BALANÇO DE UM ANO QUE NÃO TERMINOU

BALANÇO DE UM ANO QUE NÃO TERMINOU - CARTA

Hoje é o último dia do ano.

Em 2006 muitas coisas aconteceram. Foi um ano movimentado para mim. Resolvi muitos dos problemas particulares que tinha desde 2002.

Meu milionário processo trabalhista chegou ao fim com inevitável, mas supreendente derrota. Também pudera, vivemos em um país onde a justiça está sempre a favor de quem paga mais. Os labirintos da justiça brasileira permitem toda a sorte de recursos, mesmo quando a mais suprema corte dá veredito favorável a você. Um pequeno detalhe de execução na instância inferior pode ser motivo para que o processo volte às demais instâncias e a corte suprema decida mudar de idéia, de forma irrecorrível.

Advogados, leis e juízes não fazem mais justiça: fazem fluxo de caixa.

A vida das pessoas não é mais tão importante. Por isso, que mal há se os processos duram 13 longos anos? A injustiça também é feita por meio da justiça.

Há muito os sucessivos escândalos e decisões tendenciosas que circulam na mídia haviam preparado meu espírito para essa realidade. E minha indenização foi pelo ralo.

Nestes 13 longos anos fui preterido em cargos empresariais pelo simples fato de ter movido um processo em busca de justiça, contra uma empresa que me suprimiu direitos e cometeu ilegalidades. Em outras oportunidades, a parte processada tinha o poder de dar minhas referências e, com isso, seu veredito: não contratem! As referências foram negativas, como era de se esperar. De nada valeram anos de serviço nesta e em outras empresas, sempre com excelentes resultados, promoções precoces por mérito e, lógico, alto desempenho. Mesmo assim, lutei como pude. Não por ganância, mas por justiça.

Não recomendo às pessoas que façam o que fiz. Não valeu a pena. Não precisam me consolar dizendo que fiz o que era certo e que fiquei em paz com minha consciência. O que é o "certo"? Em um país onde o certo é esconder radares de velocidade atrás de arbustos, a reação correta é instalar sensores nos automóveis? Ilegalidade se paga com ilegalidade? Crime será resolvido com outro crime? O certo é não reclamar ou, reclamando, tentar comprar os tribunais? Não fiquei em paz. Pelo contrário, perdi a paz com o aumento do sentimento de injustiça. Esse sentimento jamais vai passar nesta sociedade deformada.

Como ganho, desenvolvi outras duas profissões: professor e consultor. Se não me dão o mesmo prestígio da profissão anterior, pelo menos me dão menos estresse e mais tempo livre. Querem coisa mais afortunada que ser o dono do meu próprio tempo? Essa riqueza conquistei sem querer!

É certo que tive que ralar um pouco em seis anos de mestrado e doutorado, dormindo poucas horas por dia, lendo dois a três livros por semana em lingua estrangeira e produzindo "papers" nos chatos formatos acadêmicos, deixando a vida profissional de lado e abrindo mão de continuar a busca dos tentadores salários e benefícios de alto executivo. Mas, se não valeu a pena pelo dinheiro que deixei de ganhar, valeu pelo aumento do saber. Na vida nada se perde, tudo se ganha!

Decidi que este 2006 seria um ano de passagem, um ano de calma, um ano para respirar, para poder retomar o ritmo que minha vida sempre teve, depois dos últimos complicados anos. Em 2006 vivi um pouco mais! Cada minuto de cada dia valeu por dez. Mesmo os momentos de ócio foram mais relaxados. Mas, em 2007 terei de reacelerar! Infelizmente! Não sou herdeiro de grande fortuna, não tive pai rico e nem seduzi nenhuma milionária com o pé na cova (dela).

Fisicamente, passei o ano fazendo alongamento, yoga e relaxamento, como formas de dar um tempo ao meu corpo.

Abrandei o ritmo forte que vinha dando a mim mesmo com corridas, musculação, condicionamento físico intenso e, por vezes, exagerado, como formas de fazer com que meu corpo desse as respostas que sempre deu, mesmo que outras pessoas mais acomodadas, conformistas e preguiçosas tivessem insistido para que eu embarcasse em suas idéias de decadência.

Como se eu devesse enquadrar minha idade cronológica, ordenando a meu corpo que envelhecesse rapidamente, para acompanhar meus 53 anos, mesmo que fisicamente esteja me sentindo com 30.

