A Minha Autobiografia

1.1 - As Minhas Origens / Infância

Nasci no Baixo Alentejo, no dia 13 de Setembro de 1951 no Monte da Ameixeirinha, Freguesia de S.Domingos, Concelho de Santiago do Cacém.

Sou a 4ª filha de um casal alentejanos.

Quando nasci já tinha um irmão e duas irmãs. Depois de mim ainda nasceu mais um irmãozinho.

Não sei a que horas nasci, pois os meus pais eram muito pobres e não tinham relógio. Durante o dia regulavam-se pelo sol, mas de noite era mais difícil conseguirem saber uma hora certa, por isso, o meu pai dizia que eu devo ter nascido por volta das 22 horas, e a minha mãe diz que quando eu nasci já passava da meia noite. O certo porém, é que na minha Cédula Pessoal tenho dia 12 e no meu Bilhete de Identidade tenho dia 13.

Actualmente festejo o meu aniversário no dia 13, mas já tive tempo em que festejava no dia 12, talvez porque tinha pressa de crescer e ser adulta.

Hoje em dia é bem mais fácil, quase toda a gente tem relógio de pulso, e horas no telemóvel.

Vivia numa casa baixinha caiada de branco, sem água nem luz. Tinha apenas duas divisões; o quarto e a casa de fora.

O quarto era onde dormíamos todos e a casa de fora servia de cozinha, sala e casa de jantar. Era também nessa casa de fora, que a minha mãe costurava. O chão era de terra batida. O tecto, viam-se as telhas e os barrotes que as seguravam.

È verdade, num desses barrotes, o que ficava ao centro da casa, bem lá no alto, um casal de andorinhas todos os anos lá ia fazer o ninho e criar os seus filhotes. Era giro vê-las andar numa fona dentro e fora de casa a carregar lama até construírem o ninho. Depois, ficavam ali a chocar os ovinhos e assim que nasciam os filhotes, era vê-los sempre a entrar e sair de casa a ir buscar pequenos insectos para sustentar os seus filhotes. Por fim, eles cresciam e abalavam todos, mas os pais voltavam sempre no ano seguinte para voltar a construir o ninho e criar novos filhotes.

Ficávamos a observá-los, muito quietinhos, para não os assustar. Mesmo que fechássemos a porta, eles conseguiam sempre entrar pelas gretas, ou frestas como lhe queiram chamar.

Tínhamos a um canto da casa uma lareira, a que chamavam de chupão, (porque chupava o fumo). Era onde se fazia o lume, e onde se cozinhava. No inverno era aí que nos aquecíamos ao pé do lume.

Era giro, sentavamo-nos todos à volta da lareira a conversar e às vezes os mais velhotes até adormeciam ali sentados.

Tínhamos a um canto da casa uma lareira, a que chamavam de chupão, (porque chupava o fumo). Era onde se fazia o lume, e onde se cozinhava. No inverno era aí que nos aquecíamos ao pé do lume.

Era giro, sentavamo-nos todos à volta da lareira a conversar e às vezes os mais velhotes até adormeciam ali sentados.

Ao lado do chupão estava a lenha, cortada e arrumada. Lenha essa que eu tinha ido buscar com a minha mãe por aqueles serros e corgos onde quer que houvesse árvores, havia sempre lenha. Ou quando os donos das herdades limpavam os sobreiros e deixavam os ramos no chão a secar. Aí a gente também aproveitava a trazer alguma lenha para casa.

A minha mãe levava duas cordas, uma para ela outra para mim, estendia as cordas no chão, colocava os ramos das árvores sobre elas, e atava-as fazendo assim uns feixes de lenha que eram transportados à cabeça.

Para que não nos roesse a cabeça a minha mãe fazia uma sogra, dum trapo velho. Aquilo ficava assim uma rodela grossa de tecido, colocavamo-la em cima da cabeça e depois o feixe da lenha. Mesmo assim fazia-me doer tanto a cabeça e o pescoço, ao tentar equilibrar-me com aquele peso! Que ainda hoje parece que sinto todos estes nervos hirtos.

A minha mãe chamava-me sempre mole, por eu não poder com o feixe da lenha. Dizendo bem, ela sempre me achou muito preguiçosa. Enfim…

Em frente ao chupão estava uma mesa com uma cadeira de cada lado.

