosos a se portarem de maneiras peculiares perante as situações existentes e, em contrapartida, pelo seu caráter ideológico-alienante, a religião também condiciona, contesta ou afirma o momento histórico, as condições geradas por este e suas mudanças e transformações.

A religião, em suas formas históricas, porém, teve muito mais o caráter alienante, já que é intrínseca a ela a alienação do homem em relação a sua própria essência e, além disso, este mesmo homem necessita de uma resposta para as formas e contradições com a qual se depara e para as quais não tem resposta. Assim, “(...) o ser humano depara-se com o imperativo de construir um mundo humano, mas enfrenta a grande dificuldade de manter este mundo funcionando satisfatoriamente” (TEIXEIRA, 2003:226). Para a manutenção desse nomos, para dar plausibilidade à essa construção na qual o homem faz, projeta-se, mas não se reconhece enquanto tal, é necessária uma explicação desse processo, mesmo que seja pela inversão dos sentidos reais que dele se origina. Assim, Marx afirma que “a religião é a autoconsciência e o autosentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu” (MARX, 2002b:85).

Com esse caráter dualista das formas religiosas, aderindo ou refutam tal ideologia que, assim, cria ou, ao menos, tenta ser um poder hegemônico na sociedade. Há relação de forças com outras ideologias, nas quais a ideologia a qual a religião adere, depende de uma amplitude de situações: há uma dependência da disposição moral e ética do clero, como, podemos citar, o caso da Teologia da Libertação na América Latina (LÖWY,1991); das relações que se mantém com a comunidade ao redor; qual é, majoritariamente, a posição social desse público; como estão sendo recebidas e absorvidas as ideologias dominantes e etc. Vemos assim, pois, que “a Igreja faz parte da sociedade e sofre a influência de ideologias exteriores” (LESBAUPIN, 2003:25).

2. A RELIGIÃO ENQUANTO ALIENAÇÃO

Numa perspectiva dialética, nos valeremos das considerações de Peter Berger (1985) sobre o papel da religião no processo de socialização. Partiremos do ponto em que o homem se aliena do processo que ele mesmo gera e, assim, também é gerado, buscando um sentido plausível e legítimo para a própria vida: “(...) a alienação é o processo pela qual a relação dialética entre o individuo e o seu mundo é perdida para a consciência. O individuo ‘esquece’ que este mundo foi e continua a ser co-produzido por ele (...) a consciência alienada é uma consciência que não é dialética” (BERGER, 1985:97).

Ainda segundo Berger (1985, p.55), a religião serve de ponto de apoio para a alienação: “a religião serve, assim, para manter a realidade daquele mundo socialmente construído no qual os homens existem nas suas vidas cotidianas”. Essa alienação do homem a respeito de si mesmo e do mundo por ele criado, por vezes, nos casos onde o homem não consegue se enxergar enquanto criador, se faz necessário, pois: “essa alienação tem poder sobre os homens principalmente porque ela os protege dos terrores da anomia” (BERGER, 1985:103). Ou seja, o homem se vê numa situação em que não há mais como recorrer à outra instância, já que “em sua luta pela existência os homens necessitam do esforço do conhecimento, da procura da verdade, porque não encontram revelado de imediato o que é bom, justo e benéfico para eles” (MARCUSE, 1997:89).

Entretanto, esse processo pelo qual o homem se projeta para fora de si num correspondente alheio, alienado, faz com que as contradições reais sejam esquecidas ou enquadradas numa perspectiva que não a real. Segundo Marcuse, “(...) as relações existenciais antagônicas devem ser enquadradas e apaziguadas” (MARCUSE, 1997:96).

