Não tiveram tempo para mais nada!

Mesmo olhando através do vidro azul da janela do quarto, ela pôde perceber que o tempo estava fechado, denso. Um céu encoberto, um dia escuro. Era a deixa. Decidiu sair logo de casa e antes de chegar à porta do corredor voltou à janela para confirmar. Sentiu uma tristeza surgindo, era inevitável. Era chuva que vinha mesmo. Ao longe a cidade já desaparecia por trás de uma cortina cinzenta. Então a menina deixou a janela e ainda mais apressada passou pelo corredor e somente parou para apanhar sua sombrinha. Calçou umas sandálias baixas que tinham um aspecto de couro sintético, um cheiro de infância e estilo de jovem mulher. Desceu o lance de escadas bem a tempo de ouvir as badaladas das três da tarde no velho relógio de coluna da sala. Abriu a porta e sentiu um inebriante e doentio cheiro de mormaço. Uma barra de nuvens cor de chumbo deslizava no alto, bem a sua frente. Fechou a porta com dificuldade, lutando um pouco contra o vento. O vestido então marcou seu corpo de uma forma que poderia ser insinuante, se ela estivesse disposta a se dispor.

Um breve redemoinho de poeira se formou a sua frente, enquanto ela corria pelo caminho sinuoso de pedrinhas, assentadas por seu pai logo que eles mudaram para esta casa. Um quilômetro era a distância máxima em que estava a chuva agora. Tirou o longo cabelo castanho do rosto e ergueu a face em busca de algum sol. Nada! Sorriu levemente e continuou a corrida. A cidade inteira neste momento fugia da tempestade que vinha, menos a menina. O Parque estava bem no curso da chuva. Era como se uma disputa estivesse acontecendo. Uma lavava o mundo a outra sujava as ruas. Uma descia quente a outra descia gelada. Uma parecia sólida em sua fluidez a outra estava fluida em sua solidez. As duas tinham força destruidora, mas não tinham consciência, apenas existiam, apenas seguiam o curso para o Parque. A sombrinha oscilava e zunia no ar frio e denso que soprava. Por vezes ela jurou que cairia, mas a menina segurava tão firme, quase a ponto de ferir a mão. Não fosse o som surdo do seu coração e o estalar agudo de suas sandálias no calçamento, tanto a sombrinha quanto a menina poderiam ouvir um chiado, um burburinho, uma coisa, um som que vinha, que tomava, que preenchia, que dominava. Não fosse a pressa elas poderiam admirar uma revoada de andorinhas que circularmente avisavam insistentemente sobre a água que já estava sobre o pequeno lago do Parque.

Quando cruzaram o pequeno bosque, a menina e a sombrinha já sentiam as primeiras de gotas finas e um mormaço ativo como amônia fez com que a menina, por um instante, quase desistisse. Faltavam poucos metros até a estátua do pequeno camponês, pousado sobre uma coluneta trincada, bem junto ao ipê branco. A chuva molhou a menina exatamente como naquele dia. Era tudo tão perfeito. Era tudo tão igual. Algumas flores que caíram naquela tarde ainda estavam no chão. Ela correu para o pé da pequena árvore, bem junto à estátua e lá sentiu novas gotas, pesadas, grandes, quentes, como suas lágrimas. O som da chuva era protetor. O vestido começou a molhar. Começou a ficar transparente. O jovem corpo se tornava evidente. O jovem coração também. Ela ouviu um riso. Era ele. Ele estava ali. Somente ali. Saindo debaixo da árvore ela deixou a água lhe banhar. Como naquele dia. Abriu os braços e jogou a sombrinha longe. Levantou o rosto o máximo que pôde. A leve dor dos pingos a mantinha acordada. Sentiu um abraço. Fechou os braços em torno de si mesma e rodopiou. Sorriu mais uma vez. Chorou como nunca. Ela o amou. Por uma tarde inteira, por um dia inteiro. O antigamente foi ontem. Naquela chuva, junto à pequena árvore. Logo quando as flores começaram a cair. O som da chuva era protetor.

Havia passado três dias. Aquela tarde estava convidativa e sua mente divagava sobre solidão e paixões. Pôs um vestido leve e como no horizonte uma barra cinza se formava, levou sua sombrinha. Desceu o caminho de pedrinhas da sua casa pensando em se mudar de lá. Não sabia como faria isso. Sentia-se um pouco isolada e fora do padrão. Sentia-se dona de um humor fantástico, era boa companhia para as tristezas dos outros, mas também era alguém que vivia a solidão no travesseiro.

Até pensou em voltar pra casa, quando teve certeza que choveria mas seguiu. Sempre ouvira falar que caminhar na chuva era romântico. E era isso que precisava: romantismo. Tão logo passou pelo bosque na entrada do Parque avistou um rapaz agachado junto a uma pequena estátua. Munido de máquina fotográfica ele insistentemente tentava capturar o perfil do jovenzinho de pedra. Ela foi até lá. E não sei bem como, a estátua estava novamente solitária e os dois riam animadamente sentados num banco próximo.

Choveu mesmo.

Os dois saltavam e corriam feito crianças para debaixo do pequeno ipê. Lá se recostaram junto ao tronco, ombro com ombro. Quando só aí perceberam que ela trazia uma sombrinha. Riram novamente. Aquilo não tinha a menor importância agora. Tiveram tempo para tudo. Não tiveram tempo pra mais nada.

Ele tirou a camisa para proteger a menina, que tinha o vestido marcando o corpo de uma forma insinuante. Ela quis ser insinuante!

E nunca foi envolvida por aquela camisa. Foi envolvida por ele com intensidade e inocência. O som da chuva era protetor.

Em poucos segundos ela tinha uma certeza que nunca foi dita. A chuva esfriou e se foi. Um último beijo foi dado e um novo encontro marcado.

Suas lágrimas ainda não esfriaram. A menina não voltou a vê-lo. Não como ela o havia conhecido. Não com calor em seu corpo. A chuva que um dia foi somente chuva passou de lágrimas de alegria e despedida. Nem hoje nem nunca, ele poderá cumprir as promessas. Era tão jovem.

Mas ela ainda pode senti-lo sob a chuva. Ali, bem junto à pequena estátua. Ela ainda o ama.

Pelo tempo que durar a chuva ela estará envolvida no abraço, ela estará envolvida em si mesma.