Num outro canto, logo à entrada da porta, estavam as quartas de barro com água do poço, para a lida da casa e para bebermos. Pois nessas vasilhas de barro a água mantinha-se sempre fresca.

Ao lado estava a máquina de costura, mais umas 4 cadeiras e uma arca de madeira, onde a minha mãe guardava a roupa.

Tínhamos um lavatório de ferro com um espelho e uma bacia azul de esmalte, onde lavávamos a cara e as mãos.

No quarto estavam 2 camas, uma de catre e outra de bancos de madeira, que o meu avô tinha feito, para não termos que pôr o colchão no chão. Assim sempre ficava mais alto, e se andasse por ali a passear algum ratinho sempre não nos assustava logo.

A nossa alimentação era conforme o que havia, e conforme o que a terra nos dava.

À volta do poço, a minha mãe plantava batatas, cebolas, tomates, pimentos, feijão verde, etc., e todos os dias à tardinha, tínhamos de ir regar a horta com água que tirávamos do poço, com um caldeirão de chapa. Ficávamos sempre todas molhadas da água que pingava do caldeirão.

Frente à casa havia uma figueira muito grande, que no Verão nos fazia sombra, e no tempo dos figos, matavamos a fome com eles.

Era engraçado no início quando começavam a aparecer figos inchados, sabíamos logo que esses já não demoravam a estar maduros. Ia a minha mãe apalpava o figo, ia eu apalpava o figo, e quando fosse o meu irmão já o apanhava e o comia. Pois de tantas apalpadelas, começava a ficar mole e pensávamos que estava maduro.

De manhã, a gente almoçava uma açorda de alhos, feita só com água, pão, azeite e vinagre.

A minha mãe tinha três galinhas poedeiras, que nos davam ovos, mas não os podíamos comer, porque tínhamos que os vender. Com o dinheiro dos ovos comprávamos o pão, e sem pão a gente não podia viver, pois a comida era toda feita à base desse precioso alimento.

Às vezes de manhã também comíamos umas papas de farinha de milho.

Ao meio dia jantávamos umas sopas de batatas, que também levavam fatias de pão no fundo da tigela, e as batatas por cima.

À noite era a ceia. Ou era papas outra vez, ou feijão cozido com abóbora, que eu não gostava nada. E então feijão frade, nem o cheiro. Nesses dias ficava sempre sem comer.

Ás vezes durante a tarde também merendávamos, uma fatia de pão com banha ou toucinho frito, ou uma melância, era conforme aquilo que a minha mãe tinha.

Nunca em criança eu soube o que era um bife. Hoje os bebés começam logo a comer carninha desfeita na sopa. Mas ainda bem que a vida melhorou, e hoje há instituições que ajudam as pessoas mais carenciadas, assim como a Caritas, a Cruz Vermelha, a Unicef, o Banco Alimentar, etc.. E muitas das igrejas também recolhem roupas usadas e distribuem pelas pessoas pobres. Naquele tempo havia a Casa do Povo, mas não era para toda a gente, era só para quem pagava as cotas.

À noite, no Alentejo a gente tinha um candeeiro a petróleo para vermos alguma coisa em casa, agora na rua era um escuro cerrado, e que medo que eu tinha do escuro.

Antes de irmos para a cama, íamos todos fazer xixi à rua. Iamos de mãos dadas uns aos outros, para não termos medo. Quando estava lua, ao fim de um pouco de estarmos na rua, já se conseguia ver alguma coisa, mas tínhamos de fechar os olhos algum tempo e depois abrir porque vínhamos encandeados lá de casa com a luz do candeeiro a petróleo.

Como era lindo ver o céu cheio de estrelas e a lua muito brilhante, quase parecia um espelho.

Ali fícávamos de cócoras algum tempo, até nos vir a vontade, e íamos apontando com o dedo para as estrelas, para as irmos contando. Mas se a minha mãe via, mandava-nos logo parar, porque diziam que ao contar as estrelas nos nasciam verrugas (cravos) nas mãos.

Lembro-me também que em manhãs de nevoeiro a minha mãe nos mandava dar voltas ao Monte com as saias levantadas para que o nevoeiro desaparecesse mais rapidamente. Então lá andavamos nós (miudagem) a correr à volta do Monte com o rabiosque à mostra e a gritar “Tira-te nevoeiro, que o meu cu não tem cueiro. Tira-te Nevoeiro, que o meu cu não tem cueiro”… e assim continuamente.

