ESPONTANEIDADE PROIBIDA
Demétrio Sena - Magé
Certa vez, ainda muito jovem, quando vendia livros de porta em porta, fui recebido por uma linda mulher de meia idade, nua. Era um apartamento na cobertura de um prédio na Zona Sul do Rio. Naquele tempo se podia entrar nos prédios para entregar encomendas, vender livros ou visitar, sem ser detalhadamente anunciado. Ela foi levemente surpreendida, mas não baqueou. Gentil e respeitosamente me convidou a entrar. Ao ver minha hesitação, pôs as mãos na cintura e disse firmemente: "Vem cá; ninguém aqui vai agarrar ninguém; certo?. Entrei, demonstrei meu catálogo, vendi uma enciclopédia, tomei água e saí.
Até hoje não sei como aquela mulher desconhecida conseguiu identificar em mim um homem normal capaz de manter a compostura e não confundi-la com uma guloseima exposta. Era uma dama distinta e não queria uma transa. Teria demonstrado, se quisesse. E para mim, a nudez pura e simplesmente não era e nunca foi um convite, uma cantada nem uma insinuação. Apenas um comportamento espontâneo. Aquele dia foi a primeira das poucas vezes em minha vida, que tive contato com uma pessoa como eu, que não me porto assim cotidianamente, porque preciso respeitar o respeito - ou medo - instituído à ordem estabelecida na chamada civilização. É sempre um grande achado identificar em alguém aquele olhar - traduzido ou não em palavras - de: "Vem cá; ninguém aqui vai agarrar ninguém; certo?".