Berger (1985, p.16) relatou que: “É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano. É através da objetivação que a sociedade se torna uma realidade sui generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade”, ou seja, através desse processo dialético que o homem faz, condicionado, e é feito através de sua própria atividade enquanto práxis humana. O indivíduo é capaz de descobrir um fenômeno através da práxis, “não é capaz de descobrir por introspecção o sentido de um fenômeno social” (BERGER, 1985:24), ou seja, da sua própria relação ativa com o mundo exterior, criando e modificando, assim, o mundo externo e a si próprio. Nesse processo, o homem interioriza aquilo que antes exteriorizou e, este, objetivou-se, formando-se, assim, a si próprio em um processo dinâmico e contraditório. Nisso, vemos que há uma luta constante entre o ser e o objeto, no qual, a cada vez mais que o homem modifica esse objeto através de sua atividade ‘exteriorizante’, ele também se modifica no processo de interiorização e, assim, adquire o conhecimento de si e do mundo externo: “a interiorização é antes a reabsorção na consciência do mundo objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo vêm a determinar as estruturas subjetivas da própria consciência. Ou seja, a sociedade funciona agora como a ação formativa da consciência individual” (BERGER, 1985:28).

Por isso existe a necessidade do homem conhecer a si como elemento ativo e construtor do processo histórico, numa relação dialética em que ele se projeta para o mundo, este mundo objetiva-se (adquire, de certa forma, um status ontológico ‘além’ do homem) e, ao interiorizar esse mundo projetado e objetivado, é modificado por ele: “o homem é um processo, precisamente, o processo de seus próprios atos” (GRAMSCI, 1987:38). Ou seja, “a sociedade humana é um fenômeno dialético por ser um produto humano, e nada mais que um produto humano, que, no entanto, retroage continuamente sobre o seu produtor” (BERGER, 1985:15). Eis a necessidade de o homem reconhecer-se enquanto práxis ou alienar-se (num processo ‘consciente-inconsciente’) para que não se perca o sentido da vida.

O problema está exatamente no processo, “o mal (a objetivação da sociedade) vem só quando ele as concebe, como o homem comum, como entidades existentes em si mesmas e por si mesmas, desvinculadas da atividade e produção humanas” (BERGER, 1985:21), pois, no meio dele, o homem, pode-se dizer, se perde, ou perde-se para a própria consciência, ‘quebrando’ o processo da práxis e, assim, alienando-se. Segundo Marx, “essa concepção é de fato religiosa, ela supõe que o homem religioso é o homem primitivo do qual parte toda a história, e ela substitui, na sua imaginação, a produção real dos meios de vida e da própria vida por uma produção religiosa de coisas imaginárias” (MARX & ENGELS, 1998:39).

Na tentativa de se ‘resgatar’ desse processo, o homem cria algo além dele para dar novamente coesão e sentido ao processo no qual se perdeu, pois, não consegue mais enxergar que as relações que criaram a religião são relações materiais de existência, ou seja, os homens constroem as idéias a partir de sua práxis, de sua relação, sua distinção antagônica com a natureza e não o inverso (MARX & ENGELS, 1998:39).

É nesse âmbito que a religião adentra como força catalisadora. Não obstante, essa objetivação dos produtos construídos pelo homem, tem um ‘elo’ frágil de ligação, pois, sem embargo, abarca toda a história da humanidade enquanto tal. Por isso a necessidade de uma ‘explicação’ mais consistente e que dê ao homem mais segurança contra as contingências da vida que tanto o atemoriza. Esse processo, pois, essa projeção do homem para o mundo, como criador e criatura dele, é frágil. Berger nos traz duas elucidações:

(...) [entendemos que] os sentidos da ordem humanamente construída sejam projetados no universo como tal. É fácil ver como essa projeção tende a estabilizar as tênues construções nômicas (...), em todo caso, quando o nomos aparece como expressão óbvia da ‘natureza das coisas’ entendido cosmologicamente ou antropologicamente, dá-se-lhe uma estabilidade que deriva de fontes mais poderosas do que os esforços históricos dos seres humanos (BERGER, 1985:38).

E acrescenta:

Pode-se dizer, portanto, que a religião desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano da construção do mundo. A religião representa o ponto máximo da auto-exteriorização do homem pela infusão dos seus próprios sentidos sobre a realidade. A religião supõe que a ordem humana é projetada na totalidade do ser. Ou por outra, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo (BERGER, 1985:41).