1.2 - Separação dos meus pais

Até aos seis anos de idade, nada me lembro da minha infância. Apenas que era uma menina franzina, morena, cabelos pretos, lisos e de olhos castanhos.

Mas a partir dessa idade, no mês de Agosto de 1958, a vida marcou-me com a saída de meu pai da casa de família.

Lembro-me de ir para a esquina do monte onde vivíamos, e ficar a olhar até ele desaparecer ao longe. Sempre me ficou na memória aquela ladeira do ti Palminha, e nela ver caminhar o meu pai de saquinha às costas, onde levava alguns utensílios de cozinha. Pouca coisa: uma frigideira, um talher e pouco mais.

Dia 7 de Outubro desse mesmo ano comecei a ir à escola. Uma hora de caminho a pé por caminhos de areia, descalça pisando o gelo no Inverno, e escaldando os pés nas areias quentes do Verão.

Foram tempos díficeis que se seguiram. Pois meus pais continuaram a não se entender. Apesar de separados havia sempre discussões entre eles. Pois o meu pai ficou sempre a viver na mesma terra que nós.

Assim, podia sempre controlar as nossas saídas, principalmente as da minha mãe.

Sempre que ia com a minha mãe à lenha, ele havia de nos sair ao caminho, fazendo-lhe cair o feixe da lenha de cima da cabeça, e após alguma conversa, acabava sempre por lhe bater ali mesmo na minha frente. Que ódio que eu sentia dele naquele momento. Minha mãe ficava sempre furiosa com ele e proibia-me logo de eu lhe falar. Assim, acontecia que quando ele ía à aldeia e eu o avistava ao longe quando vinha da escola, eu desviava caminho para não me cruzar com ele, e saía da estrada seguindo corta-mato, escondendo-me atrás dos arbustos para que ele não me visse.

Acontece que uma vez não o vi, ía entretida a falar com os outros miúdos, colegas de escola, quando dei por ele, estava agarrado a um dos meus braços com tanta força que me magoava, e aos gritos comigo com conversas impróprias para a minha idade. Dizia: é a puta da tua mãe que não deixa tu me falares? Quando cresceres hás-de ser outra igual a ela. E eu calada, arrepiada com medo dele, quase nem respirava. Assim que me deixou o braço eu segui o caminho para casa, mas nunca contava o sucedido à minha mãe, pois se ela soubesse era mais um motivo para eles discutirem.

A minha mãe era costureira. E assim foi ganhando o nosso sustento, até ao dia em que o meu pai apareceu lá em casa e levou a máquina de costura. Vendeu-a e com o dinheiro comprou uma porca, e fazia criação de porcos e ia vendendo, para o sustento dele, pois no Alentejo não havia trabalho. Só na Primavera havia a monda do trigo, e a cava do milho, e no Verão a ceifa. De Inverno não havia nada. Dificilmente lá se conseguia sobreviver.

Lembro uma vez em que meu pai bateu na minha mãe quando esta estava no trabalho. Ia muito cedo por causa do calor. Andava a cavar milho nessa época, e eu ia com ela e ficava lá numa sombra até ser horas de eu ir para a escola. Ao fim de algum tempo de estarem a trabalhar, tinham meia hora para tomar o pequeno almoço, e regressavam todos para a sombra daquela árvore onde eu tinha ficado a estudar, pois toda a gente ali tinha deixado os farnéis.

Meu pai também estava incluído nesse grupo. No momento em que a minha mãe se baixou a tirar o pão do cesto para me dar de comer, ele deu-lhe uma cajadada atingindo-a na zona lombar. Tão forte foi a pancada que o cajado partiu-se logo. Só depois as outras pessoas intervieram, mas minha mãe ficou com aquela parte do corpo toda negra e cheia de dores. Minha mãe nem soube porque razão ele lhe bateu.

Fartei-me de chorar dessa vez… como eu me sentia infeliz.

Meu pai foi despedido, e seguiu o caminho da aldeia. Eu só fui mais tarde, pois nesse ano entrava às 13 horas e saia às 17 horas da escola. Mas sempre cheia de medo e rancor pela maneira como ele tratava a minha mãe.

