As Memórias, a Sabedoria, o Conhecimento e a Lucidez do Excelente Sr. Barão de Ribeira das Velhas

PEQUENA EXPLICAÇÃO QUE SE FAZ NECESSÁRIA:

O escopo dessa obra é a demonstração da beleza da vida e das ilustres experiências desse vosso humílimo servo, o Senhor Barão de Ribeira das Velhas, chamado e conhecido tanto pelos seus pares Fidalgos como pelos simples ordinários, carinhosa e respeitosamente "Barão das Velhas". Pesam sobre minhas lembranças a inexatidão das datas e dos feitos. Isso deve-se pelo fato de que tendo eu nascido em uma época bastante recuada, carrego toda glória e todos os vexames da longevidade e apesar da veracidade de tudo o que vos for por mim narrado, uma ou outra data poderá sofrer alguma discrepância, por obra de Saturno que devora os próprios filhos. Relativamente a essa minha última referência, permití-me esclarecer aos leigos que é uma metáfora ao deus dos antigos romanos, encarregado do tempo: Saturno, que devorava os próprios filhos -as horas, e assim mantinha-se pela eternidade.

Sanada essa intervenção didática, que julgo ser necessária, convém-me esclarecer ainda aos meus bondosos leitores que a linguagem rebuscada e erudita dessas minhas memórias é o carbono da minha personalidade. Sabedor que sou que poucas pessoas hoje no mundo teriam paciência ou capacidade de compreender-me razoavelmente, dado ao melancólico caminho que se enveredou a nossa lindíssima Lingua Portuguesa, comprometo-me a ser o mais simples, acessível e suscinto possível. Aos que se aventurarem em prosseguir na subida dessa montanha, buscai vossos dicionários e não hesiteis em compartilhar vossas dúvidas com esse vosso humílimo biografando, e eu vos mostrarei do alto da montanha as mais lindas e suaves visões que alcança o entendimento humano!

Selecionei apenas alguns eventos que creio sejam oportunos partilhar com a vossa abnegada boa vontade em ler a história de um homem de indústria e de bem. Faço isso como uma catarse duríssima, mas necessária para que, uma vez limpas as chaminés da minha alma, possa a existência ser-me menos complicada e dolorida. Isso posto, terminando esse meu aviso à guisa de prólogo, encetarei agora minhas lembranças, propriamente ditas. Que Deus me ajude!

“O Homem é o fruto das suas experiências e do meio ambiente que o cerca ” - Marcus Aurélius Paivalinus

O provérbio capitular que encima esse preâmbulo é comumente repetido por pessoas de todas as classes sociais, níveis de escolaridade e raça. É um ditado propalado pelas pessoas de todas latitudes e longitudes, e vem sendo repetido exaustivamente desde o século IV.

Ele não distingue o sábio do ignorante, menos ainda desaproxima o vulgar do notório. É como uma ponte que une os pensamentos do feio ao belo e do rico ao pobre. A acessibilidade da sua moral promove e facilita a promiscuidade social uma vez que ele não oferece óbice à sanha dos ignorantes que incapazes de formular uma reflexão por si próprios, valem-se desse pensamento simplíssimo para se arrojarem no pódio dos felizardos instruídos.

Todavia porém, mãos extendidas à palmatória, esse pensamento simplérrimo que é repetido tanto nos salões da nobreza e nos botequins plebeus revela uma verdade incoercível e insofismável. Nesse ponto, minha preclara inteligência acrescentará a ele umas outras palavras, as quais irão elevar exponencialmente o seu valor, uma vez que delimitará os pastos dos cavalos puro sangue e a pastaria dos muares. A nova definição é o fruto sazonado das minhas lucubrações e infatigável respeito à ordem direita e natural das coisas. Assim, eu, o IV Barão da Ribeira das Velhas, melhoro o dito, proclamando:

"O Homem é o fruto das suas experiências, do meio ambiente que o cerca, DA NOBREZA DO SEU SANGUE E DA PUREZA DE SUA LINHAGEM”

Não se enganem imaginando-me presunçoso, arrogante ou pedante. Não! Esses defeitos não podem encontrar eco na minh’alma prenhe de virtudes e diamantinas qualidades morais, todavia é forçoso inferir que um nobre distingue-se de um biltre assim como distintas são as magnólias num jardim palaciano e as florinhas que nascem ao acaso do vento...