Como se fosse proibido a uma pessoa ter e manter espírito jovial. Ter e manter músculos e órgãos funcionando como novos por ter cuidado deles com alimentação adequada e constantes exercícios durante toda a vida.

Acho que a decisão que tomei aos 12 anos foi acertada: manter meu corpo pronto para as emergências da vida. Com aquela idade decidi que deveria ter preparo físico como se tivesse que passar por uma emergência médica de longa duração, onde a resposta física deveria ser fator-chave para a superação. Tudo porque um conhecido da época não sobreviveu por causa do descuido do seu organismo. Quando mais precisou ele não deu respostas. Graças a Deus nunca precisei desse condicionamento para essa situação.

Não procurei bater recordes nem participar de competições onde as pessoas procuram superar as demais. Busquei respeitar meus limites, mas mantendo esses mesmos limites bem altos para que, com o natural declínio da vida, chegasse aos 50 acima da média. Consegui!

É certo que tive alguns desgastes neste esforço: um joelho com os ligamentos e meniscos arrebentados, uma sobrecarga na coluna que me levou à cirugia há seis anos atrás. Mas, são certos preços que pagamos: ganhei em agosto um atestado de validade do coração garantindo que não vou infartar nos próximos 5 anos. Como são atrevidos estes médicos! Meu último check-up garante que meus olhos enxergam bem, meus ouvidos ouvem sons extremamente baixos, onde poucos ouvem. Ainda corro bem na esteira ou nas pistas da cidade e do clube que freqüento. No finalzinho do ano voltei a nadar. Ainda não atingi a média de 3 a 5000 metros que fazia semanalmente. Mas já estou nos 1500m diários e em dois meses estarei naquela faixa. Tenho mantido o peso, mesmo que o aumento da massa muscular de hoje eleve meu peso mais que elevava há dez anos atrás. O importante é sentir-me bem. Sentir que as respostas do organismo estão do jeito que sempre foram.

Neste ano deixei minha imaginação correr solta escrevendo poemas, textos, crônicas, contos, comentários, mensagens, e-mails, bilhetes.

Procurei ver o lado poético das coisas permitindo que minha alma caminhasse mais solta como tantas vezes fiz no passado e que, por falta de tempo, interesse ou mesmo inspiração, tivesse relaxado nos últimos anos.

Meu senso crítico fez com que abandonasse e jogasse fora muitas coisas que escrevi. Quando leio certas palavras escritas por outras pessoas, arrependo-me de tê-las jogado fora pois, sem modéstia, eram melhores.

Da mesma forma, sinto-me diminuído por coisas que li, sejam de autores consagrados, seja por simples, mas inspirados e valorosos anônimos, que me encantaram ou mudaram algumas de minhas perspectivas. Cresci ao me ver diminuído diante deles. E como descobri coisas boas nas páginas do Recanto das Letras! Aqui há o mérito de permitir que pessoas sem preparo ou talento exercitem sua escrita, seja por ambição literária, seja por catarse.

Que dizer então dos textos de muitos escritores talentosos?

Em 2006 voltei a ler bastante: uma média de mais de dois livros por mês. Terminei de ler "Como a mente funciona" de Steven Pinker, que estava lendo de pouquinho em pouquinho, mas sempre voltando ao início, desde 1999. Foi o livro mais denso, mais completo, mais complexo e mais interessante que li em toda a vida. Trata com inteligência o funcionamento do cérebro humano e sua evolução. O autor, um dos mais respeitados, influentes e inteligentes cientistas americanos, executa um verdadeiro balé ao passear elegantemente pela psicologia, antropologia, sociologia, computação, neurolinguística, medicina, fisiologia, zoologia, história, matemática, religião e tantas outras ciências. O tipo de livro para se ler sempre.

Emocionei-me com "Budapeste", de Chico Buarque, livro cujas páginas faço questão de folhear de vez em quando, quando quero sentir de novo os mesmo arrepios por sua beleza literária e poética.

Encontrei Deus em "Uma breve história do Tempo", de Steven Hawkins, aquele gênio inglês que sofre de doença degenerativa dos músculos e que é um dos maiores cérebros deste mundo. É na imensidão do universo e na infinitesimal partícula de neutrino que a gente descobre que há um Criador por trás disso tudo. Muito maior do que a gente consegue compreender. Por isso, muito grande para que pequenos homens tentem explicá-lo, como certos profetas do apocalipse.