São exatamente essas construções alienantes do homem que enraízam com maior força a sua existência, não deixando o homem cair em uma anomia, ou seja, não ser um objeto marginalizado desse ‘logos’ que ele mesmo cria, mas não o sabe, ou, segundo Herbert Marcuse (1997:153), “a constituição do mundo ocorre às costas dos indivíduos, embora seja obra sua”. Ou ainda, podemos dizer que “pelo contrário, a apreensão alienada do mundo sociocultural serve para manter suas estruturas nômicas particularmente eficazes, justamente porque aparentemente as imuniza contra as inumeráveis contingências da tarefa humana de construção do mundo” (BERGER, 1985:99). No entanto, “a religião tem sido um dos mais eficientes baluartes contra a anomia ao longo da história humana” (BERGER, 1985:99), pois, dando um sentido superior e anterior à existência humana, o homem enquanto tal se vê livre da responsabilidade de seus próprios atos. “A religião tem sido uma força de nomização tão poderosa, exatamente porque também tem sido uma poderosa, talvez a mais poderosa, força de alienação” (BERGER, 1985:99). Dando, assim, certo tipo de coesão e sentido à vida, “(...) os homens subordinam sua existência a um fim em seu exterior” (MARCUSE, 1997:90).

Um traço decisivo da religião, utilizando as palavras de Marcuse e uma correlação de sua interpretação da cultura afirmativa, é “a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si ‘a partir do interior’, sem transformar aquela realidade de fato” (MARCUSE, 1997:96).

Os homens necessitam de algo que os ‘regule’, que sejam subalternos a uma entidade superior e anterior a sua própria existência, pois, além disso, ela mantém a realidade objetivada, enquanto realidade ‘não-dialética’, como tendo sentido e ‘regra’ a qual o homem segue tacitamente e, ainda, como ele a aceita sem maiores problemas. Então podemos dizer que “o papel histórico da religião nas tarefas humanas de construção e manutenção do mundo é em grande parte devido ao poder de alienação inerente à religião (...), a religião tende a alienar o humano de si mesmo” (BERGER, 1985:102), e ainda, ou seja, dizemos de uma “propensão que a religião tem de se tornar alienante” (BERGER, 1985:99), pois, a religião, enquanto produtora de tal felicidade que se faz por um instante na infelicidade, “eterniza o efêmero” (MARCUSE, 1997:117).

As instituições humanas objetivadas através desse processo dialético devem ser legitimadas , ou seja, segundo Berger, “todo ‘saber’ socialmente objetivado é legitimante”, e acrescenta, “a legitimação começa com declarações quanto à ‘coisa real e genuína’” (BERGER, 1985:43). Assim, podemos dizer, as primeiras legitimações estão intrínsecas no senso comum: são aquelas “que a legitimação assume a forma de provérbios, máximas morais e sabedoria tradicional” (BERGER, 1985:44), ou seja, estas legitimações servem para manter a ordem social, a condição nômica de tal e tal sociedade e, assim, estas legitimações, podemos dizer, dão ‘sentido’ para as ‘coisas’: “a legitimação efetiva importa no estabelecimento de uma simetria entre as definições objetiva e subjetiva da realidade”, ou seja, servem “como manutenção da realidade, tanto ao nível objetivo como ao nível subjetivo” (BERGER, 1985:45), nesse caso, “estas diversas formas de legitimação e controle social destinam-se na prática ‘a convencer o povo que aquilo que lhe é dito não é só a coisa sensata, mas também a única certa e salutar’” (TEIXEIRA, 2003:228).

No caso da religião, as legitimações assumem formas ‘supremas’, pois, em variados casos, elas se fazem incontestáveis, então, “a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação (...), a religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas” (BERGER, 1985:45). Os homens se alienam do processo e os atribuem a um ‘outro’, que não ele próprio, a fim de justificar aquilo que não compreendem ou, por outro lado, não conseguem compreender por falta de consciência histórica da própria construção de sua historicidade, ou ainda, por outra, “(...) o conhecimento da verdade sobre a existência humana já não é assimilada na práxis” (MARCUSE, 1997:91).

