As colheres de "Tio Zé Augusto"(A Saga...38)

Uma das lembranças agradaveis da minha infância é a da "fogueira de São João, na casa de "Seu" João Inácio" uma festa junina que meu padrinho de batismo realizava todo ano no quintal de sua casa de esquina na Rua Pouso Alegre, no Horto.

Os lotes de esquina, dizem. geralmente são um pouco maiores que os tradicionais de 12x30 pois ficam com as sobras da metragem de todo o quarteirão;Por isso mesmo e por ser"0800",Boca-livre, na época;Essas "fogueiras" eram muito concorridas. Eram a maneira de meu padrinho agradecer e fazer uma média com a freguezia do bairro, que mantinha sua próspera quitanda da esquina;

Além de muita Canjica, quentão, batata-doce e pipoca á vontade, ainda constava da mordomia, a música familiar fornecida por meu pai e seus primos Rêgo, filhos de seu "Tio Zé Augusto", .

Lá pontuavam além de "Seu constancio" no saxofone, seus primos Zé Rêgo no Banjo,Paulo Sabú(ex ponta esquerda do Cruzeiro E.C.)e Helena Rêgo, nos vocais e um punhado de instrumentos de percussão (pandeiro, reco-reco,chocalho,tamborim, surdo, etc) distribuidos entre os menos musicais, Marreco, Pedro-Pato, Carlos-Bocão e os caronas, que chegassem primeiro; Todos liderados pelo Patriarca "Tio Zé Augusto",mulato velho da carapinha branca com seu charme sua alegria contagiante e um par de colheres de cozinha, colocadas de costas uma pra outra seguras com o dedo indicador entre os dois cabos, o polegar precionando o cabo da colher de cima e os três dedos restantes amparando embaixo do cabo da segunda colher; Assim, deixando as colheres meio frouxas ele colocava o pé direito sobre uma cadeira e batia as colheres na côxa e na mão esquerda espalmada uns 3o cms acima da perna; Tirava um som que lembrava castanholas, só que meio metálico, e em rítmo de samba, ou chorinho; Eu fiquei fascinado desde a 1ª vez que assistí aquilo, na nesma noite pedí ao T"io Zé Augusto" pra experimentar, ele ajeitou as colheres na minha mão de criança e ficou surpreso ao ouvir que eu conseguia tirar o mesmo som que ele no que seria meu primeiro instrumento musical na vida!Dalí em diante passei a ser o acompanhador oficial de meu pai em seus chorinhos ao saxofone nas colheres de "Tio Zé Augusto"!

Um belo dia, Seu Constancio cada vez mais entusiasmado com o rímo nato do filho, se inscreveu como calouro num programa de Rádio da "PRI-3 Rádio Guaraní de Belo Horizonte",patrocinado pela "Drogaria Araújo" que este ano completa 100 anos de existência;

Pois bem; num dos ensaios, meu pai, muito "palhaço", determinou que levaria o saxofone na mão e eu levaria o estojo do sax, quase do meu tamanho, com as colheres devidamente escondidas dentro dele;

Raimundinho um negrinho simpático, conterrâneo de minha mãe e frequentador dos ensaios musicais em nossa casa se ofereceu pra levar uma galera pra torcer pra nós, já que a entrada era de graça;Claro que meu pai aceitou na hora; Chegou a noite da apresentação e lá fomos nós "Seu Constancio", Eu, Raimundinho e seus amigos, que passaram lá em casa antes pra pegar o bonde Renascença e descer na Caetés com São Paulo, perto da Rádio Guaraní;

Chegamos ao prédio da Rádio entramos no Auditório no 2º piso e nos instalamos na platéia, que era onde ficavam os Calouros, pois nos bastidores, somente os Artistas da Rádio eram permitidos;eu em pé entre as cadeiras, vasculhava todo o Auditório emocionado por ter de me apresentar praquele "povão todo", pela primeira vez; Quando meu olhar passou pelo Palco percebí a figura temida de "João Bode" que era o "Carrasco" implacavel do programa que ao menor vacilo do candidato e um gesto discreto do Apresentador Paulo Nunes, descia a borduna, num gongo enorme pendurado num varal á sua frente e era seguido por uma enorme vaia do auditório em homenagem ao calouro derrotado; "João Bode" cumpria sua tarefa com indescritível prazer e um sorriso escancarado; Eu tremí nas pernas, mais temendo por meu pai, que por mim mesmo!

"João bode" era carregador, com seu carrinho de madeira e rolimã, no nosso bairro. Um anão atarracado dos braços musculosos de tanto puxar o carrinho de compras lá no bairro;

Mas alí Ele era o "Carrasco" João Bode, imbuido de autoridade pra dar fim a qualquer carreira que tentava se iniciar...

"Pan-para-ra-pan-paaaaann"

Prefixo da Rádio nos Alto falantes.. Entra Paulo Nunes o apresentador...Chama o 1º calouro,palmas, gritinhos, e assim vai até ser anunciado :Próximo candidato:Constancio Rêgo, do bairro Renascença!

Depois da última tremidinha nas pernas, eu saio da cadeira e sigo meu pai carregando o estojo do sax com certa dificuldade, o que valeu uma gozação do Apresentador:Vejam só, o candidato é chique, tem até um ajudante; Meu pai se posicionou frente ao microfone e eu como combinado,coloquei um pé sobre uma cadeira e ergui o estîjo sobre a perna, abrí e tirei de dentro o par de colheres(Valha-me "Tio Zé Augusto")coloquei o estojo no chão o pezinho na cadeira e as colheres na posição de espera. A platéia ainda não tinha entendido, quando meu pai começou o choro de Luiz Americano Em seguida, no tempo certo, entro eu e minhas colheres:Tac-tic tac tic-tac-tac-tac-tac.... Meu pai faz um breque no choro, eu sigo sozinho nas colheres, ele pega logo adiante, seguindo meu rítmo;

Raimundinho e a galera puxam o aplauso, o Auditório vem abaixo, de tanto aplauso; Fiquei vermelhinho e com o rosto quente;Final do chorinho:Aplausos, gritos, á ganhou, já ganhou...

Vêem mais alguns calouros e o resultado:'... e em segundo lugar o saxofonista Constancio Rêgo e o garôto das colheres"! Subimos ao palco e meu pai recebeu um cheque como prêmio; Na mesma noite fomos direto à Hotel "Drogaria Araújo" alí perto, patrocinadora do Programa, pra trocar o cheque; Meu pai com um sorriso largo comentou que alí tinha mais do que ganhava em um mês de trabalho na fábrica! Paramos numa lanchonete pra fazer um lanche:Meu pai, eu, Raimundinho e a galera; Pela primeira vez eu experimentei uma Vitamina de Frutas, novidade na Época;Êta Saudade!

Aecio Flávio
Enviado por Aecio Flávio em 27/12/2006
Reeditado em 06/11/2007
Código do texto: T329135