Neste ano livrei-me dos condicionamentos religiosos.

Descobri que os antigos xamãs, os mesmos da época das cavernas, sobrevivem até hoje encarnados em pastores, missionários, padres, ministros, exorcistas do diabo, bispos e outros encantadores de serpente, que se auto-intitulam "escolhidos", como se Deus fosse um ser imperfeito e não conseguisse chegar ao coração das pessoas a não ser por intermédio deles, os xamãs. Que, logicamente, usam dessa suposta "intimidade" com meu amigo "Barbudo" para exercer aquela antiga forma de dominação ancestral do homem sobre o homem, em troca de dinheiro, poder, prestígio, sexo, controle.

Alguns sem interesse no poder, realmente acreditam serem iluminados. Não buscam pagamento de nenhuma espécie. Mas, talvez, não se sairiam bem em um teste de sanidade.

Descobri que não dependo de religiões e de missionários para conversar com o Criador.

É incrível como depois disso passei a perceber coisas que povoam a mente das pessoas: umas acreditam em sorte/azar, como se o universo fosse um grande espírito de porco e resolvesse punir as pessoas por levantarem da cama com o pé esquerdo.

Algumas creem firmemente que o universo conspira a seu favor. Se tivessem consciência do tamanho do universo não pensariam assim.

Outras acreditam que dá azar dizer que algo não vai dar certo, mesmo que a lógica e as evidências indiquem que a probabilidade de insucesso seja extremamente alta.

Outras dizem que jamais ganharemos na loteria por não acreditarmos nela. Como se as chances fossem de um para um, ao invés de um para dez milhões, além da inevitável "cócega" nos dedos dos "incorruptiveis" políticos que administram o setor de loterias da Caixa. Pensem vem: quer achar uma maneira "limpa" de conseguir dinheiro sem fiscalização de CPIs ou de Tribunais de Contas?

Como dizia, livrei-me do condicionamento criado pelos homens detentores das "marcas, patentes, logos e grifes" das fés religiosas. Virei rebelde religioso! Já disseram-me que sou o próprio Demo! Já dizeram que parte do meu "azar" ou de alguns insucessos materiais são frutos do castigo de Deus.

Nem Buda, nem Confúcio, nem Cristo, nem Maomé, só para ficarmos nos homens santos mais conhecidos, nenhum disse todas essas bobagens e tolices que os xamãs tentam nos impingir diariamente.

E, para nosso desconforto, agora vivem pregando suas asneiras na mídia televisiva, radiofônica, internética e na cultura de massas cada vez menos intelectualizadas, enchendo estádios de futebol, vendendo discos, revistas, santinhos, arrecadando milhões em suas sacolinhas, sem contar as procissões à terra santa, a venda de lascas da cruz original, os óleos bentos dos 300 pastores e outros "produtos" religiosos, que, certamente, assegurarão um terreninho especial para nós no céu e milhares de propriedades para eles na terra.

Aos que pagam mais, o Senhor garantirá a primeira fileira. Quem sabe, pagando mais um pouco, uma audiência privada.

Libertei-me: fora com os mercadores de água de batismo, com os rezadores de encomendas de almas, com os que celebram casamentos como garantia de felicidade até que a morte me separe.

Fora com as promessas de cadeira cativa na melhor nuvem do céu ou com as ameaças de queimar na brasa mais quente do inferno.

Fora com os protestantes, os adventistas, os católicos, os umbandistas, os confucionistas, os muçulmanos, os kardecistas, os evangélicos, os judeus, os xintoístas, os budistas, os hinduístas, os taoístas, os... esqueci de alguma?

Salvem Buda, Maomé, Confúcio, Jesus Cristo, Abrahão e outros homens, como nós, mas com uma iluminação muito acima do nosso entendimento. Ah! Quase ia incluindo John Lennon entre eles. Este está muito acima de nós, mas quilometros abaixo daqueles.

Respeito quem ainda acredita nos xamãs. A fé liberta e promove curas. Mas a libertação e a cura estão dentro de cada um. Não precisamos de encantadores de serpente. A menos que sejamos dependentes mentais de outras mentes. Aí, sim, mereceremos ser teleguiados e temos que buscar urgentemente um bom xamã, como aqueles que procuram cartomantes na última semana do ano, para nos dizer as coisas que nossas mentes enfraquecidas desejam ouvir.