Porém, essas legitimações religiosas são poderosas, pois não atribuem, os homens, suas construções através do processo dialético, a um ‘outro’ qualquer: esse ‘outro’ tem um status autônomo, sagrado, cósmico e, além disso, anterior e superior ao próprio homem. Segundo Marx: “o homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade” (MARX, 2002b:85). Portanto, pode-se dizer, essas legitimações servem, em suma, para a manutenção da realidade incompreendida pelo próprio homem.

3. A RELIGIÃO ENQUANTO IDEOLOGIA

Então, temos aqui a religião, agora, como ideologia de justificação da realidade vigente e, quando a legitimação se torna ideológica e é apropriada como ideologia por uma classe – a classe dominante – ela se torna “o reflexo ilusório, fantástico, das relações de dominação de classe, de exploração: as idéias religiosas exprimem, justificam e escondem a realidade da dominação. A religião é ideologia, falsa consciência” (LESBAUPIN, 2003:16).

Para Marx (1998:50) a classe dominante da sociedade é obrigada a expressar suas idéias e a dominar a partir delas, ou seja, ‘universalizá-las’ para que estas tomem toda a sociedade com um status de única verdade plausível. Ou seja, há uma classe que se apodera dos meios de produção e controla tanto a vida material como a espiritual das outras classes subordinadas a ela. Assim, Marx afirma que “os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; (...) a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante” (MARX & ENGELS, 1998:48).

Contudo, devemos considerar o processo que leva os homens a uma ‘consciência invertida’ da realidade e sua necessidade de afirmação perante o mundo que lhe é estranho.

O processo de divisão do trabalho e a alienação do homem em relação à natureza, na qual o homem não mais se reconhece e, como já o era, permanece estranho e alheio ao processo vital de sua própria existência, pois, não vê que “(...) são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX & ENGELS, 1998:19-20), e ainda, podemos dizer, “a consciência é portanto, de início, um produto social e o será enquanto existirem homens” (MARX & ENGELS, 1998:25).

Porém, na ‘Era do Capital’, os indivíduos foram cada vez mais afastados do mundo dos homens, cada vez mais jogados às margens de seu próprio mundo, “(...) cada vez mais submetidos a uma força que lhes é estranha – opressão essa que eles consideravam como uma trapaça do chamado Espírito Universal –, uma força que se foi tornando cada vez mais maciça e se revela, em última instância, como o mercado mundial” (MARX & ENGELS, 1998:34).

Marx deixa claro que o processo de divisão social do trabalho e todos os processos conseqüentes, são que geram a necessidade do homem de se reconhecer, pois, pelo contrário, os homens cada vez mais se afastam do ‘homem universal’, daquele homem ao qual não era submetido à alienação do próprio mundo e se reconhecia enquanto práxis.

Com isso, o homem necessita de algo que regule sua existência, que explique e dê plausibilidade ao mundo e a vida. Porém, ele próprio não vê que é ele mesmo que cria ‘falsas’ representações para novamente dar sentido ao mundo: “A produção das idéias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real” (MARX & ENGELS, 1998:18). E, ainda segundo Marx,

(...) o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo (...), sua sanção moral (...), sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece da realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual (MARX, 2002b:85).

Como isso, fica claro a necessidade do homem de um reconhecimento real do processo de sua própria criação, pois, para que seja retomada a verdadeira essência humana.

Porém, enquanto ideologia que aliena o homem de seu processo vital e no local coloca outro ‘invertido’, a religião é uma espécie de ‘válvula de escape’ para o homem de sua situação miserável perante o mundo: ao mesmo tempo em que aliena e manipula o homem, satisfaz e reaviva as forças perdidas para a sociedade de classes: “a miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real, e de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo” (MARX, 2002b:85-86).

Nisso fica claro o caráter dual da religião: por um lado, consolar o homem de uma miséria material, viva e real; e, por outro, alienar o homem do seu processo real de vida e conformá-lo neste estado. É neste sentido que a religião se transforma num ‘coração de um mundo sem coração’, transforma-se em um consolo efêmero. Segundo Marcuse, em um “mundo de infelicidade, a felicidade sempre precisa ser um consolo: o consolo de instante belo na seqüência interminável da infelicidade” (MARCUSE, 1997:117).

