Alardeamento

Era um sertão. Ainda que não fosse um norte, aquele fim de mundo era visto como sertão.

Lá estavam uns esquecidos, alheios ao resto do mundo senão àquele espaço reduzido que conheciam como tal.

Num tempo onde não existia o que hoje conhecemos como meios de comunicação, e a televisão viria a aliviar o tédio só muitas décadas depois, moravam num vilarejo de sossego e chão de terra batida, numa casa muito singela, dona Rosa e seu Agenor. Este era muito sisudo, sujeito austero, de meia idade, que junto com sua Rosa dava conta das afilhadas. Eram duas. Linda flor e Margarida. Ambas não conheceram a mãe e ainda pequeninas foram deixadas aos cuidados do casal para que as criasse.

O pai, um coitado. Não tinha condições de cuidar de suas filhas tendo perdido a mulher naquele triste parto. Era o melhor que podia fazer. Caiu no mundo desde então, e nunca mais se soube notícias.

Mas não fora como filhas que as pobres meninas foram criadas não. Como afilhadas as benditas sempre foram bem-vindas, mas conforme cresciam, iam sendo muito mais... Mais mulheres, mais ‘uteis’, mais prestativas, e passaram a lavadeiras, passadeiras, costureiras, cuidadoras daquele lar, já que dona Rosa, nem sempre num mar de rosas as deixavam habitar. Ainda assim, desta senhora rígida, viriam a conhecer o amor e a compaixão que divinamente, só uma mulher poderia proporcionar.

Seu Agenor, por sua vez, deixava claro que não era pai. Nunca quisera ter filhos, pois primava muito pelo sossego e dizia que choro de criança birrenta era como latido de cachorro, um martírio de suportar. Por isso mesmo que qualquer desavença que porventura houvesse, deveria ser tratada quando ele ali não estivesse, pois quando ele aparecia já no portão, toda discussão findava, bastando só um olhar pra sinalizar que era o fim.

Ninguém ousaria discutir com seu Agenor. Homem de poucas palavras, cabra macho, desses que acredita que a mulher deve adivinhar de antemão suas querências e lhe proporcionar de tudo, antes mesmo que tenha de reclamar ou pedir. E dona Rosa parecia entender perfeitamente as vontades de seu homem. Assim, deixava tudo no jeito quando se aproximava a hora dele se achegar do trabalho, como dizia. Comida pronta, as galinhas alimentadas, as plantas aguadas, e as meninas a recebê-lo no portão. Era assim a rotina daquela gente naquele sertão.

Mas as sextas-feiras, as coisas mudavam um pouco de figura.

Era esse o único dia em que seu Agenor ficava até mais tarde na rua. Quando chegava mais cedo, saia após o jantar, sem sua Rosa notar e só de madrugada voltava.

O que fazia naquele fim de mundo? Bailava, oras.

O baile é sagrado no sertão. O ponto de encontro de todos os desassossegados da região, fossem solteiros ou não. As mulheres dali os levavam a perdição, e ao som das violas os convidavam a esquecer o quão tediosos eram os dias ali, naquela existência banal, sem maior razão de ser.

Mas dona Rosa não acreditava que seu Agenor pudesse se enrabichar com algum rabo de saia. De jeito algum. E fazia sua marcação. Por isso mesmo, de sexta-feira, era comum seu Agenor chegar mais cedo do trabalho e vir com mimos, todo bem-humorado. Ela gostava por demais desses dias em que seu homem conseguia a alegrar. Tanto assim que nem sempre percebia que depois da janta e da vossa folia, quando ela cansada, já dormia, seu homem partia...

Mas essas sextas de alegria sofreriam outro tom.

Foi a partir do dado dia que a pidona Margarida quis um cão. E foi chorar.

Chorou tanto a pobrezinha, pedindo para sua madrinha deixá-la ter um animal a quem amar.

Era cria de uma vizinha, que nascera por aqueles dias e a menina vendo o bicho, logo se encantou.

