O lobisomem da Serra da Bernarda

Aconteceu lá pras bandas da Serra da Bernarda e contam os mais velhos que é a mais pura verdade, todo mundo dizia que estava correndo um lobisomem por aqueles lados, e muita gente que até já tinha avistado pelo menos de longe o tinhoso. E alguns até desconfiavam de quem era que andava virando bicho.

Uma das coisas que mais chamam a atenção no sertanejo é a sua imaginação, e começam a aparecer as mais incríveis histórias. Uns diziam que era alguém amancebado com a própria irmã, ou um filho excomungado que batia na mãe, podia não ser nada disso mas que era alguém tão ruim que agora virava bicho em toda lua cheia. Porém todo mundo sabe pelo sertão que lobisomem é bicho muito tinhoso, não é como Mula sem cabeça, Papafigo, Onça pintada ou Sussuarana. E até lá no sítio Pau Ferrado o pessoal já tava sabendo do bicho, e todo mundo que chegava da Bernarda tinha uma história diferente pra contar.

E nessas épocas, namorado suspendia serenata, noivo picava a mula mais cedo pra casa, antes da boca da noite baixar de vez, lavadeiras saírem às pressas da beira do riacho, Fulano dizia que o bicho tinha estraçalhado umas criação no sítio de Bertrano, as cancelas a bater e gemer sem ninguém por perto, sem contar a cachorrada a ganir de medo com o rabo entre as pernas se escondendo pelos cantos da casa ou se escondendo debaixo dos móveis, as criação que só faltavam se estrompar nas estacas,com o tinhoso a se espojar no meio do curral.

Depois saia desembestado pelas encruzilhadas esbagaçando tudo que encontrava pelo caminho, cumprindo sua sina triste. Mas também ninguém sabia dizer se o bicho era dos preto acinzentados ou dos avermelhados. Se dizia até que marmanjo que já tinha pegado onça pintada a unha, agora andava encafuado dentro de casa e dormindo cedo. Mesmo porque o povo sabe que só se mata ou desencanta lobisomem se for ferido com uma faquinha sete-tostões daquelas de picar fumo de rolo, e ninguém é besta de chegar tão perto do bicho.

Mas no sertão ainda existem uns poucos homens desassombrados, talvez por já terem vivido muito. E um desses homens era o Seu Mané Vito lá da Baixa um recanto da Serra da Bernarda. Duas vezes no mês nas sexta feira a tardinha ele ia na vila fazer umas compras no seu burrão de sete palmos, pitando seu cigarrinho de palha, a anos que ele fazia aquele caminho e nunca tinha acontecido nada mas, naquele dia ao se aproximar da encruzilhada do Passa Vento o animal começou a especar as orelhas e a amarrar o trotado, então Seu Mané afrouxou a rédea pra ver o que o animal queria, ajeitou os óculos no lombo do nariz e prestou atenção no cabelo baixo do pé da crina logo depois das orelhas, ele estava todo arrepiado e por mais que ele apertasse os olhos não conseguia enxergar nada, pra completar o Brilhoso amuou que não arredava um pé do lugar.

Mas Seu Mané tinha lá suas sabedorias, desceu do animal falando baixinho e batendo no pescoço dele devagarinho para acalma-lo e como se o Brilhoso pudesse responder.

- você tá vendo o que meu amigo? É a Caipora?

- Vamos ver se nós faz um acordo com ela, porquê daqui a pouco está escuro e não queremos chegar na vila com a noite fechada , né?

Meteu a mão no embornal e tirou de lá um rolinho de fumo, separou umas capinhas, pegou também dois dentes de alho colocou tudo em cima de uma pedra na beira do caminho, montou no burrão que resfolegou forte mas desamuou e seguiram viajem até a vila sem mais tropeços, quando avistou as primeiras casas ja era noite fechada.

Entrou no primeiro buteco da rua depois de amarrar o burro no mourão pra dar um descanso pra ele, pois vieram num trote puxado depois do entrevero na encruzilhada.

- Boa noite Se Zé da Boina!! Bote uma zinebra aí!

- Noite Seu Mané Vito noite, chegou mais tarde hoje, encontrou o lobisomem pelo caminho foi?

- Ou foi alguma visagem? Brilhoso parece meio cansado lá fora.

- Lobisomem, que história é essa de lobisomem, Seu Zé

- É que o animal empacou lá na Encruzilhada mas, não era de ser nada não que ainda tinha uma restinha de sol.

E em tom de troça.

- Lobisomem é compadre? Aqui na vila deve correr é Mula sem cabeça...

