INCÊNDIO NO CANAVIAL

Ele era um menino levado

Naquela época, apesar de ser ele muito ativo e irrequieto, era educado e respeitava aos mais velhos e aos pais, como era costume naqueles idos de 1930. Hoje, os conceitos mudaram, esses tipos de pessoas são chamados de outra maneira. São os super ativos.

Bepe, assim era ele chamado pela família, passava o dia correndo de um lado para outro, quase nunca parava para descansar.

Sempre com o estilingue no pescoço, carregava um embornal pendurado do lado esquerdo, cheio de pequenas pedras arredondas que ele mesmo escolhia por onde passava.

Depois das aulas e quando ia, já que o pai não ligava muito que ele estudasse. Segundo ele, estudo só servia para colocar bobagens na cabeça das pessoas. Quando chegava da escola, logo depois do almoço, saía, com o estilingue na mão e o embornal cheio de pedras. Ia caçar.

Naquele tempo, os conceitos de ecologia não eram tão respeitados como agora, era muito comum alguns terem suas espingardas carregadas pela boca, para matarem suas caças para complementar o cardápio do almoço do dia seguinte.

Bepe, depois do almoço, serelepe como sempre, resmungava alguma coisa para o pai e saía à procura de juritis, rolinhas, pombas - do -bando ou outro pássaro qualquer que tivesse o infortúnio de ser encontrado pelo caminho.

Quase sempre ao voltar à tarde, trazia vários pássaros no embornal, para depois de limpá-los, pedir à mãe que os fritasse para comer no jantar ou no dia seguinte.

Sem geladeira, poucas coisas podiam ser guardas para o dia seguinte, exceto se estivessem salgadas ou fosse algum defumado que o pai costumava comprar no empório do “seu” Manuel na vila em que morava.

Ele, como todo menino levado que era, tinha certa rixa com o rico fazendeiro que morava próximo à vila, perto da borracharia e oficina onde o pai trabalhava. A rixa surgiu porque o fazendeiro tinha-o proibido de entrar no seu canavial para caçar pombas do bando ou outro bicho qualquer , pois, ele fazia muito estrago em seu canavial.

O pai do menino, italiano rude e ignorante, atendendo ao pedido do fazendeiro proibiu-o de entrar nas fazendas deste, bem como caçar por perto.

Bepe, querendo se vingar-se do velho ranzinza, assim era como ele o chamava, resolveu pregar-lhe uma peça, para poder rir dos apuros dele.

Sempre que o canavieiro aparecia na borracharia de seu pai tinha dois motivos, ou era para consertar algum pneu do seu carro semi-novo, um Ford 29, que fazia questão de mostrar em toda a redondeza, ou para fazer alguma queixa contra o menino. Ele tinha o intuito de prevalecer o seu domínio sobre aquela região que, praticamente, vivia as suas custas.

Na época da colheita da cana e moagem para a produção de açúcar e cachaça, era muito comum ver dezenas de trabalhadores, quase que escravos, começarem de madrugada e só pararem já à noite, no corte da cana.

Os salários que pagava eram irrisórios, se comparados aos que ganhavam outros trabalhados braçais. Ma,s como a maioria vinha de outros estados, trazidos por “gatos”, estes ficavam sujeitos a todo tipo de engodo e humilhação.

O pai do menino costumava faturar um pouco mais nessa época porque além da borracharia, tinha uma oficina onde fazia de quase tudo, consertando ou remendando os rudimentares implementos agrícolas da época. Seu trabalho era muito necessário, mas o fazendeiro sempre o olhava com desconfiança por sua fala esquisita ou pelo fato de não gostar do seu filho.

Naquele dia, quando os pneus do carro passaram sobre uma tábua com enormes pregos, a primeira pessoa em quem pensou foi no menino. Desceu do carro, viu os dois pneus furados e enquanto o motorista providenciava trocar um dos pneus, ele olhava no chão perto de onde estava o carro parado para ver se havia algum rastro que pudesse incriminar “seu inimigo”.

Quando encontrou pegadas de criança no chão, chamou o motorista e disse:

- Joaquim, venha cá e sirva-me de testemunha.

O empregado olhou atentamente, assentiu com a cabeça e arrematou:

-É, patrão, são passos de menino, deve ser dele.

Eles, no entanto, esqueciam-se de que havia diversas crianças na região, filhos dos inúmeros trabalhadores braçais e cortadores de cana.

Mesmo assim, ele, naquele momento, viu o filho do borracheiro ou italiano como ele mesmo falava.

Depois de haver trocado um pneu, o motorista pegou o pneu furado, colocou-o nas costas e tomou rumo à vila, para consertá-lo. Enquanto o motorista levava o pneu furado nas costas, o fazendeiro seguia ao seu lado esbravejando e falando o que desejava fazer com o moleque.

Depois de uma hora de estrada, chegaram à borracharia do italiano para consertar o pneu.

Quando chegaram, o borracheiro ao ver as visitas e o estado em que se encontravam, foi perguntando:

- Pois não, doutor, o que aconteceu, onde está seu carro?

- Seu filho, aquele moleque, furou os pneus do meu carro.

- Como assim? Não entendi.

- Olhe aqui, Italiano do inferno, aquele moleque, seu filho, colocou pregos numa tábua e a colocou na estrada para furar os pneus do carro. E acrescentou:

- Eu o vi correndo para se esconder no mato não foi, Joaquim?