Um vira-lata gorducho, que lambia qualquer um que lhe desse atenção. A moça insistiu tanto que não houve outro jeito a não ser concordar.

O problema na verdade, era que seu Agenor não gostava nem de bicho, nem de nada que chorasse, muito menos que latisse, e implicava assim, sem mais.

Ninguém entendia bem o motivo, se diante de tanta meiguice, teria alguém que resistisse só por conta de um latir.

As mulheres, maioria, ecoando aquela tríade conseguiram aceitar que o cão de nome Bento ficasse do lado de fora, adentrando só nas horas que Agenor não fosse estar.

E esse cãozinho doce, logo se fez fiel e cuidador daquele lar.

Não importava quem fosse, se chegasse no portão, começava a alardear.

Mas bastava um pedido de Margarida, e ele então se encolhia, logo de prontidão. Nem Linda flor tinha tanta conexão com o amável cão.

Desde que Bento passou a habitar o quintal, seu Agenor teve complicações. Era complicado sair e voltar pra casa sem ser notado. O cachorro já rangia quando ele, pé ante pé saia. E então, quando retornava, lá pelas tantas da madrugada, tropeçando no portão, não tinha como não ser delatado pelos latidos do coitado, que talvez, preocupado, anunciava a situação.

Toda sexta-feira já não era como antes, e tinha de planejar bastante o que fazer pra cair na folia, sem que sua mulher o pegasse, pois, as brigas, já agora eram comuns quando Bento a acordava e ele sem dizer nada, chegava a cambalear. Na verdade, Agenor dizia, mas dizia ao cão, a quem lhe tolhia, e não fazia economia de xingamentos a lançar. Era então um tal de "cão maldito, filho d'égua, desprovido, bicho tosco e te mato seu Margarido", que o bicho passou a escutar.

Nem sempre Rosa acordava, mesmo assim Bento não se livrava de Agenor lhe amaldiçoar.

Linda flor sempre dizia que era quando Agenor bebia que mudava assim de tom. Margarida se encolhia, e no seu peito sentia muita pena do animal e nessas sextas-feiras terríveis, ela sentia muita raiva, coisa que nunca sentira e isso viria a aumentar.

Mas tudo tem limites. Mesmo num fim de mundo tudo acaba, ou aqui, ou lá.

E lá também acabaria, mas o que ninguém sabia era como findaria essa história do alardear.

Sol a pino, em certo dia, no calor do que viria ser noite quente logo mais, Agenor saiu de casa, animado a trabalhar.

Combinou que nada iria atrapalhar aquele dia, e que ele não gritaria nem mesmo com o animal, pois nada poderia prejudicar sua diversão.

Chegou com esse ânimo, carregando até um sorriso que sua Rosa fez notar.

Já o aguardava banhada, toda cheirosa e de janta arrumada, e uma bela galinhada o feliz casal comeu.

Foram muitas as risadas, com direito a piadas, chamego e conversas apimentadas de caloroso tom. As moças recolhidas em seus quartos também riam, quando as risadas ouviam e imaginavam o porvir. Elas gostavam de ver Rosa desabrochando nesses dias, e assim até se permitiam a imaginar como seria quando arrumassem alguém pra namorar.

-Como será que é beijar? - Indagava Linda flor, mas Margarida recatada, já dizia ser pecado ir além no imaginar.

-Quando chegar a hora saberemos, mas só depois de se casar.

Lembro que eram outros tempos, muito antes vinha o galanteio e só depois se davam as mãos. Era assim que os jovens casais procediam naquele sertão.

Mas as mulheres da vida, essas sempre em qualquer tempo, se permitiam beijar.

Por isso mesmo Agenor gostava tanto de farrear...

Mas voltando àquela noite, onde Rosa se espremia nos braços de seu Agenor, que após lhe ver caída, exausta e bem servida, sentia que já podia se preparar para bailar...

Sua função ali estava cumprida, e ele só não queria que sua querida descobrisse que ele ainda queria mais.

E juntando os restos de frango, foi abrindo a porta e convidando o cão. Esse veio desconfiado, mas tão logo sentiu o cheiro da carne, pôs-se a comer.

