DESGRAÇA NACIONAL
Demétrio Sena - Magé
Tive muita comida na primeira infância e muita fome na segunda. Fui criança infeliz com muita comida, boa roupa e brinquedos, porque a casa era repressora. Meu pai era mau. Havia ditadura, controle de sentimentos, vontades, vocações... ameaças e surras, quando as ameaças não bastavam. Estávamos (meus irmãos e eu) fadados a crescer sem afeto, arte, poesia, liberdades pessoais, direito a ideologia própria, pensamento fora da caixa e religião minoritária ou não religião.
Na segunda infância, depois de nossa mãe nos livrar do "tudo" que o patriarca nos dava, fui criança sofrida e cheguei a sentir fome... isso não foi nada bom. Mas tive a riqueza das escolhas. Da liberdade para pensar e sentir por mim mesmo, gostar de música, poesia e de outras artes com temas livres, diversificados, opostos entre si... para não gostar do que vivia e dizer isso energicamente à gestora da casa, sem que ela me pusesse no pau de arara... buscar os meus caminhos, exercer as minhas vontades, não ter a senha obrigatória da fé engessada e da profissão obrigatória... livre da proibição de não ter credo e da obrigação de me ajustar às uniformidades ideológica, étnica e social... principalmente livre de qualquer sombra da ditadura.
Hoje, o Brasil é uma casa triste que tem a fome de mãos dadas com a ditadura. Todas as formas de repressão, ignorância, truculência, perseguição religiosa, exclusão social, racismo e veto às artes e literaturas não enquadradas. Não dá nem pra escolher a fome ou a liberdade/a liberdade ou a fome. A massa, o povo, mesmo, tem que aceitar tanto a fome quanto a opressão, por meio da ignorância conduzida ou imposta.
A estas alturas o povo nem tem que optar, porque seus patrões, lideres religiosos e outros gurus da má fé, que se refestelam na riqueza que a miséria lhes rende, convenceram o povo a aceitar voluntariamente a própria desgraça e todas as formas de cerceamento em diversos níveis e contextos... e a bendizer o próprio infortúnio, louvar os culpados oficiais e oficiosos e a matar e morrer, de verde e amarelo, por esses canalhas e seus associados e defensores próximos ou remotos.