O GOLFINHO E O PESCADOR

Aconteceu um dia ...

Tinha oito anos de idade. Final da tarde de domingo. O único divertimento para os meninos era acompanhar os adultos - homens - até a praia para ajudá-los em pequenas tarefas de reparos dos instrumentos de pesca. Parque de diversões não era conhecido; cinema era considerado um sonho distante para as crianças na Praia de Areias Alvas (¹). Nesse período ouviam-se histórias interessantes, outras assustadoras. As meninas permaneciam em casa ajudando as mães na preparação do jantar. Do descamar do peixe ao cortar a lenha para acender o fogo.

Certo dia, os serviços de reparos acabaram cedo. Para evitar que o grupo retornasse logo pra casa, mesmo por que era noite de lua cheia, e esse satélite já começava a clarear refletindo seus raios no espelho d'água. Um dos tios, o mais falastrão “vou contar a vocês a história de uma toninha (²) verdadeira”. Entusiasmado, falou de um enorme peixe que nadava em águas profundas do mar e não atacava o homem. Enquanto isso, a criançada senta-se em redor do contador de histórias. Ele olhou pra cada um de nós com a expressão de quem estava pra contar algo aterrador. Profundo silêncio. Quebrado, apenas, pelo murmúrio das pequenas ondas da maré baixa da costa de um pedacinho do Atlântico.

Subiu na jangada que se encontrava suspensa por dois pedaços do tronco de coqueiro. Expectativa geral. Os ouvintes aguardam com ansiedade. Depois disso, tio Raimundo, conhecido por Mundinho, colocou a mão num bolso retirou um rolo de fumo, do outro a caixa de fósforos e da cintura puxou uma afiada faca. Desfiou e cortou em pedacinhos a sua relíquia. O chapéu que estava na cabeça serviu de anteparo para o vento na hora do acendimento do cachimbo. Depois de algumas puxadas no canudo, uma, duas, três baforadas, recolocou o chapéu e, como estivesse procurando palavras para dar começo à história coçou a barba, enrolou o longo bigode de olhos fixos no mar.

- Prestem bem atenção. Vou contar agora uma história contada por meu pai que ouviu do avô dele que disse ter ouvido do seu pai.

Foi assim ...

Ventava muito em alto mar. O jangadeiro foi surpreendido por uma onda tão grande que provocou a destruição da sua jangada. Mesmo assim, conseguiu apoiar-se num dos pedaços ficando a deriva durante muitos dias. Sobreviveu alimentando-se de alguns peixes que ficaram no cesto que conseguiu alcançar depois da ventania, estando o mar bastante calmo. Dia e noite se passaram. O pior estava para acontecer. Em dado momento, em sua volta apareceram tubarões famintos, pronto para devorá-lo. Mesmo atordoado devido à insolação conseguia rezar. Em sua rogativa pedia a proteção de Deus. Eis que de repente apareceram algumas toninhas, fizeram um cerco a fim de o proteger dos predadores. Uma delas aproximou-se mais. Encostou-se ao pequeno destroço e começou a empurrá-lo com a cabeça enquanto as demais saíam em perseguição aos tubarões. Horas após horas de trabalho do seu salvador até chegar à beira mar. Depois de ter sido arremessado na areia o pescador retornou a consciência. Cansado, demora a levantar. Quando isso aconteceu percebe que a toninha ficara encalhada, debatendo-se para voltar pro alto mar, de onde tinha vindo, a fim de encontrar seus pares.

O mais triste dessa história foi a indiferença do homem quanto a situação do peixe que lhe trouxera para os seus semelhantes. Numa atitude cruel foi em busca de moradores naquele trecho da praia para retirarem o peixe da água e depois cortá-lo em pedaços.

- Uma pessoa muito má. Comentou um dos ouvintes. Outro, falou meio zangado dizendo.

- Esse pescador não mereceu ser salvo. O lugar dele é no bucho dos tubarões.

Cada um dava sua opinião a respeito da atitude do pescador. Por unanimidade, repudiavam o ato e o tio escutava. "Eita, mexi com as cabeças dessas crianças", murmura baixinho. Assim o contador de histórias termina ...

- Depois de meu pai haver me contado essa história fiquei muito tempo pensando. Então cheguei a comentar, meio irado “quando a gente vê uma pessoa morrendo o melhor que deve fazer é pegar um pau e acabar de matar”.

"Só sei que foi assim". Concluiu tio Mundinho.

- Está na hora de vocês tomarem o rumo de casa, seus moleques !

- Sua bênção tio, sua bênção tio. Um por um aguarda resposta.

- Deus abençoe todos.

Seguem todos em disparada, subindo e descendo as dunas alvas do lugar.

(¹) Na década de 1940 pertencia ao município de Areia Branca.

(²) Golfilho, peixe muito inteligente.

valano
Enviado por valano em 10/03/2015
Reeditado em 10/03/2015
Código do texto: T5164506
Classificação de conteúdo: seguro