Nesse processo ideológico da legitimação se mantém o status quo e a experiência vivificada do sistema capitalista, alienando e condicionando os ‘subalternos’ para que estes não contestem as ‘verdades últimas’ da realidade legitimada. Nisso, podemos dizer que, segundo Gramsci, “as ideologias ‘necessárias a determinadas estruturas’ são também ‘desejadas’ pelos homens, isto é, portadoras de ‘validade psicológica’ e capazes de organizar as massas humanas” (DÓRIA, 1978:146). Assim, “(...) fica também patente que direção e domínio – política e ideologia – caminham juntos” (DÓRIA, 1978:153).

A classe dominante da sociedade adere à religião como ideologia de massas: “ela deixa o individuo persistir como pessoa enquanto não perturba o processo de trabalho, deixando as leis imanentes desse processo de trabalho, as forças econômicas, cuidarem da integração social dos homens” (MARCUSE, 1997:122).

Por isso, para se manter as condições de ‘passividade’ das massas exploradas, a classe que domina a sociedade se utiliza de variados meios ideológicos de manipulação. Entre esses meios, a religião é um dos mais importantes, pois, além de agregar quase que a totalidade da sociedade, dá sentido e coesão a vida em uma explicação, como já foi dito, alienante e inversa da realidade, pois, como diz Marx, “se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico (...)” (MARX & ENGELS, 1998:19). Isso é decorrente das construções do próprio homem enquanto ‘práxis alienada’: ele mesmo cria as condições para que esses tipos de inversões ocorram e sejam plausíveis em sua forma e expressão. A classe dominante da sociedade expressa suas idéias e domina a partir da manipulação das massas por esta mesma ideologia, universalizando-a para que estas tomem toda a sociedade com um status de única verdade plausível.

Como construção da realidade, mesmo que inversa, essa ideologia e suas formas de representação e disseminação não se desvinculam do processo humano de criação das realidades e verdades válidas. Marx, assim, diz que “a moral, a religião (...) e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia” (MARX & ENGELS, 1998:19). Ou seja, não são, nem estão ‘além’ do homem e de sua práxis, elas são produtos das relações humanas, contraditórias, em relação à natureza e aos próprios homens.

Assim, parafraseando Herbert Marcuse, “(...) com a estabilização da dominação burguesa elas [a religião ou as religiões] se colocam crescentemente a serviço do controle das massas insatisfeitas e da mera auto-exaltação legitimadora: elas ocultam a atrofia corporal e psíquica do individuo” (MARCUSE, 1997:99).

Porém, como já dissemos anteriormente, a religião têm certa autonomia perante essa ideologia, pois, além de ser influenciada por outras ideologias, mesmo que estas sejam não-hegemônicas, os momentos históricos são contraditórios e propícios à criação de novas formas de relações entre os homens e seu meio. Assim, Marx e Engels vêem na religião tanto um lado que é propício de ser alienante a serviço de uma classe especifica – a dominante –, e, por outro, ela pode ter uma postura diversa dependendo das condições reais. Então, ao longo das análises de Marx e Engels pela história, em relação à religião e suas formas, por ora vê-se “como ideologia da classe dominante” e, também, “(...) são encaradas como ideologias ou teorias de classes ‘ascendentes’” (DESROCHE, 1968:79).

Nisso, vemos um potencial de ruptura do processo de dominação de classes e, não obstante, uma formulação, a partir da religião, de uma nova forma de relacionar-se com o mundo. Ainda assim, é uma situação que não rompeu em definitivo com a alienação e os homens ainda não se reconhecem enquanto práxis nesse processo. Marx, diz que nesse contexto histórico que vivemos – o capitalismo – é necessário que se abandone as ilusões, porém, é uma situação que exige ilusões, ou seja, é “(...) a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 2002b:86).

