MEMÓRIA RECENTE

No dia 26 de abril completou dois anos o passamento de Nelson Fachinelli, o maior ativista cultural que passou por nós nos últimos cinqüenta anos. Era um porto-alegrense que tinha em si todos os valores da vida interiorana. Tratava a todo mundo com o respeito e a atenção de quem recebe um forasteiro importante.

Homem do povo, simples e despojado desde a sua costumeira indumentária, vizinhava com todos os que lhe chegavam ao coração e gostava de prosear longamente sobre a sua paixão: a Casa do Poeta, criada por ele quatro meses após a eclosão do movimento político-militar de 1964.

Mesmo em tempos de chumbo era fácil ser seu amigo. Sabia como lidar com os donos da política dita revolucionária. Nunca deixava transparecer a sua grei partidária, nem a sua posição política. Mas ele se acreditava socialista, instrumento promotor da igualdade entre as pessoas. Era este o socialismo ingênuo do ‘poeta-operário’.

Os valores próprios da amizade nele eram coisa fácil de ocorrer. Durante cerca de vinte anos assinou a sua obra como “Nelson da Lenita Fachinelli”, em homenagem à sua esposa, moça interiorana de família originária de Encruzilhada do Sul, que sempre respeitou e deu força ao seu idealismo.

A partir dos 60 anos, o que transpassava eram a sua bondade e a espiritualidade. O amor entendível como confraternidade era mola-mestra que lhe mostrou o caminho e balizou a vida. Figura marcante, Nelson era o protetor dos talentos a revelar. Nunca emitia juízo crítico quando alguém lhe pedia opinião sobre um texto que lhe fosse apresentado. Limitava-se a dizer, paternal e amorosamente:

– Que lindo isto o que tu escreveste! Por que não participas da próxima Coletânea da Casa do Poeta Rio-grandense?

Intuitivo por natureza percebia que era necessário construir a memória de uma instituição que se destinava a proteger e publicar os que estavam surgindo no meio literário, principalmente os pobres, os que não tinham dinheiro pra editar livro solo. Fez isto a vida inteira. Em seus quase 70 anos entre nós colheu a admiração e o afeto dos que sabem fazer-se entrega ao semelhante.

Eu o acompanhei por 29 anos e, por mais de vinte esteve entre os meus “dez” amigos. Divergíamos muito e esta prática nos fazia confidentes nos assuntos do associativismo. Apesar de ter mais de dez mil conhecidos, aprendi com ele que ser amigo é trabalhar junto, dividir aspirações e dúvidas e sempre ajudar aos novatos. Isto vale pra vida e para os irmãos em arte poética.

O movimento poético, no Rio Grande e no Brasil ainda se ressente do grande líder de política paternalista e protetiva. Aprendeu com Getúlio Vargas, que passou para a história como o “pai dos pobres”. Era esta a sua prática: ser o pai dos poetas sem espaço na mídia. Ele mesmo padecia deste mal, mesmo que os líderes de uma cidade cosmopolita vissem nele o sempre “Operário das Letras”, o denodado pastor de sonhos.

Os seus escritos, ralos de metáforas e de ausente vocabulário castiço, traduzem a alma-menina: são plenos de ingenuidade e doces tal uma bala de goma, aquelas cuja memória fica no palatino da infância. Mas era um razoável leitor e tinha uma boa biblioteca. Admirador de Quintana foi Nelson o seu primeiro biógrafo em livro, em 1976. Mario acabara de ser declarado Patrono da Casa do Poeta Rio-Grandense, a CAPORI.

Jornalista provisionado, nunca teve tempo disponível para aprimorar os versos dos poemas e alguma prosa memorial de suas andanças e do fazer literário. As tarefas associativo-literárias e o exercício de suas funções como oficial de justiça no Tribunal Regional do Trabalho consumiam o seu dia-a-dia. Aposentara-se cerca de dois anos antes de sua morte.

Acreditava numa sociedade ideal assentada no Amor universal e via na figura do poeta o artífice e sacerdote deste Futuro. Morreu sonhando com isto, mercê de tantos esforços e de uma legião de seguidores.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2006/2009.

http://www.recantodasletras.com.br/artigos/951998