Nasci no bonito ano de 1931! Ano de alegrias para minha família e para o mundo! Foi neste ano sagrado que o Papa Pio XI deu à luz a Rádio do Vaticano! Ah, esqueci de dizer-vos que sou espanhol de nascimento. Nasci na residência El Señorial, na bela cidade de Toledo, tendo sido primeiramente beijado por minha mãe e pela minha prima que mais tarde seria conhecida como a Duquesa de Alba. Minha mãe, era uma nobre marquesa e meu pai, vinha da linhagem indireta dos últimos reis portugueses e possuia o título de Barão de Funchal. Na verdade, minha família morava na bonita Ilha da Madeira, em Funchal no palacete Dom Diogo, mas minha mãe sempre teve seus partos no palácio onde ela própria nascera. Eu fui o último dos seus 13 filhos, sendo todavia que eu conheci apenas 2 além de mim mesmo. Os demais foram colhidos em tenra idade pelo Rei dos reis, deixando na alma de minha santa mãe uma lacuna jamais preenchida! Neste momento, represo um fio de lágrimas que insistem em forçar caminho pela minha face e num suspiro, meu coração se ajoelha à memória daquela santa mulher e balbucia: Gratitud mamá!

Pillar Sotero y Bourbon e Manuel Augusto

1944... O Sol se punha glorioso no oeste do mundo. Imagino que fosse Dezembro, pois haviam cartões de Natal espalhados pela mesa de banquetes no Salão Lisboa, de nossa residência. Desde o início da Guerra, minha mãe recusou-se a fazer a árvore de Natal para celebrar o nascimento do Filho de Deus. Ela afirmava que não se poderia celebrar o Natal de Jesus num mundo que cheirava à pólvora e sangue e onde os cânticos suaves da natureza se converteram num clamor de dor, viuvez e orfandade! Minha mãe era uma muito lúcida mulher e sua moral cristã a colocava num altar de pureza e bondade. Nossos Natais enquanto durou a Guerra Mundial, se restringiam a mortificações, jejuns e orações. Meu pai, ainda que fosse o líder e o chefe da casa, obedecia e compreendia minha sábia mãe. Ele era a espinha dorsal da casa, os músculos e a energia criadora. Minha mãezinha era o coração, a inteligência e a alma do lar e ela nos fazia compreender que todo o bem que recebemos emana do coração onipresente de Deus e por isso, todas as bençãos e graças são devidas a Ele! Minha mãe nascera no mais fino berço da nobreza ibérica, neta de D. Juan Chulilla y Chulilla Ruiz de Burgos Pidal, excelente Marquêz de Nueva Castilla, professor dos Infantes e Infantas de Espanha e conselheiro especial de S. Majestade Cathólica. Nem o berço reluzente coberto com linho e seda, nem a estridência das orquestras dos luxuosos salões disputados pela fina nata da nobreza de um reino poderoso, ou ainda o benefício da riqueza sem limites e a proteção direta de um Soberano Rei, mudaram em minha mãe uma única nesga de sua personalidade piedosa, simples e despretensiosa. As jóias raríssimas e de valor incalculável, jamais competiram com o brilho de sua alma ou ofuscaram o carácter inatacável de minha mamãezinha. Tenho ainda no almocafre inviolável que jaz à cabeceira de minha cama, o Rosário de Esmeraldas e Rubis que pertenceram a essa santa mulher, e a ele recorro sempre para suplicar as bênçãos e a proteção de Deus ou para apenas admirar o lusco-fusco de suas raríssimas gemas, que acredito custem mais que uns bons milhares de euros –não que isso seja importante, mas é bom que saibais que eu tenho um Rosário maravilhoso e caro. Nisso depreendereis que sou além de romântico por guardar uma jóia que pertencia à minha mamã, sou também um homem que tem um bom gosto pelas coisas belas e que tem valor. Mamãe fora prometida em casamento quando tinha ainda 3 anos de idade, ao seu primo português, o senhor meu pai.

Voltemos, entretanto para aquele dia festivo!