- Pois é meu amigo, aqui na vila não se fala noutra coisa que não seja no lobisomem da Serra da Bernarda. Tem até gente dizendo que andou vendo umas estripulias lá pro lado do curral na semana passada.

- Meu amigo a prosa ta boa mas, eu vou chegando, ainda vou cuidar do Brilhoso e aproveitar pra deitar mais cedo, amanhã antes da feira acabar, eu quero está voltando pra Baixa, se Deus quiser. Boa noite compadre.

Seu Mané fez suas compras cedo e cedo voltou pra seu rancho na Baixa pensando na história do lobisomem. Chegando a porteira já viu a patroa vir correndo ao seu encontro chorando, ele apeou do animal e correu ao seu encontro abraçando-a e ela soluçando foi logo dizendo.

- Manezim vá lá no curral ver as criação, vá lá!!

E Seu Mané a levou pra dentro de casa, deixou ela sentada na sala e foi ver os animais, chegando lá ficou embasbacado com a bagaceira que viu.

Era perna de cabrito num lugar, cabeça noutro e a sangueira, o bode velho e uma das cabras mortos e a outra agonizando, com os dois.cabritos aos pedaços.

Então do alto dos seus setenta e poucos anos Seu Mané Vito chorou.

Tomando um alento sacrificou a cabra que já tava quase morta e foi ver Dona Quitéria, que estava mais calma e passou a contar o que aconteceu.

- Olhe meu velho, perto da meia noite os animais começaram a correr e berrar dentro do cercado, eu apaguei o candeeiro e fui pra já ela olhar o que era, mas só vi um bicho maior do que o bode, até pensei que era uma Sussuarana, aí ele começou a esturrar e se espojar no meio dos animais, eu corri pro quarto me tranquei e só abri a porta depois que o sol já tava tudo largado da serra.

Aí fui lá no cercado e encontrei tudo daquele jeito que tu viu, meu velho eu não fico mais no rancho sozinha, quando vc for pra vila eu vou com você.

Então Seu Mané começou alguns preparativos.

Tirou o couro do bode velho, enterrou as carcaças e botou os couros pra curtir, dois dias depois foi na vila com a patroa e conseguiu um pouco de água benta com o vigário, comprou uma corda de alho roxo e um pouco de sal grosso, comprou um cabrito e voltaram pro rancho. Chegando lá consertou o cercado, deu uma limpeza caprichada na lazarina, para a qual preparou um carrego reforçado, o resto da semana foi pra ultimar as coisas e esperar a próxima lua cheia..

Uma das virtudes do nordestino principalmente do sertanejo é a paciência, e isso seu Mané tinha de sobra, então esperou passar as fases da lua sem aperreio, e foi ajeitando algumas coisas. Deu uma afiada boa no punhal de prata e no facão corneta de vinte e uma polegadas, dos dois lados, quando a bela lua cheia chegou foi numa quinta feira, e Dona Quitéria perguntou.

- Manezim, não era melhor a gente ter avisado o João?

- Não minha velha, agora não dá mais tempo, e pra quê aporrinhar ele com isso agora?

No final da semana nós vamos a feira e mandamos avisar a ele.

Eles tinham um filho de criação que morava nas fraldas da serra do outro lado da baixa, isso ficava a umas seis léguas distante deles, se chamava João Vitinho e só se viam três ou quatro vezes no ano.

Quando noite fechou, ele vestiu o couro do bode e desconfiado como ele era , levou o Brilhoso pra dentro de casa, mandou a mulher fechar as portas e só abrir quando ele chamasse, pegou a espingarda e o cabrito e foi pro cercado, amarrou ele no mourão e foi se acomodar por trás do cocho de água.

Chegando perto da meia noite o cabrito começou a berrar e se agitar, Seu Mané pegou a lazarina e se preparou, com pouco tempo ele só ouviu o ésturro do bicho e a porteirinha do cercado virar lenha pro fogão e patroa.

Espojou se pelo chão e foi chegando pra perto do cabrito, Seu Mané soltou o dedo na lazarina mas o tiro pegou de relepão por cima do lombo, aí o tinhoso parou como que pra assuntar, foi quando Seu Mané puxou o punhal e gritou.

- Seja lá o que Deus quiser, agora é nós dois e Ele.

E partiu pra cima do monstro, foi briga pra mais de horas, o velho cortava de um lado o bicho pulava do outro, perdeu o punhal numa das investidas do bicho e deu no cabo do facão, Seu Mané sabia vinte e um pontos de facão mas já tava ficando cansado, foi quando acertou um golpe que arrancou a mão do bicho pela munheca, então ele sentindo o golpe disparou na direção da saída do cercado e arribou no meio do mundo.

