A INDÚSTRIA DE TRANSFORMAÇÃO
 
 
A ferradura dos meus sonhos.
 
 
Quem lhes conta esta história que agora passo a narrar, sou eu mesmo, pois eu fui um menino que nasceu em plena segunda guerra mundial, exatamente no dia 18 de maio de 1942. Tal evento, o do nascimento desse menino, se deu numa pequena cidade do sul de Santa Catarina, Imaruí, localizada num enclave entre uma lagoa e as elevações secundárias da serra do mar. Seus pais eram pobres, assim como eram todos os vizinhos e parentes. Em função dessa situação, eles se viram obrigados a buscar o sustento para a prole na cidade de Lauro Muller – S C. Lá, eles resolveram morar num bairro ou povoado de mineiros, chamado de Barro Branco. Depois de algum tempo, eu não sei por qual razão, a família se desloca de volta a sua origem, ou melhor, para Imaruí.
Nessa época, na década de quarenta, já estavam construindo a ponte de concreto no estreito de Cabeçudas. Fato que até hoje sentimos, pelo estrangulamento do canal alimentador da nossa lagoa. É que, na época, não houve um estudo sobre o impacto que haveria de causar sobre a vida marinha da lagoa. Estou fazendo esta referência de passagem, porque o meu pai trabalhou na construção dessa ponte como apontador.
 
Uma vez de volta à cidade de origem, o meu pai resolve se estabelecer com uma funilaria ou latoaria. Sem outra alternativa para alimentar os seus. Então, ele resolve aplicar o que havia aprendido em São Paulo, quando lá esteve trabalhando nesse mesmo ramo. Mais tarde, em um dos meus poemas eu chamei essa funilaria de indústria de transformação, um poema na quinta rima com o título: A indústria do Manacá. Essa pequena e mal chamada indústria, era na verdade, quase toda artesanal, pois era muito evidente a falta de capital para investir em máquinas. Mesmo na forma artesanal, ela era tratada com muito zelo, tendo em vista que a clientela, principalmente a do interior, aumentava os seus pedidos de lamparina a simples e a de dois andares, formas de mãe-benta, bules, boiões, chuculateiras, formas de pão e algumas bombas de tirar querosene da lata. Assim que os pedidos eram atendidos ou manufaturados, as luzentes encomendas eram devidamente separadas e embaladas em jornais velhos.
A matéria-prima, as folhas de flandres ou latas, vinham de navio de São Paulo a Laguna - SC, e, dessa cidade vizinha, chegava a Imaruí também por via marítima, na lancha do Senhor Dino. E, lá do trapiche, um porto improvisado, ela era transportada de carrinho de mão até ao seu destino final, a funilaria. As folhas de flandres eram riscadas com os moldes, com os quais se pretendia manufaturar o objeto desejado. Entretanto, esse era um trabalho paciente, a fim de aproveitar ao máximo a matéria-prima e evitar o desperdício. Depois desse processo, era a hora do meu pai cortar com uma tesoura o corpo desenhado do futuro objeto. E, logo em seguida, seria dobrado na forma que se pretendia dar e, em ato continuo, todos eram submetidos à solda, um processo lento e que exigia muita prática. Depois de realizadas todas as soldas, chegava-se a fase final, a fase do acabamento artesanal. Novamente, as peças já prontas eram selecionadas e submetidas a uma pintura, geralmente ramos de flores, um processo também à base de moldes de papelão. A pintura era executada com uma bomba de matar mosquito, “bomba de flitz”, que era muito usada naquela época.
O processo de entrega era o mais primitivo possível, pois eu e o meu irmão mais velho, com um cambão às costas transportávamos as mercadorias que nos dariam o sustento. Nessas ocisões, o meu pai também ia junto e, andando a pé, pelas estradas nós íamos rasgando alguns quilômetros e a madrugada silenciosa. E eu, caminhando em silêncio, contava as estrelas que caiam por trás das montanhas. Nessas jornadas mais do que matutinas, o meu pai, no ritmo dos nossos passos, nos contava as suas proezas de quando serviu o exército em Jaguarão – RS. Na verdade, eram causos de duvidosas quarteladas, mesmo assim, caminhávamos silenciosamente, num passinho apressado para chegarmos bem cedo ao nosso destino, e assim, nos livrar daquele cambão que roçava os nossos ombros.
Com o aumento dos pedidos e o consequente aumento do faturamento, o meu pai resolve comprar uma charrete com um cavalo para fazer as entregas. Nós fomos dispensados das grandes caminhadas dentro da madrugada, mesmo porque, elas passaram a ser longas e os pedidos eram muitos. Ao cavalo, o meu pai deu-lhe o nome de Napoleão, pois era branco, entretanto era magro e sarnento. O Napoleão se parecia mais com um velho doente e aposentado. E, para contribuir mais com o seu estado de fraqueza, havia alguns carrapatos que lhes sugavam o derradeiro e escasso sangue. Ah, no dia da primeira entrega com o Napoleão, tudo era uma festa, e nos acordamos mais cedo para ver o carregamento e a partida da primeira aventura, a caravana dos sonhos de meu pai. O Napoleão batia com os cascos no chão e das suas narinas saia um vaporzinho. Eu tive até a impressão de que ele estava gostando dessa prometida jornada. Infelizmente, a primeira viagem inaugural não se realizou totalmente. Pois o Napoleão, sôfrego e velho não suportou a subida do “Morro do Suspiro”. Coitado! Foi abatido por um fulminante e cavalar infarto.
Diante do triste acontecimento, o meu pai e o seu fiel escudeiro, o Gregório, voltaram para casa, puxando eles mesmos a charrete em lugar do falecido Napoleão. O fato é que não me lembro mais como as mercadorias foram entregues. Talvez tenha sido com outra carroça e com outro cavalo mais novo. Essa mal chamada indústria de transformação perdurou por algum tempo, pois já tinha até empregados, ou melhor, empregada, a Silóca, que muito ajudava na pintura das manufaturas e no setor de expedição. Bom, o Napoleão já não existe mais, a charrete apodreceu com o tempo. No lugar da indústria ou funilaria, hoje é uma Igreja Evangélica. Aquela indústria de transformação, pois viria a transformar os sonhos de um menino. Mesmo agora, depois de me transformar num velho menino, ainda ficou perdida uma velha ferradura que cisma em povoar os meus sonhos.