Há uma história que Balner não cansa de contar. Em cursos de pós-graduação todos os alunos têm os e-mails de todo mundo do grupo. Berenice não era feia nem bonita, Ovídio diz em seu livro A arte de amar, que em relação a uma mulher devemos elogiar a qualidade que mais se aproxima do defeito, não há beleza absoluta nem feiura absoluta, embora a beleza absoluta exista ao menos de forma momentânea e a feiura absoluta possa ser construída pela mulher mais linda que houver no universo.
Em cursos de pós-graduação todo mundo tem o e-mail de todo mundo. Aí um dia, abriu um e-mail de Berenice com o seguinte conteúdo: Stanislaw você precisa de sexo, preciso de dinheiro, se você quiser podemos conversar. Está maluca, pensou, não levou a sério. Então já estava com cinquenta e cinco anos, Splenger diz que um homem é a mesma coisa desde os cinco até os cinquenta anos, depois começa sua decadência, ah, não sabe quem é Splenger, pô? Oswald Splenger, vá pesquisar quem é esse gigante. Borges disse ou diz que Splenger ao escrever A decadência do ocidente fez uma tese canoa furada. Mas realizou um monumento estético. De fato, Splenger influenciou escritores como Rubem Fonseca e poetas como Dante Milano, o mais splengeriano dos poetas, ao menos no que diga respeito a uma concepção splengeriana do corpo.
Você é prolixo – dirão um dia, com toda razão, para o Stanislaw.
Na aula seguinte, no Curso de Especialização em Estudos literários que fez na Universidade Federal do Espírito Santo, Amém, quando encontrou Berenice, Ernane abraçou-a fraternalmente e disse: Boa noite! Um beijo fraterno desfaz constrangimentos. A amizade entre um homem e uma mulher sempre é atrapalhada pela lei da atração, homem só quer ser amigo de mulher que o atraia, mulher só consegue ser amiga de homem que a faça sentir mulher e a atraia sem que ela queira levar essa atração a cabo para a amizade não acabar. Isso é corrente numa família normal onde o irmão-macho e a irmã-fêmea são atraídos pelo sangue. A coisa de haver uma amizade assim entre um homem e uma mulher não saídos de útero único é uma das mais belas do mundo. Meio-homem, meio-mulher o gay é estimado pelas mulheres, mulher gosta de estar com gays. Nessa questão de gay ou não gay o Balner pensa o seguinte “Não batismei, não crismei e não como gay!”.
Quando viu Berenice sentada no chão a chorar, chorar, chorar perto de um aluno motoqueiro sentado na motoca, no hall de quiosques da universidade em frente ao prédio Bernadette Lyra, Stanislaw perguntou: O que houve? O motoqueiro foi embora estacionar ou amarrar seu burro em outro lugar. Berê disse: Vou me suicidar, aqui não existem seres humanos. Até prova em contrário o capixaba não é solidário nem no câncer, salvo alguns pouco milhares ainda não encontrados todos entre os que aqui habitam. Silêncio. Ela dizia coisas ininteligíveis. Ele disse: Tome meu cartão, você tem meu e-mail, telefone a hora que precisar, quando estiver pensando besteira liga para mim, a qualquer hora, a gente sai, bebe um café, café move montanhas.
Quando chegou a casa disse para a mulher, odeia a palavra esposa, que uma moça ia ligar por tais e quais motivos. Tudo bem.  Berê ligou. Falou durante uma hora, não se lembra de uma palavra escutada atentamente.  É estranho o discurso do sujeito com ideação suicida, na medicina como no amor nem jamais nem sempre, dizem os franceses, nada é regra geral, mas o suicida não diz coisa com coisa, o potencial suicida ainda faz tentativas de dizeres de algo, os escorpiões são como os samurais, o autêntico suicida, aquele que difere do suicida acidental que nem quer se matar, mas acaba se matando para matar a dor insuportável de viver, sim, é como um samurai: se mata friamente e adrede. Ou se finge de morto para contra atacar, que é na verdade o que faz o escorpião que não é igual a samurai coisíssima nenhuma que isso de escorpião se suicidar é mito, e essa informação pode ser importante por estarem depilando as florestas com saída de bichos dos seus habitats, inclusive o escorpião amarelo que tem mordido e matado um bocado de gente em seus próprios lares, ultimamente.