Terminada a peleja o velho mergulhou a cabeça no cocho de água, agradeceu a Deus e caindo no chão extenuado gritou a patroa, que veio correndo e chorando, se jogou no chão abraçando ele, e tudo que ele conseguiu fazer foi beijar seu rosto enrugado, enxugando suas lágrimas e fazer uns afagos.nos longos cabelos brancos da sua Quitéria. Ficaram ali abraçados e quando perceberam o sol j estava despontando na coroa da serra. Levantou se espetou mão do bicho no punhal e foram pra casa.

Chegando lá colocou aquela mão horrorosa dentro de um frasco com álcool, foram tomar um banho e descansar, deixaram pra ir na vila no final de semana. Chegado o dia da viajem Seu Mané levantou se no primeiro cantar do galo, foi arriar o Brilhoso enquanto Dona Quitéria fazia o café e preparava algumas coisas pra levarem. Ele ajeitou o frasco com a mão do bicho dentro, porqueira ia mostrar ao veterinário e ao vigário, já que iam ficar na vila pra assistirem a missa no domingo de manhã.

Quando saíram do rancho o sol já estava começando a espantar a cerração que costumava cobrir a Baixa, o burrão descansado trotava que fazia gosto nem parecia que levava duas pessoas. Chegaram a vila logo depois do meio dia e foram direto casinha que eles tinham lá na Rua da Cacimba, desde o tempo que ele era solteiro. Ela ficava o tempo todo fechada e só era aberta quando eles ou Vitinho vinham a vila pra pernoitar. A patroa foi ajeitar alguma coisa pra comerem enquanto ele cuidava do animal e dava um arrumada na casinha, depois do almoço ela foi descansar um pouco, ele pegou o vidro com a prova da briga e foi mostrar a seu Zé da Boina que era o veterinário da redondeza e as vezes o médico também.

- Boa tarde gente, compadre o Vitinho não apareceu por aqui esses dias não?

- Tarde, meu amigo, que novidade é essa ? parece até que se mudou pra vila, apareceu não,e já faz um tempão que não aparece por aqui.

Mas pra falar verdade muita gente desapareceu depois dessa história de lobisomem, mas me diga o que é que o senhor manda? E o que diacho é isso que tem nesse saco que fede tanto?

E tirando o frasco do saco colocou em cima do balcão e disse.

- Dê uma olhada Seu Zé, e me diga, o senhor já tinha visto alguma coisa assim?

- Meu amigo e essa aliança? Isso não é mão de gente, é?

- Não sei compadre, amanhã vou mostrar pro vigario e ver o que é que ele me diz.

E foi pra casa descansar, então ficou o maior fuzuê no buteco, se espalhando lá no pela vila que Seu Mané Vito tinha matado o lobisomem da Serra da Bernarda.

Chegaram cedinho pra missa, ele no seu paletó azul marinho e ela com um vestido azul claro combinando com um lindo véu de renda.

Depois da homilia mostraram a peça ao vigário, e ele contou a história com todos os detalhes, o homem de Deus se benzeu, mandou ele enterrar fora das terras do rancho e prometeu que iria no rancho benzer o cercado durante a semana. E fez até uma explanação a respeito do assunto durante o sermão.

Depois da missa foram pra casa e na segunda-feira de manhãzinha voltaram pro rancho na Baixa.

Um mês depois da batalha no cercado apareceu Dona Isaura a mulher de Vitinho, com os dois meninos de mala e cuia, chorando.

- A bença meu padrinho, bença madrinha, meninos venham tomar a bença. Padrinho tá fazendo num mês que Vitinho num aparece em casa e eu não sei o que devo fazer pra cuidar dos meninos.

- Num se avexe não minha filha, vocês ficam aqui e nós vamos resolver isso.

No outro dia a tardinha apareceu o seu compadre no rancho numa carroça coberta com uma lona preta, e antes que ele falasse qualquer coisa, Seu Mané já desconfiava do que se tratava.

- Boa tarde meu amigo, eu sinto muito. Mas uns moços o encontraram na beira do canavial, eles acham que foi uma briga entre os canavieiros, e só acharam porque os urubus estavam voando muito baixo e foram ver o que era.

- Num deixe a comadre ver não, ele está muito estragado.

Mas eles sabiam que não era nada daquilo, não houve briga no canavial e ali estava o dono daquela mão que ele decepou no cercado, ainda com a aliança do casamento que ele não deixou dona Quitéria ver no dia.

Ali estava seu filho Vitinho, o lobisomem da Serra da Bernarda.

Fernando Alencar

20/04/2008

Fernando Alencar
Enviado por Fernando Alencar em 10/04/2020
Reeditado em 05/02/2021
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