Havia outras vezes em que a minha mãe mandava-me ir a casa do meu pai a ver se ele nos dava almoço porque ela não tinha nada para nos dar. Então, eu abraçava-me ao meu irmão e lá íamos estrada fora até casa do meu pai.

Não me lembro bem a minha idade, mas devia ter uns nove ou dez anos, e o meu irmão menos cinco que eu.

A gente chegava a casa do meu pai, mas não lhe pedíamos nada, ele já sabia que a gente tinha fome, então, ia ao quarto buscar a tigela das sopas de tomate que tinha enrolado nas mantas da cama para estas se manterem quentes, ou pelo menos mornas. Dava uma colher a cada um e toca a comer os três dessa tigela. O meu pai de vez em quando parava, para nos deixar comer mais um pouco. Depois, ficávamos lá com ele toda a tarde.

Mas havia outras vezes que o meu pai não nos dava nada, e nós ficávamos por ali a brincar junto à porta dele ou íamos andar de baloiço numa figueira que havia ali frente à casa junto a um chaparro, e que ele tinha lá pendurado uma corda. Quando era sol-posto eu segurava a mão do meu irmão e ficávamos ali à porta até ele aparecer, e eu dizia-lhe: “pai, tenho fome”. Ele sabia que a gente não tinha comido nada, mas começava aos gritos com a gente e dizia: “vão à puta da tu mãe que lhes dê de comer”. A gente já não dizia mais nada, abraçávamo-nos um ao outro e vínhamos embora antes que escurecesse. Chegávamos a casa da minha mãe, e ela perguntava se tínhamos comido e eu dizia que sim, e já tinha avisado o meu irmão para não dizer a verdade, senão a minha mãe já não nos deixava ir mais a casa dele. Lavávamos os pés e íamos para a cama sem almoçar nem jantar.

Às vezes o meu irmão não aguentava a fome e eu às escondidas da minha mãe, ia ao talego onde a minha mãe guardava o pão e tirava uma fatia fininha, para que ela não notasse e dava ao meu irmão, mesmo sem nada. Era só para ele deixar de sentir aquele ratinho no estômago. Outras vezes, pelo caminho apanhávamos as sementes do balço e comíamos aquelas sementes com aquela ranhoca. Aquilo era doce! Também passávamos lá por uns valados que estavam cheios de silvas e apanhávamos as amoras e comíamos mesmo sem serem lavadas. E estavam cheias do pó da estrada. Mas, para se empatarmos assim no caminho, tínhamos de vir mais cedo por causa do escuro.

1.3 - Minha ida para a escola

A minha 1ª escola está situada na aldeia de S.Domingos.

Nos meus tempos de criança não haviam transportes, e mesmo que houvessem, teria de ir a pé na mesma, pois naquele tempo no Alentejo havia muita pobreza, e a minha mãe sozinha não conseguia ganhar para tudo.

Andei sempre descalça até sair da escola com 11 anos.

Por vezes tinha de enrolar uns bocados de sacos de plásticos nos pés, daqueles sacos do adubo, e atar com uns atilhos de trapos velhos para os segurar, para não sentir tanto o frio da geada, e íamos todos em fila indiana pondo os pés nos mesmos sítios onde punham os que íam à frente, para não se sentir tanto o gelo.

Outras vezes, aquecia uma pedra no lume e enrolava-a num trapinho, para ir aquecendo as mãos pelo caminho, senão quando começava a aula, tinha as mãos tão geladas que nem conseguia segurar o lápis, e ainda eram 7km da minha casa à escola, sempre pelo campo. Só de onde em onde se encontrava um monte.

Assim que saía de casa, ao fim de 1km passava ao monte da Aldraba. Alguns metros depois os Pinheiros do ti Bicho, depois o Pinheiro do Bico, mais adiante o Monte do Ti Joaquim do Barranco, depois os eucaliptos do Ti Joaquim do Barranco, bem mais à frente o Chaparro do Perigo, (era assim conhecido, porque quando faziam trovoadas, caíam-lhe faíscas em cima, e estava com um grande buraco no tronco, e parte da rama queimada). Mais adiante era a Lagoa dos Ossos, depois o Campo da Bola, o Telheiro, o Monte Novo, e a minha escola. Esta ficava situada logo à entrada da aldeia de S.Domingos.