Neste ano procurei dar menos atenção aos amigos e aos filhos. Os filhos cresceram e atingiram aquela idade onde as idéias dos pais são ultrapassadas, suas palavras são "castradoras" quando apenas tentam alertar utilmente sobre coisas, situações e pessoas.

Parei sabiamente de dar conselhos. É bom que aprendam com os próprios erros e, se encontrarem novos caminhos, terá valido a pena correrem os riscos.

Já tivemos todos a idade deles e sabemos como fomos igualmente sábios e inteligentes aos vinte e poucos anos. Tão sábios que hoje somos ignorantes, superados que fomos pelo melhoramento genético visto em nossos filhos.

Tais melhoramentos, evidentemente, se deram espontaneamente em seus corpos, mentes e espírito, sem nenhuma contribuição nossa.

Os amigos envelheceram comigo. Chegamos naquele estágio onde o silêncio vale tanto quanto as palavras. Não há mais distância, mesmo que estejam a 1000 km da gente.

Quando um precisa do outro, a gente sabe onde achar quem nos conhece e quem nos quer bem pelo que fomos a vida inteira e não pelo pouco/muito que temos.

Querem riqueza maior do que poder rir ou chorar olhando nos olhos dos verdadeiros amigos? Confessar-lhes nossos medos e fraquezas, sem receio de passarmos ridículo? Ou, pelo contrário, contarmos nossas conquistas e, até mesmo, exibirmos despudoradamente nossa fragilidade ao demonstrarmos superioridade com uma conquista que sabemos ser mera cortina de fumaça, e que se desvanecerá nos primeiros raios de sol do dia seguinte?

Se não dei tanta atenção a eles neste ano foi porque suportaram a carga de me carregar nestes últimos anos difíceis.

Sei que os exauri. Mas, eles sabem também que sempre poderão contar comigo, não porque somos amigos, mas porque nossa relação chega à irmandade. Está além dessa dimensão.

Esforcei-me para poder ensinar meus alunos e passar mais que conhecimentos: passar experiência de vida.

Nem sempre a gente é bem aceito. Assim como o filho se rebela por ser forçado a tomar banho, escovar os dentes, não falar de boca cheia e assoar o nariz no lenço de papel, os alunos se insurgem com o rigor das tarefas, com a crítica corretiva, com a orientação não solicitada. Mesmo sendo adultos e, em alguns casos, mais velhos que a gente.

Mas, há uma grande diferença entre ser professor e ser educador. Um prepara para absorver o conhecimento, outro também para a vida.

Não há mérito em fazer "downloads" de cérebro para cérebro. Usando uma linguagem "mais moderna", é mais meritoso dar-lhes "up-grades", aumentar-lhes a capacidade de memória, a velocidade de processamento, fazer com que aprendam a estabelecer co-relações, a saber interpretar a realidade e a terem direções corretas e éticas.

Fui sinceramente recompensado por olhos que brilharam, por bocas abertas de admiração, por corpos estáticos nas cadeiras para não perder uma simples palavra. E, muitos foram espontâneos nas palavras de viva-voz, nos e-mails e até mesmo em singelos bilhetes no rodapé da última página da prova final.

Estes "obrigados" recompensaram-me de forma que nem sequer imaginam. Num país onde pernas e bundas valem mais que cérebros, que motivação pode ter um professor que não a motivação e o respeito dos seus alunos?

É certo que de alguns ouvi nomes feios, riram sarcasticamente de alguns ensinamentos, tentaram me enganar se enganando. A esses dei a maior punição que um professor pode dar: como vingança, aprovei-os com exagerado mérito! Quem melhor que a própria vida para dar-lhes a verdadeira resposta? Então, minha contribuição foi apenas elogiar seus cantos desafinados como na fábula da raposa e o corvo. Que caiam na própria armadilha que estão armando para si próprios!

Aprendi que as pessoas medíocres procuram ocupar os espaços no poder. O que as pessoas inteligentes fazem com os pés nas costas, as medíocres nunca conseguem ou, quando conseguem, o fazem com grande esforço e sacrifício.

Por isso, lutam bravamente para atingir o poder e, uma vez encasteladas, passam a inibir todas as formas inteligentes de fazer as coisas melhorarem.