4. A RELIGIÃO COMO CONTESTAÇÃO DA SOCIEDADE

Não devemos nos esquecer que religião e alienação não são sinônimas, pois, a religião, apesar de sua propensão de se tornar alienante, não é apenas objeto de alienação humana, porque em momentos histórico-políticos específicos ela pode, pelo contrário, ter suas forças voltadas à desalienação:

Seria, pois, um grave engano encarar as formações religiosas como sendo simplesmente resultados mecânicos da atividade que as produziu, ou seja, com ‘reflexos’ inertes de sua base social. Pelo contrário, a formação religiosa é capaz de agir sobre a base e modificá-la. Esse fato, todavia, tem uma conseqüência curiosa, a saber, a possibilidade de uma desalienação religiosamente legitimada (...), embora a religião tenha uma tendência intrínseca (...) para legitimar a alienação, há também a possibilidade de que a desalienação possa ser legitimada pela religião em casos históricos específicos (BERGER, 1985:108).

Assim, vemos que a classe dominante de tal sociedade pode, por vezes, perder seu poder de manipulação da religião aos seus próprios interesses, e é nesse instante que a religião perde seu status de manutenção do mundo vigente e busca uma nova alternativa.

(...) do mesmo modo que a religião poderia encobrir as relações sociais reais, poderia também converter-se numa instância de protesto simbólico contra o establishment. Por conseguinte, a análise da prática concreta das religiões e dos religiosos, em diferentes momentos histórico-políticos, faz despontar compromissos pela transformação social ao lado da cumplicidade no suporte de formas de dominação (BITTENCOURT FILHO, 2003:27).

Otto Maduro, diz que

(...) como as classes dominantes têm o interesse e os meios materiais para colocar a religião a serviço da ampliação, aprofundamento e consolidação do domínio exercido por essas mesmas classes (...), sob determinadas condições sociais, e dada uma certa situação interna do campo religioso, certas práticas, certos discursos e instituições religiosas desempenham – em uma sociedade de classes – papel favorável ao desenvolvimento autônomo de certas classes subalternas e ao fortalecimento de suas alianças contra a dominação (MADURO, 1983:176).

O próprio desenvolvimento do capitalismo produz diferentes efeitos sobre situações diversas. Assim, “(...) a religião se aproxima em muito das ideologias profanas como espaço em que os homens tomam consciência de sua prática e se tornam coesos para a ação” (DÓRIA, 1978:157).

Mesmo assim, não é a religião por si só que cria essa consciência arrebatadora nos homens. São as próprias relações dos homens na sociedade de classes, nesta, inclusa a religião, que faz os homens adquirirem “consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, 1968:3). Assim, podemos acrescentar a essa interpretação de Gramsci que os homens adquirem essa consciência também no campo religioso. Ou seja, a partir da relação com a sociedade e suas contradições, as classes criam para si aquilo que Gramsci chamará de intelectual orgânico: “(...) os intelectuais ‘orgânicos’, que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo, são, no mais das vezes, ‘especializações’ de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que cada nova classe deu à luz” (GRAMSCI, 1968:4). Isso pode ocorrer também no campo religioso, pois, como não se desvincula da sociedade, esta pode dar, variando os casos, maior ou menor consistência, e mesmo consciência, a esse novo intelectual que cada nova classe cria.

A insatisfação que levam pessoas à busca de apoio na religião, muitas das vezes, é causa de algo externo a religião e ao problema que supostamente ela resolve. Novamente Maduro dá o pressuposto teórico para tal análise: “sob certas condições, uma religião pode funcionar como canal de organização autônoma das classes subalternas, sobretudo se existe apenas um sistema religioso comum às classes subalternas, diverso e oposto ao sistema religioso (ou aos sistemas religiosos) das classes dominantes ” (MADURO, 1983:178).

Assim, concluímos que fica clara a postura da religião perante a sociedade: “embora muitas vezes a religião exerça uma influência de justificação da ordem humana, concedendo-lhe uma solidez fundada em razões meta-históricas, ela pode igualmente, e em nome da mesma transcendência, exercer um papel diverso” (TEIXEIRA, 2003:232).

*Este projeto faz parte da pesquisa que está sendo realizada através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC Mackenzie) - Por: Vinicius S. Xavier, aluno de graduação em Filosofia pela mesma Universidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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