Almoçava na cantina escolar. A refeição era sempre feijão com massa ou feijão com arroz. Antes de começarmos a comer, tínhamos que rezar em voz alta, todos ao mesmo tempo. A oração estava escrita num papel e colada na parede da sala. Era assim:

Abençoai Senhor

A refeição que vou tomar

Para melhor

Vos poder servir e amar

E quando terminavamos ninguém saía da mesa sem rezarmos outra vez em conjunto.

Assim:

Agradeço Senhor

A refeição que me deste sem eu merecer

Dá-me o céu

Quando eu morrer.

Havia uma época do ano em que nos davam uma colher de óleo de fígado de bacalhau antes da refeição. Havia dias que nem ia almoçar só para não ter de beber aquilo. Pois sentia-me agoniada o resto da tarde.

Os cadernos e os lápis era a professora que me dava, mas por vezes, mandava-me fazer tantas palavras difíceis que a minha mãe guardava aqueles pacotes de cartão pardo, onde vinha o açúcar, e era aí que eu fazia as palavras difíceis. Borracha não tinha. Se me enganava, tinha de apagar o erro com um miolinho de pão, mas o caderno ficava todo borrado.

Mais tarde comecei a escrever a tinta, com uma caneta de pau que tinha um aparo na ponta, que íamos molhando num tinteiro de tinta que estava encaixado num buraco da secretária, onde estavamos sentadas duas a duas.

Ainda hoje tenho um calo no dedo, por causa daquele aparo da caneta que me magoava.

Era uma aula só de meninas e com uma professora. Na porta ao lado ficava a sala dos meninos, com um professor.

De um dos lados do quadro estava uma moldura grande com a foto do Presidente do Conselho, Dr. António Oliveira Salazar, e do outro lado do quadro outra moldura com a foto do Presidente da Repúplica, o Almirante Américo Tomás.

Quando entrei para a 4ª classe o meu irmão mais velho que morava em Lisboa, é que me pagou os livros. Custaram sessenta escudos.

Hoje parece pouco, mas naquele tempo era bastante.

Lembro-me que um pão de 1kg e 500g custava cinco escudos, um litro de azeite quinze escudos, uma caixa de fósforos trinta centavos e uma caixa grande oitenta centavos, a que nós chamavamos oito tostões. Estranho agora falar em centavos e escudos, quando o que temos agora é cêntimos e euros.

Também foi quando andava na escola que fui batizada pela igreja. Um dia o padre da Vila de Santiago do Cacém foi à aldeia de S.Domingos e a professora levou-nos à igreja e fomos todos baptizados. Foi ela a madrinha de todos os alunos, e o marido dela o padrinho, que também era professor na mesma escola.

Andei cinco anos na escola. Repeti a 4ª classe. Pois a minha mãe estava doente. Tinha acabado de sair do hospital Conde do Bracial em Santiago do Cacém, depois de uma cirurgia grave, onde lhe retiraram o útero e os ovários. E não tendo mais ninguém em casa, senão o meu irmão mais novinho, precisou que eu ficasse do lado dela, para que lhe chegasse um copo de água ou qualquer outra coisa que necessitasse pois não podia sair da cama. A minha irmã andava a trabalhar o dia inteiro a mondar arroz, bem longe dali. E os outros meus dois irmãos estavam cá para Lisboa a trabalhar. Assim perdi o ano escolar. Repeti a 4ª classe no ano seguinte.

Saí da escola com 11 anos, e comecei a trabalhar no campo ao lado da minha mãe.

Lembro-me do meu primeiro ordenado; 13 escudos por dia, o mesmo que a minha mãe ganhava.

Eu era novita, e a minha mãe tinha sempre de me ajudar a arrancar as ervas dos dois regos de trigo, que me pertenciam mondar duma margem até à outra. Ainda fiz a monda do trigo três anos. Aos 12, aos 13 e aos 14 anos. Depois vim para Lisboa governar a vida, pois a minha mãe não tinha comer para me dar e achava que em Lisboa ao pé dos meus irmãos é que eu seria feliz e arranjaria trabalho.

É verdade, fome nunca mais passei, embora a vida naquele tempo fosse mais difícil do que é hoje, mas havia sempre algo para comer, nem que fosse uma sopa de feijão com massa ou arroz.