Qualquer idéia nova é ameaçadora, seja porque pode desnudar sua mediocridade, seja porque não saberão implementá-la com adequação, seja porque não conseguirão mais exercer controle sobre as pessoas.

Por isso, é raro que pessoas inteligentes estejam no poder. Para isso é necessário que, além de inteligentes, tenham sede de poder, tenham coragem para dizimar concorrentes. As pessoas inteligentes, são inteligentes demais para lidar com essas mediocridades. São inteligentes demais para serem mesquinhas.

Gostei e desgostei de pessoas.

Encontrei uma pessoa que pensei ser especial. Realmente era especial. Era como um cheque especial da maioria dos bancos: seu prospecto era bem elaborado, vinha oferecendo facilidades de uso, vantagens e bônus exclusivos, crédito ilimitado, acesso diário à Internet, saque a qualquer momento, cartão de fidelidade, mas escondia juros e obrigações contratuais em letras miúdas.

Como todo contrato, era bem genérico, podendo se adequar a qualquer cliente. E eram vários os clientes. Excludente quando se tratava de direitos e bem preciso nas cláusulas das obrigações.

Não se foi da forma que veio. Veio devagar e saiu de repente. Veio suave e saiu quebrando portas e janelas, cortando-me as pernas. Veio com muitas palavras e promessas. Foi-se sem palavras, em silêncio, numa mudez barulhenta.

Gostei de novo, desta vez com o pé atrás. Não deu certo. Pé atrás faz a gente perder o equilíbrio. Houve um certo radicalismo político acima da flexibilidade da paixão romântica. O que será que a política tem a ver com o sentimento de uma pessoa por outra? Bem, se duas pessoas não compartilham os mesmos ideais políticos, não compartilharão os lençóis, a pasta de dentes ou a última taça de sobremesa da geladeira.

Gostei outra vez. Gostei descompromissadamente de alguém sem compromissos comigo. Foi esse compromisso mais descompromissado que mais durou. Durou porque descompromissado. Vivendo um dia de cada vez, como deve ser! Com elevado grau de tolerância. À prova de erros, mesmo sendo completamente errado. Funcionou!

Como pôde ser tão volúvel o meu gostar? Talvez por gostar de gostar!

Será que todos que têm a poesia no coração têm igual facilidade de gostar? E como gente como eu gosta de gostar! Será que não enjoamos dessa insensatez de gostar renovadamente a mesma pessoa, cada vez com um corte de cabelo diferente, outras cores, um outro sotaque, outra idade, outra criação, outra experiência de vida, outra vida, mas sempre a mesma pessoa transmutada em mil faces diferentes?

Neste ano tive perdas, é claro! Perdi uma Copa do Mundo por autosuficiência e excesso de competência! Imaginem quanto dinheiro deixei de ganhar pela perda desta Copa do Mundo!

Perdi a cabeça muitas vezes. Perdi a hora da consulta médica. Perdi dinheiro em jogo. Perdi as chaves de casa. Perdi calotas das rodas do carro. Perdi uma eleição para presidente. Perdi um pé de meia novinho dentro da máquina de lavar. Perdi os arquivos no computador. Perdi a chance de mudar de país. Perdi o último capítulo da novela, como havia perdido o primeiro. Perdi a vergonha. Perdi a noção do ridículo. Perdi a noção das horas nas minhas demoras por aí. Perdi a conta das vezes que ri exageradamente por nada e das vezes que chorei por dentro, sem derramar uma lágrima sequer. Perdi a ilusão. Perdi a compostura. Perdi a alegria de viver. Perdi várias vezes a tristeza quando recuperei a alegria de viver que havia perdido. Perdi o humor. Perdi uma promoção das Casas Bahia. Perdi o jogo final do mundial de Volley. Perdi a despedida do Agassy e do Schumaker. Perdi muitos gols, batendo penaltis para fora num Morumbi lotado. Perdi uma Libertadores jogando em casa. Perdi uns quilos que depois achei. Perdi um CD da Ana Carolina. Perdi um amigo no avião da Gol mas depois o achei pois seu vôo era outro. Perdi uma morena burra e uma loira inteligente (ou foi o contrário?). Perdi uma corrente de ouro. Perdi um verso num poema e uma rima no mesmo verso. Perdi muitos neurônios. Perdi minutos preciosos fazendo nada! Mas, o que mais perdi, foram palavras, quando não soube o que dizer diante de tantas coisas que ganhei em 2006.