Meu irmão Manoel Augusto, estava lindamente vestido com a farda boronal menor, azul e branca, com dragonas de ouro e botões de prata. Suas botas de couro preto reluziam e as esporas de ouro refletiam o brilho das pequeninas e tímidas estrelas que pouco a pouco começavam a pulular o céu cada vez mais escuro e ermo. Sua pele alva, a barba bem aparada, os olhos verdes escuros, brilhantes como que duas esmeraldas arrancadas da coroa do rei de Albuquivir, denunciavam suas expectativas e esperanças! Seu sorriso nervoso com os lábios carmínicos que mostravam os dentes ebúrneos, naturalmente belos, denunciava suas apreensões. Era o dia do seu noivado! Conheceria enfim aos 16 anos de idade a sua prometida, a mulher de sua vida, aquela que fora escolhida para passar consigo o resto de sua vida, oferecendo a ela todo o fruto do seu labor e existência, recebendo em troca o refrigério daquilo que se chama Lar, abençoado com filhos que levariam para sempre a grandeza da linhagem dos seus pais!

Cumpre-me informar que por um lapso da minha memória, esqueci de informar que por força da Guerra, estávamos a salvo na bonita cidade de Natal, no Brasil. Desde o começo da Guerra, meu pai enviou-nos para o Brasil afim de salvaguardar-nos do morticínio que grassava na Europa. Natal era uma cidade linda, interessante. Tinha cheiro de ilha, apesar de estar cravada no continente. Isso fazia-nos a aceitá-la como nossa terra. A cidade estava cheia de soldados norte americanos, completamente diferentes daquela gente nativa. Brancos, altos, olhos verdes ou azuis, atléticos e safados que constratavam com mulatos, medianos, olhos negros ou marrons, franzinos e simplórios. Uma fusão esquisitíssima, mas interessante de raças e biotipos que se misturavam no cadinho dos “for all” de sextas feiras na orla marítima... Desperto-me dessas lembranças suaves para reencetar o meu memorial:

Pois bem... Aguardávamos todos com ansiedade, minha mãe consolava-nos das angústias tocando no piano as belíssimas peças natalinas germânicas. Enquanto tocava alegremente o O Tannembaum, bateram veementemente à porta e quando aberta, se apresentaram os mordomos da Casa Real Espanhola, proclamando que D. Pillar Sotero Y Bourbon encontrava-se a porta e desejava fosse-lhe aberta. Meu pai, vestido com a farda baronal maior, vermelha com suas medalhas e distinções, em alta voz, respondeu ao ritual: “Minha casa é a casa de Sua Alteza Real! Façai dessa casa como se vossa fosse, Senhora!”

E curvou-se em seguida, tendo todos na sala, curvado também, exceto eu, que ao término dos meus três anos, quase quatro, não conhecia ainda essas jóias da educação humana... Vi então a imagem ideal da beleza feminina: Uma mulher lindamente vestida num traje verde como água, que fazia ressaltar os olhos verdes esfuziantes como dois dardos de esmeralda. Os cabelos castanhos claros e a pele morena de sol. Os lábios, quais os rubís de Santander, puros e vermelhos como o sangue dos pombos selvagens, sorridentes e gentis para minha meninice irreverente...

Meu irmão casou-se com ela no ano seguinte e foram viver na Grécia, onde toda familia Real espanhola estava refugiada. Viveram felizes os poucos anos de união que o Provedor Divino lhes concedera. Em 1946, Pillar morreu durante o parto e meu irmão internou-se no mosteiro do Santo Sepulcro em Jerusalém, onde morreu em 1955, de tifo.

Considerações Baronais sobre esse capítulo:

A manhã que raia e a treva espanta

Transformando a noite em luz e alegria

É efémera como o calor do prado que canta

Pois o sol sempre se põe no fim do dia!

Com o fim da guerra, retornamos para Portugal continental. Havíamos estado fora da Europa por mais de 4 anos e nossos negócios familiares estavam inexatos e não sabíamos ao certo o quanto havíamos sofrido de perdas. Meu pai, nessa época era um homemzarrão, forte e combativo. Apesar dos seus cabelos já embranquecidos, era jovem e operativo. Trabalhava nos negócios familiares, que eram diversificados, indo da especulação imobiliária até a fabricação de fertilizantes, à base de guano e salitre. Em 1934, 5% de toda a produção mundial de fertilizantes eram por trabalho de meu pai. Quando em 1937 pesquisadores descobriram a famigerada fórmula do nutriente ideal, feito à base de produtos químicos danosos e perigosos, todavia mais acessiveis e baratos de serem produzidos, nossos negócios de fertilizantes foram enfraquecendo até se dissolverem em 1939. Apenas para ilustrar aos meus inteligentes leitores a fórmula do nutriente ideal, uma vez que nem todas pessoas sabem desses assuntos misteriosos da química e dos negócios, permitam-me dizer-lhes que os pesquisadores diabólicos descobriram em 1937 que a união do Potássio (K) com o Sódio (N) e o Fósforo (P), revolucionaria o manejo agrícola mundial. O problema era apenas adequar as quantidades para não destruir a terra que se pretendia fertilizar. Pois bem, a fórmula ideal para fertilizantes é o famoso trinômio N P K, que quase lançou-nos na miséria.

