O COTIDIANO FALADO E ESCRITO

Estimado Maildes, poetamigo!

Agradeço, penhorado, a remessa do ‘poema em prosa’ abaixo lavrado.

Sim, a rigor é uma prosa escrita em versos. Esta classificação açambarca o exercício da ‘prosa poética’, também, em que o texto é lavrado em frases, como na prosa usual: o cotidiano falado e escrito.

Tanto em uma como em outra classificação de textos em que a Poesia está presente, ocorre a necessidade do aparecimento da 'dama da linguagem' a que denominamos METÁFORA e que permite que exsurja duplo sentido: o conotativo e o denotativo. Constrói-se, deste modo, uma multivalência de interpretações do que está posto.

E o texto, em Poética, nunca é apenas o que está aparentemente posto. Nele estão contidos, quase sempre, outros entendimentos subliminares possíveis e desejáveis, ao talante do estro criativo. Alguns surgem à revelia do autor, na cabeça do leitor. Enfim, Poesia é linguagem codificada que enseja múltiplas possibilidades intelectivas.

Em poética da contemporaneidade, é no poema (anteriormente eram as formas de silabação fônica metrificada: haicai, soneto, acróstico, quadra, trova literária, etc.) que ela se materializa objetivamente, como numa peça de alto valor estético em que o ouro é matéria de sua composição. Chegar ao bom poema é tão difícil quanto encontrar na natureza o mais nobre dos metais preciosos. O poema de ‘encher os olhos’ é muito difícil de ser encontrado porque é material estético precioso e raro.

É muito difícil dizer-se muito em poucas palavras, já que a síntese de texto (poucas palavras, poucos versos) é a tônica da Poesia. Em verdade esta síntese sempre ocorreu em todos os tempos do conhecimento humano, exceto a apresentação formal dos longos poemas épicos, devido ao tema e sua historicidade. Não é à toa que o haicai tem três versos, a quadra e a trova literária quatro e os sonetos são apresentados em quatorze versos, exceto os que apresentam o estrambote.

Por causa das especificidades acima referidas quanto ao número de versos é que, na atualidade, o uso da prosa poética ganhou adeptos e apreciável notoriedade pública. Também porque livre de maiores exigências formais.

Na Poesia, diferentemente da prosa coloquial (de uso diário) a palavra traja o seu vestido de festa, indumentária inusitada que causa estranheza e alumbramento. Normalmente é a transcendentalidade do poema o que leva a estas sensações de ordem sensitiva e/ou intelectiva.

Na prosa poética ou no poema em prosa a exigência da metaforização é sensivelmente menor - mais rarefeita - do que na especificidade POESIA. Além de que as exigências de ritmação e cadencimento dos versos (no caso do poema em prosa) são menos específicas.

É o que se pode ver nesta peça textual. A linguagem é linear, facilmente entendível pelo leitor, exceto a codificação em 'linhas', correspondendo a anos vividos e a 'folha', que acaba sendo delatada, ao final do texto, como o plano em que decorre a própria VIDA. É somente no final que se abre o pouco que havia de metaforizado em todo o texto: “Viva a vida.”

Está muito bonito para saudar a passagem de teus oitenta anos. E me parece que este é o fato maior: render loas à vida e ao Mestre dela. Agradecer a possibilidade de continuar louvando a permanência nesta margem e fazendo prosa e verso pra marcar a senda de nossos passos. Deus te guarde na sua Onipotência e Onisciência.

Saúdo com imensa alegria a confiança e o teu gesto amigo de me agraciar com a tua escritura dos oitenta. Que a tua folha tenha mais linhas e história pra ser contada. Num país de um amado povo que pouco lê e que, portanto, tem pouca memória pra ser relatada aos pósteros, sobra aos seus escribas a ingente missão de ser navegante e relator de suas pegadas.

Aliás, tanto na prosa como no verso, a regra é que o que escrevemos seja fruto do subjetivismo, porque cada qual vê o mundo como o concebe. E o relata à sua moda e jeito, seja na prosa ou no verso.

Quanto ao gosto estético, cada qual escolha a sua rosa ou os seus fantasmas. O mundo é sempre uma incógnita pra quem quer traduzi-lo. Às vezes somos pássaro, em outras, um terrível dragão.

MINHAS 80 LINHAS

Maildes Alves de Mello

Não me desfaço

Desta folha de 80 linhas.

Hoje todas usadas.

Nem uma

Em branco, passadas.

Era branca a um tempo.

Mas há seu tempo

Nelas registrados

Pensamentos,

Atos,

Fatos.

De uma vida

De Deus recebida,

Com amor sem medida.

Bem vivida.

Por vezes sofrida.

Mas de amor

Nunca regateado,

E dele muito mais

Ganhado.

De coração transbordante,

Não faltou um instante

De acolher com emoção

O que veio do coração

De quem me foi

Importante.

O tempo passa.

Mas o que hoje se repassa

São frutos do amor.

Acolhidos no amor,

Pelo amor,

Também acolhido fui.

Daí se percebe,

Que mais se dando

É que mais se recebe.

Assim aqui estou.

Não para parar.

Mas para continuar,

No que resta

De uma grande festa.

Da vida não fujo.

Ela foge de mim.

Mas mesmo assim,

Registro meu intento,

Seguro minha folha

Contra o vento!

Da folha que foi branca,

Ainda tenho como minhas

Mais do que

As 80 linhas,

Também seu verso.

Não sei

Quantas linhas

Mais faço.

Mas não abrando o passo.

Continuo caminhando,

Com a folha que foi branca.

Mas, repito, e sustento:

Mesmo contra o vento,

Desta folha não me desfaço.

Viva a vida.

Porto Alegre, 10 de abril de 2008.

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre Prosa e Poesia. Porto Alegre, Alcance, p. 50:3.

http://www.recantodasletras.com.br/cartas/991444