Stanislaw seria o suicida acidental se tivesse conseguido se matar, mas na hora agá, sendo médico pediu ao seu psiquiatra para não prescrever o remédio A, que o mataria em overdose, e sim o remédio B, menos depressor do centro respiratório. Então apagou um tempão, mas não morreu, mas a hora agá agora é a de Berenice.
Chegava à faculdade de letras, quando furioso o professor Negrão saía do prédio Bernadette Lyra, felizmente, desabafou: nós vamos expulsar aquela garota. Tirou a roupa na rua, quando saiu com um casal de alunos. O que é isso, Negrão? Não vai expulsar ninguém, estou em função de assistência àquela aluna, ela está maluca, você nunca foi jovem não, cara? Nunca pirou?!... É isso é uma visão diferente, questão de alteridade... Olha, sou médico, a moça está sob algum risco; tem fantasias de atentar contra a própria vida, facilitar o suicídio do potencial suicida é crime, se acontecer alguma coisa com a moça por causa de repressão acadêmica o responsável vai pagar muito caro. Não tranquilo, é preciso respeitar a alteridade.
Ninguém gostava de Berê, nem ela mesma. Até o fim do curso de Especialização em Estudos Literários ninguém tocou nela. Chegava o fim do curso, o pai dela ligou para a casa dele, Alô, quem é? É o pai da Berenice. Sim. O senhor pode vir aqui? O que é? Pode vir aqui? Qual o endereço? E foi. Ao entrar viu Berê sentada no sofá e os pais de pé. O que houve? Ela não quer entregar a monografia. Por quê? Porque vão me reprovar. Oras; se você não entregar quem vai se reprovar é você. Deixe o professor trabalhar, reprovar ou não reprovar é o trabalho dele. Não o seu, o seu é o de entregar a monografia. Ela entregou. Ela concluiu o curso, disse o professor, mas aqui não fará mestrado. Dois anos depois, ao ir assistir a uma defesa de tese sobre a obra de Florbela Spanca em intertexto com Rubem Dario, defendida pela escritora Renata Bonfim, ao sair da brilhante defesa de tese de doutorado, encontrou Berenice. O que está fazendo aqui? Mestrado. Parabéns.
Negrão é um desses caras militantes de todas as boas causas do mundo. No Setembro amarelo, posta coisas nas redes sociais em prol da solidariedade com os suicidas. É um bom filho da puta. Existe uma diferença entre gay e os veados. Gay é o homossexual que tem hombridade, veado é o homossexual que não tem hombridade, esse conceito é novo, ninguém sabe e nem saberá, ninguém lê, menos você.  Aqui não falo apenas de veados, falo de todos os homens gays ou não e mulheres,  lésbicas ou não, cheios de bondades teóricas. Essa canalha tem necessidade de ser gente boa para caramba, mas não estende a mão a um amigo ou conhecido que esteja naufragado em uma poça, aliás, como a maioria das pessoas aqui nessa terra do Espírito Santo, Amém.
Não posso ir aí. Mas eu tentei me suicidar, disse Stanislaw, procure alguém da sua família, disse. O Negrão diz que não tem disponibilidade, é formado em psicologia, letras e o cacete a quatro mas não faz nada para não tomar pé do problema alheio minimamente. Quando achava que estava com câncer de pulmão de tabagista apelou para o amigo médico, que como médico tranquilizou-o um milhão de vezes. Pedro Nava, o médico memorialista e escritor não deixou amigo ir ao suicídio, será que só quem é sincero com as pulsões de morte consegue ter compaixão? Será a literatura de autoajuda essa filha de um tempo em que não existe o outro ajuda? Negrão é um bom filho da puta, quando Stanislaw melhorou pediu que fosse à sua casa examinar um empregado, e o Stan foi, de graça, porque o empregado não tinha nada a ver com a história de um fim de amizade. Negrão, adrede, é um bom filho da puta. Academicamente só dá alento aos seus afilhados, quer ser uma mãe, mas não quer ser para todo mundo. Diz que escreve sobre a mulher porque nunca compreendeu a mulher. Oras, nem ele nem Freud, nem elas. Sente saudades apenas do médico que tinha à disposição como amigo. O que eu sinto falta mesmo é das suas visitas como médico, diz, e faz uma carinha de carente simpático.
Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 12/09/2018
Reeditado em 13/09/2018
Código do texto: T6446627
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