Em Portugal, nos alojamos em Lisboa, na Albufeira. Nossa casa senhorial de 600 anos. Os pórticos de 3 metros de altura, eram fronteados com a escultura do infante D. Henrique. As tapeçarias feitas com lã de camelo na Pérsia, desciam das paredes com gloriosos motivos históricos. Os jardins repletos de flores escondiam um mimo: Um chafariz de alabastro esculpido por Guglielmo Sfanzio, o festejado escultor dos Dodges de Veneza. Casa bendita, cuja lembrança esboça na minha face um sorriso feliz!

Foi nessa casa que meus pais receberam a notícia que Herr Wolfgang Von Kunningger, da Holanda pretendia fazer corte à minha irmã Maria Clara. Herr Wolfgang não era nobre, mas tinha boas intenções e uma bolsa gorda. Sua família enriquecera com os negócios das Indias Orientais, em meados do século dezesseis e naquela época, eram para a Europa o que eram para os Estados Unidos da América, os Rockfellers. Meu pai, opôs-se a tal conúbio, uma vez que Herr Wolfgang era protestante e minha família católica. E ainda que os negócios sejam permissivos e coniventes com as promiscuidades do carácter humano, essas falências morais são inconciliáveis na religião e a religião sempre foi o pródromo e o paradigma da minha familia. Herr Wolfgang entretanto, propôs renunciar as seitas que até então praticara e por amor à minha irmã, ele jurou tornar-se católico, e assim obter as bençãos de meu pai para o enlace. Momentosos tempos aqueles! Meu pai enviou uma carta para seu confessor e amigo, rogando a ele o preclaro alvitre de homem de Deus! Esse bom sacerdote então, obedecendo o que determina o Codice Canônico, anuiu com a autorização, e ele próprio, o Monsenhor Hugo Ferro, foi quem batizou o antes herético Wolfgang sob a consoladora água batismal católica, salvando sua alma do inferno para onde vão os protestantes, os budistas, os comunistas, os sem religião!

Wolfgang e Maria Clara se casaram em 1950 na Igreja de Santa Maria no Porto. Maria Clara deu à luz a duas crianças lindas: Helmut e Grettel. Seu apaixonado marido morreu em 1962 de ataque cardíaco, e Maria Clara foi encontrá-lo em 1967, por causas naturais.

Helmut herdou a fortuna de seus pais e tornou-se um milionário gregário, um mecenas patrocinador da arte e da estética. Nunca se casou, para que o casamento e as preocupações que advêm dessa responsabilidade, lhe afastariam do santo dever de patrocinar as artes. Mas, divide sua solidão com um amigo de infância, um moço chamado Christien, o qual já foi distinto bailarino clássico na adolescência e que agora é um festejado desenhista de moda para ricos e nobres em Amsterdan. Ambos são católicos fervorosos e piedosos, celibatários por graça de Deus!

Grettel, lamentavelmente se perdeu! Degenerada, casou-se com um judeu e vive em algum buraco em Tel-Aviv. Que Deus a castigue com veemência por lançar vergonha sobre a tumba dos seus pais. Oh Martires da Igreja! Apagai o nome de Grettel de minha memoria e cumulai-a de remorsos para que seja reconduzida à religiao de Deus!

Considerações Baronais sobre esse capítulo

Para meu amado sobrinho Helmut:

A mocidade é um regato prazenteiro

Que célere busca um maior destino

Cantando junto ao tordo zombeteiro

Anseia pelo mar salgado e ferino.

Para minha distante Grettel:

Encontra-se enfim o gigantesco rio

A água do regato que ligeira corre

Mas alguma gota perde seu rocio

E na poça de lama e lodo, morre.

Retornarei para concluir esse meu trabalho em breve. Nesse momento, meu corpo octogenário roga pelos carinhos da minha cama e meus olhos querem pousar no alvo dossel até que o sono os obriguem a se fecharem e o sono confortante me resgate da frieza dessa madrugada.

- continua -

Marcos Aurelio Paiva
Enviado por Marcos Aurelio Paiva em 28/03/2020
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