Neste ano a morte levou amigos. Amigos idosos, amigos jovens. Perdi amigos da minha idade.

Ao contrário do que costumam dizer nestas horas, não me deixaram com o coração vazio, muito pelo contrário.

Não me alegrei, é certo, mas se lamentei, lamentei não pela minha perda. Mas pela perda deles! Perderam a chance de viver mais um pouco, de apreciar o por do sol, deixaram de ver o arco-iris, deixaram de sentir o vento fresco batendo nas suas faces nos dias de calor, e nas noites de frio, perderam a formatura dos filhos, a vinda de futuros netos, a vitória do clube do coração, deixaram de fazer aquela viagem para o "estrangeiro".

Mas, o Criador os poupou de ver a criminalidade crescendo, a política se enxovalhando, os ridículos na tevê, as eleições fraudulentas por derrama de dólares do contribuinte, desviados para os bolsos do partido. Poupou-os de ouvir os cantores de rap onde o bandido é herói. Poupou-os de conhecer os messias da nova religião que tudo promete, o próximo livro-caixa do Paulo Coelho, a próxima crônica estéril e vazia, para consumo de massas, de Lia Luft, o próximo grande feito do grande e todo-poderoso imperador Lula primeiro, o que nada sabe, o que nada vê, o que nada faz, por isso tudo vale em um país de vale-tudo.

Se estes que se foram perderam por um lado, ganharam por outro. Também, lá no paraíso, quem vai se importar com estas migalhas de felicidade ou de tristeza?

Já que entrei no tema "Morte" e, ninguém pode garantir estar vivo daqui a um ano, gostaria de dizer aos parentes e amigos, que, se eu morrer em 2.007, não chorem por mim e nem por vocês.

Pelo contrário! Façam-me uma grande festa: bebam em minha homenagem. Brindem como se eu estivesse fazendo aniversário.

Na verdade, na morte estamos tendo um novo nascimento.

Doem meus órgãos. Todos estão bem conservados. Não tive vícios que os tivessem danificado.

Ao contrário do que algumas pessoas pensam, apenas nossa pele exterior envelhece. Temos a idade dos nossos sonhos! E sonhos não envelhecem! Por dentro temos tudo de bom se sempre cuidamos bem. Quero estar bem vivo no dia de minha morte. Com um bom preparo físico para correr mais que ela.

Mas, se ela me alcançar, só peço que não doem meu coração. Este está bastante usado e foi a parte que mais se danificou nestes anos que vivi. Por outro lado, se ninguém o quis quando estava vivo, ninguém vai querer agora.

É a única parte de mim que quero que enterrem.

Escolham uma praia de areia sedosa. Que seja uma praia deserta e que as águas alternem o verde com o azul, além do branco das espumas flutuantes. Que tenha gaivotas voando em profusão. Que tenha luz! Muita luz! Não se importem com cruzes, ou lápides, ou dizeres. Estas só duram uma geração. Quando muito duas. Cavem aquém da linha da maré. Quero que a água do mar tente me alcançar mas não consiga, para que eu me divirta como fazia quando era criança!

Se eu morrer em 2007, que seja em um dia de sol. Mas, que caia uma chuva quente nessa hora para poder aparecer um arco-iris. Olhem para ele e me verão caminhando tranqüilo, com as mãos no bolso, assoviando uma canção, em direção a uma grande luz. A mesma luz que me levará de volta ao planeta de onde vim e de onde estarei rindo e chorando por suas alegrias e suas dores.

Por isso meu coração deve estar naquela praia. Para que se lembrem que somos poeira das estrelas, fomos feitos de barro. A única coisa que se lembrarão é que meu coração estará sempre perto de vocês, pulsando em uma praia deserta, sentindo o calor do sol, ouvindo o barulho do mar, rindo da desistência da onda e voando com as gaivotas!

Por isso tudo é que 2006 foi um grande ano. Porque pudemos viver. E, se nos for permitido viver até o fim de 2007, ele será também um grande ano. Com todas as suas perdas e todos os seus ganhos.

Mas, se eu não chegar ao fim de 2007, por vontade de Deus ou por vontade minha, então sigam o vôo das gaivotas. Elas sabem onde está guardado o meu coração!

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 31/12/2006
Reeditado em 31/12/2006
Código do texto: T333003
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