A Menina da Ilha de SC: Entre Ler e Contar!

Ler Histórias escritas, foi algo que não fiz na minha infância. Era algo que não havia na casa onde nasci e aprendi a andar. Mas algo de fartura existia: a casa era repleta de Histórias. Era uma casa mal assombrada. Assim eu ouvia os mais velho falar nos pés dos ouvidos, para não assustar os pequenos ouvintes. Enquanto os grandes teciam as conversações, os pequenos eram mandados às brincadeiras de Criança.

Enquanto as outras crianças iam às brincadeiras de faz-de-conta, pega-pega, amarelinha... Eu me enfiada debaixo do assoalho da casa e ouvia todas as conversas. A curiosidade era maior que o medo de ganhar uma surra de cinta da minha mãe.

Nasci em uma família que começava a se constituir com o nascimento de mais um membro. Mais uma boca para comer... Mais um corpo para vestir e uma preocupação a mais. Principalmente quando nascia uma menina.

Nessa família, as crianças liam a natureza brincando no alto de uma colina coberta de um campo verdejante. Lá de cima, a menina da Ilha e seu irmão mais velho, escorregavam numa casca de coqueiro que os levava numa viagem diferente: uma viagem toda cheia de cores, ventos e sabores...

Nessa família, até os sapatos falavam, as pitangueira riam a soltar seus frutos. O abacateiro também era bagunceiro. Era vizinho de um cambucazeiro e uma jabuticabeira... Que lugar cheio de gostosuras!!!

Quando não estávamos a viajar numa casca de coqueiro, a menina e seu irmão subiam até a copa do pé de Cambucá, todo crivado de saborosos frutos a se sacudir para nós. Eles queriam ser comidos por nós, antes dos passarinhos. Não era uma árvore qualquer. Ela era tão grande, mas tão grande que, para o tamanho daquela menina pequenina, o Senhor Cambucazeiro parecia um gigante de botas pontudas...

Nos fundos da casa, no Bairro Pantanal, no Centro da Ilha de Santa Catarina, havia muitos pomares. Todos sempre cheios de árvores frutidelícias. As goiabeiras com suas filhas brancas e vermelhas, eram as minhas amigas preferidas. Eu sempre sentava num de seus galhos rasteiros, onde sempre estava um Senhor de muita idade, com sua cabeleira e barba da cor da neve. Ele era de estatura mediana, olhos meigos e gateados. Era dono de uma vós que ainda não saiu dos meus ouvidos. Era bem velhinho. E sempre estava a repetir a mesma ação: picando um rolo de tabaco com um canivetinho bem minúsculo. Ele sempre estava de cabeça baixa com os olhos atentos ao que fazia. Vez enquanto, ele levantava a alva cabeça, olhava-me com aqueles olhos gateados e dizia:

- Minha menina, um dia tudo isso vai mudar... Olhe que tudo Mudou depois da minha meninice e mudará depois da sua...

E o velho sorria, continuando a fazer o que sempre fazia: picando o rolo de tabaco. Ele também assobiava lindamente.

Nos fundos do quintal havia muitos pés de caquis que na época das frutas maduras, manchavam todas as nossas roupas (cheia de nódoas, como diziam os antigos). Minha mãe me recepcionava com muitas chineladas, cada vez que eu entrava em casa com as minhas roupas manchadas. Eu nunca entendia o porquê de tantas surras que eu ganhava. Nesse tempo, minha irmã mais moça já havia nascido, me acompanhando nas brincadeiras, mas nunca apanhava, por isso, ria ao me ver chorando. Com a chegada da noite, eu enchia ela de beliscões nas pernas (daqueles bem fininhos). E ela gritava bem alto:

_ Mãããnhêêê... A Dete tá me belicando!!!

Ao ser acordada com a gritaria, lá vinha a minha mãe de cinta na mão. Encanto ela me batia, eu beliscava mais ainda a berrona, que chorava enquanto eu apanhava sem soltar uma única lágrima. Não sei como tudo isso acontecia, mas, chorar era algo raro quando eu fazia.