Enquanto ele comia, Agenor seguia, passo a passo a se distanciar, rumo ao sapê da vila, o baile da sexta-feira, onde as flores mais vivas o esperariam por lá.

E feliz por conseguir sair sem nenhum ranger de Bento, se entregou aos braços morenos de Rita Laura.

Entre uma dança e outra, entre uma moda, e uns goles, já se viu na ruivez de Lindalva. Era uma raridade, naquele sertão de abrasar, a clareza que contrastava, entre as demais mulheres, todas morenas, assim como sua mocidade.

Agenor se sentia o mais abençoado dos homens naquele instante. De fato, era uma formosura, que regateava na madrugada, marcando a memória daquele homem com os sons mais doces que ouvira, de gemidos e sussurros.

Não, ele não lembrava que tinha uma Rosa em casa.

Nos braços de Lindalva ele voltava a ser um jovem rapaz,

E não pensava além daqueles instantes, tão fugazes, tão efêmeros que poderiam durar mais.

Mas o tempo, também é cruel naquele lugar, ainda mais nas sextas-feiras...

E assim foi que não percebeu a madrugada lançando os primeiros limiares do dia, tingindo o céu de um tom alaranjado, como os cabelos daquela ruiva. E se deu conta de que tinha de voltar.

Descuidou de tudo, pois tinha perdido a noção do tempo. Nunca tinha chegado tão tarde, ou no caso, nunca tinha chegado tão cedo, com o dia vindo a clarear.

Talvez tenha sido por isso que ao invés de retornar no passo lento, se pôs a pisar forte e em momentos até correu.

Ao virar a esquina, vendo já o portão, apertou ainda mais o passo e sua respiração ofegante rasgava o silêncio nos intervalos em que o cantar dos galos permitiam já algum.

Bento a postos, percebendo tudo estranho, tantos barulhos incomuns, pisos fortes e tossidas, foi latindo sem cessar.

Quanto mais alto latia, mais Agenor corria, pois impedir a alardearia era o que ele queria.

E chegando ao portão, Bento não se contentou, foi depressa e o abordou aos pulos, ao latir.

Parecia mesmo que ele queria anunciar a todos que seu Agenor chegara, avisar como ele estava, sem ter talvez outra noção, só a própria de um cão.

Sem titubear, Agenor a amaldiçoar, foi xingando e dizendo que não queria mais ouvir latido algum, nunca mais, daquele bicho lazarento, e ele jurava que acabaria aquele inferno logo ali. Sem muito pensar nem nada, foi pegando a enxada, tão logo a pode ver.

E aos uivos e latidos, ainda ouviu um berro longo de Bento a esmorecer.

Depois disso nada. Só silêncio.

E abrindo a porta atordalhada, seu semblante se fez de atônita a apavorada, Margarida assim o viu. Seu cão estava morto, bem ali, e por uma enxada, e quem fizera aquilo fora quem agora gritava, berrava, e nem notava o quão alto alardeava todo o vilarejo daquele sertão.

Era Agenor, que naquele instante, como graça ou desgraça divina, não mais escutava, perdera de forma repentina, a audição, na surdina.

Agora ele não mais ouviria, nem choro, nem lamúrias, nem latidos, nada.

Dona Rosa soube então, que seu homem passara a noite fora, e ficou tão desapontada que não lamentou o que lhe sucedeu.

Achou bem que era castigo e não mais ele partiria nas sextas para bailar. A música talvez ficasse em algum lugar de sua mente, mas só lá.

Agora seria sempre em casa, dependente de sua Rosa, ela tão abençoada a lhe conceder amor e compaixão.

Foi poupado de ouvir as palavras de insatisfação que destoaram, todas as três flores do sertão.

Vendo no rosto o desgosto, lamentou seu destino, e posto ali no chão, como um cão, ajoelhado entre as flores, naquele quintal, pediu perdão.

Pettine
Enviado por Pettine em 03/03/2019
Reeditado em 22/01/2020
Código do texto: T6588369
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