1.4 - Morte do meu pai

No ano de 1966 tinha eu 14 anos. Eram nove horas da manhã do 1º dia de Janeiro desse mesmo ano, quando uma vizinha nos foi informar que o meu pai devia estar morto sentado na cama e encostado à parede. Pois conseguiam vê-lo através da janela do quarto que tinha ficado aberta, e ao chamarem-no ele não respondia.

A minha mãe embora não vivesse com o meu pai, ele não tinha mais ninguém de família que morasse ali perto. Fui eu mais a minha mãe e o meu irmãozito mais novo a casa do meu pai. Era verdade, ele estava morto, sentado na cama, encostado à parede e com as fotos dos filhos em cima da cama, pois tinha-as deixado cair da mão.

Meu pai era doente. Tinha bronquite asmática e por fim apanhou uma tuberculose que o matou.

Gostava do meu pai, mas confesso que quando soube da sua morte, fiquei aliviada. Pois ele dizia-me sempre que quando se sentisse mal, que visse que era para morrer, que ia lá a casa e matava a minha mãe, que ela havia de ir à frente dele.

Não sei porque as pessoas dizem estas coisas às crianças. Não vêem que estão a deixar as suas mentes traumatizadas. Eu vivia horrorizada com medo dele. Não que me fizesse mal a mim, mas à minha mãe.

Magoava-me imenso quando o ouvia chamar nomes feios à minha mãe. Isso não se faz.

Depois que meu pai morreu, eu sonhava muito com ele. Que ele saía debaixo do chão, muito magrinho, e vinha sempre matar a minha mãe.

Como eu sofria, mesmo depois da sua morte. E nunca contei estas coisas a ninguém.

A minha mãe vestiu-me toda de preto, com um lenço na cabeça e enrolada num xaile, e assim passei a noite inteira sentada na sala com a cara escondida debaixo do xaile.

No dia seguinte foi o funeral. Toda a vizinhança se juntou ali frente à porta para o acompanharem até à sua última morada.

Veio uma carrinha puxada por uma mula, colocaram o caixão em cima da carrinha, e seguimos atrás a pé, até à aldeia. Eu fui a única da família que acompanhou o funeral até à cova.

Na volta para casa deram-me boleia na carrinha onde tinha ido o caixão do meu pai. Vinha o senhor que conduzia a carrinha com o animal, mais algumas pessoas minhas vizinhas. Lembro que durante a viagem vinham a contar anedotas, e houve uma vez que eu tb sorri. Fui logo repreendida pela Mariana Paiola, minha vizinha, ( o teu pai morreu e já te estás a rir? ). Que estupidez. Eu tinha apenas 14 anos e era muito infantil. Se vinham a contar anedotas, eu tinha que chorar? São estas coisas que nos marcam e nunca mais esquecem.

A minha mãe não foi ao funeral porque parecia mal, embora ainda casada com ele não viviam juntos já havia sete anos. O meu irmão tinha só nove anos e como era ainda muito novo também não foi ao cemitério, ficou com a minha mãe em casa. Os meus irmãos mais velhos viviam nos arredores de Lisboa e não tínhamos como contactá-los. Só através de carta e essa só chegaria ao destino no dia seguinte.

A minha mãe comprou uma carta com uma barra preta toda a volta, tanto a carta como o envelope, e foi-me ditando o que eu devia escrever, participando a morte do pai á minha irmã mais velha. A carta foi endereçada para a fábrica onde ela estava a trabalhar. Assim que lhe entregaram a carta, ela ao vê-la com essa barra preta, soube logo que tinha morrido alguém da família. Mas quando a recebeu já tinha sido o funeral. Por isso não puderam estar presentes.

Andei vestida de preto durante um ano, fazendo o luto pelo meu pai.

Lembro-me que em Março andava a mondar trigo com a minha mãe e outras senhoras, e o sol começou a aquecer e eu tirei o casaco, fiquei só com a blusa, deixei o casaco ali no chão, na volta logo trazia o casaco, era só para não ter que carregar com ele pois estava calor, mas a minha mãe quando me viu sem casaco, ralhou comigo e fez-me ir buscar o casaco e vesti-lo, pois o meu pai só tinha morrido há três meses. Que estupidez! As viúvas tinha que andar de lenço e xaile pela cabeça, mesmo no Verão.

(continua)

Biazocas
Enviado por Biazocas em 30/01/2010
Reeditado em 30/01/2010
Código do texto: T2059809