O motorista, querendo preservar o emprego, mesmo sem ter visto o menino, confirmou a mentira do patrão e arrematou:

- Pois é, nós o vimos correr pra dentro do mato, quando paramos.

O pobre borracheiro sem saber o que fazer propôs:

- Pode deixar, doutor, eu conserto seus pneus e não cobro nada.

- Só isso, não vai dar uma sova no safado?

-Pode deixar, ele será corrigido quando chegar. E complementou:

- Ele saiu para caçar rolinhas.

- Viu, não disse que foi ele?

- Espere, só por não estar aqui não quer dizer que foi ele.

- Mas nós o vimos correr, mentiu o fazendeiro que desejava ver o bruto italiano tirar o couro do filho. Ele costumava bater forte e com certeza desta vez ele se vingaria do moleque.

Já passavam das cinco horas quando o menino, sem saber do fato, chegou todo sorridente, tentando mostrar sua caça ao pai. Este, no entanto, sem explicações pegou uma chibata de couro cru trançado por ele e bateu no menino até sentir-se cansado.

Depois da sova, escutada pelo fazendeiro que estava na bodega do outro lado da rua, a mãe do menino teve que cuidar dos ferimentos que sangravam.

No outro dia, o pai chamou o menino e disse-lhe:

- Ontem eu lhe dei a sova pelo que você me fez passar de vergonha diante do doutor.

- O que eu fiz? Perguntou o garoto.

- Ora, pirralho, não me venha com essas desculpas, pois você foi visto correndo do local onde cometeu a traquinagem.

- Mas, pai, eu não sei de nada!

- Pois devia saber. Virou-se e foi tratar de consertar dois pneus de bicicletas.

Ao ouvir o diálogo entre os dois, a mãe chamou o menino e contou o ocorrido, bem como tinha ouvido toda a história do fazendeiro.

Depois de ouvir tudo, com o corpo todo dolorido, o menino, inocente que estava daquela peraltice, pensou: “ Pode deixar seu Zacarias, essa o senhor me paga”.

Bepe, praticamente deixou de sair para sua caça vespertina e passava quase todo o dia sentado, brincando com outras coisas, mas sua cabeça tramava a vingança que ele precisava executar, para punir o velho ranzinza.

Com o fim do inverno e início da primavera o canavial estava praticamente pronto para a colheita. Em pouco mais de quinze dias estaria pronta e começaria chegar os trabalhadores para o corte.

O menino, antes desse tempo preparou-se e quando saiu cedo para a escola, no caminho, com todo o cuidado, desviou-se e entrou no canavial.

Andou alguns minutos dentro deste e quando achou o local ideal pensou: “É aqui”.

Abaixou-se e de joelhos sobre um amontoado de palha seca que havia, procurou juntar mais algumas palhas e folhas. Depois de haver material suficiente, abriu o embornal de que nunca se separava, pegou uma enorme vela que trazia dentro deste e depois de colocá-la com todo cuidado presa no meio das palhas secas, acendeu-a.

Dois dias antes, ele, fingindo rezar acendeu uma vela e ficou olhando-a queimar ao sabor do vento. Queria saber o tempo que demoraria.

Quando sua mãe perguntou o que fazia, ele disse:

- Mãe, eu estou acendendo uma vela para as almas.

Sem saber do intento do filho, pensou: “É um santo esse meu filho”.

Depois de acender a vela e certificar-se que ela não cairia, saiu do canavial e voltou para casa.

Ao vê-lo retornar para casa logo depois de ter saído para a aula o pai quis saber a razão e este disse:

- Estou com muita dor de barriga, posso ficar em casa?

- Se a barriga está doendo, vá deitar-se que mando sua mãe fazer-lhe um chá.

Depois de tomar o chá que a mãe trouxe, ele, fingindo dormir, deitou-se de lado para a parede e ficou imaginando o reboliço que haveria em poucas horas.

Duas horas depois a fumaça tomou conta da vila, ela era tocada pelo forte vento que sempre soprava naquela época.

Apesar de todos os esforços do “seu” Zacarias, bem como de todas as pessoas da vila, não foi possível salvar o canavial. Toda colheita do ano estava perdida e o prejuízo era incalculável. Até seu carro foi consumido pelas chamas, por ter apagado próximo ao fogo.

Quando tudo se consumou, o fazendeiro já tinha em sua mente um culpado para tudo e foi tomar satisfação com o borracheiro.

Logo ao chegar, foi soltando os cachorros acusando o menino de todas as maneiras.

Depois de ouvir todos os desaforos do desafortunado canavieiro, o Italiano virou-se e disse:

- “Seu” Zacarias, você terá que procurar outro culpado para o incêndio, pois meu filho não saiu de casa hoje, ele está doente e deitado desde manhã. E arrematou:

- Julieta, chame nosso filho para o seu Zacarias ver.

- Não posso, ele está dormindo, acabei de dar outro chá para ele.

Ao ouvir tais palavras, o fazendeiro virou-se e seguiu em frente, jogando pragas no filho da p... que havia tocado fogo em seu canavial.

Deitado em sua cama, Bepe não parava de gemer...De tanto rir.

28-02-08-VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 29/02/2008
Reeditado em 07/10/2010
Código do texto: T880930