No meio da mata (fundos com a UFSC), havia uma pequena floresta onde eu costumava ir brincar de caça ao tesouro. Diziam que naquelas terras haviam muitas panelas de moedas de ouro e prata, todas enterradas pelos antigos donos daquele lugar. Sabendo dessa histórias, nem pensava nos perigos que corria e me embrenhava na mata, onde eu via muitos seres, como: Boitatá que corria atrás de mim assobiando sem parar. Ao chegar em casa, vermelha de cansada, eu contava tudo o que acontecia lá dentro da mata. Os meus irmãos tinham muito medo de entrar nela.

Havia um arbusto na beira do campo, abaixo da colina verdejante, onde todas as manhãs de sábado eu encontrava uma peça de roupinhas de bonecas. E sempre que eu chegava, ainda conseguia ver um vulto de mulher arcada, correndo a se esconder. De bem longe, próximo do lugar do vulto, uma vos me falava:

- Pode levar! Faço todas pra você...

Eu, que gostava muito da minha coleção de roupinhas achadas no arbusto, pegava todas as peças que encontrava, depois da voz falar comigo.

Entre todas as maravilhas de lembranças do meu tempo de criança pequena, só me restavam as leituras de tudo o que eu fazia e do quanto que acontecia.

Minha mãe diz até hoje:

- Essa daí não puxou a ninguém da nossa família... Parece que veio de outro lugar.

Sempre ouvi este comentário, até que um dia (21 de maio de 2001) resolvi ir à casa de minha mãe para saber do "por quê de tantas diferenças". Ela, após uma série de colocações, falou:

- Tu só podes ter sido filha de chocadeira, porque de mim parece que nunca saísse...

Nesse dia consegui entender e fazer uma nova leitura de tudo o que eu lia na minha meninice, e passei a entender e diferenciar esses dois atos: Ler e leitura, coisas que não estão somente nos livros, ainda mais lá no meu tempo de criança pequena. Digo assim, porque ainda sou criança. Uma criança que convivia com as histórias em tempo real. Uma criança que tem tanto para contar. Tanto que não caberia num só livro!

Ainda bem que não deixei de ser criança... Finalmente, cheguei em uma biblioteca e conheci outros universos, os quais foram aos ouvidos de minha primeira filha, ainda no meu ventre. Me deliciava lendo os clássicos da literatura infantil, para ela, hoje uma adulta com mais de 30 livros lidos.

Tem gente que não gosta de ler, preferindo mergulhar nas brumas da depressão. Uma atitude lamentável na vida de muitos! Sei e senti na pele, que ler é um ótimo alimento que podemos oferecer a nós mesmos. Afinal, não só o corpo precisa de alimento!

Depois que descobri e me vi dentro do universo das letras a passear pelo mundo da imaginação, porém sempre a misturar o real com o imaginário, para dar aquele gostinho de verdade, continuei sendo a mesma. Soltei minha menina da Ilha, com todos os meus olhares aguçados e a aguçar o outro, também. Sinto-me mais livre para sonhar todos os sonhos que não se sonha só. Por isso, continuo a misturar o real com o imaginário a me deletar em cada canto de um conto...

Entre a Mata e a fantasia que nutre a nossa criança interior, sempre nasce um menino ou menina com mil história para ler e contar - Contar e encantar.

Autoria: Claudete T. Bruxa da Mata, 23 de abril de 2014 - A Menina da Ilha de SC. Hoje (29 de Abril de 2017) publicando aqui para que os leitores possam conhecer um pouco dessa menina que criou a Academia Brasileira de contadores de Histórias, de direitos Nacionais e Internacionais, sem fins lucrativos, juntamente com o pequeno grupo de contadores de histórias que acreditaram em mim e tomaram posse em 12.12.2014.

Bruxa da Mata
Enviado por Bruxa da Mata em 29/04/2017
Código do texto: T5984507
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