KAMEYO
 
Aproximavam-se os dias do verão nos confins da China
milenar.
 
Os dias vêm tórridos e as noites abafadas. Os campos
adquirem o amarelo escuro indicando quebra de
colheita e consequente período de escassez de
alimentos. A nação está mergulhada em grave crise
levando os economistas oficiais, na capital, a
recomendarem o aumento dos impostos.
 
Na aldeia morrem crianças desnutridas, desidratadas,
contaminadas por febres. Os missionários católicos,
postos sob suspeita pelos idealizadores do regime,
abandonaram a região bandeando-se para as
montanhas, no país vizinho. O arroz é agora um artigo
de luxo. O prato das refeições mais fartas é um ralo
mingau com pedaços de inhame. E aqueles que ainda
podem consumi-lo levantam as mãos agradecidos ao
criador dos quatro cantos por sua bondade infinita.
 
No entanto há fartura e desperdícios a menos de mil
metros, no acampamento dos soldados. Eles, os
militares, com sua presença na região desenham
alterações inevitáveis nos hábitos de consumo e nos
costumes que ao longo de séculos distinguiram aqui
as etnias. Imitando os militares os rapazes oferecem
respostas ríspidas a seus interlocutores. Por quase
nada entram em lutas corporais na tentativa de se
mostrarem adestrados apenas com base na
observação dos movimentos praticados pelos
soldados, em seus exercícios matinais e vespertinos.
 
As moças, preferindo as calças compridas largas em
tecidos em verde rajado, abandonam o uso de seus
vestidos nos quais seus corpos são infinitamente mais
bonitos. Crianças, jovens e até mesmo adultos, cedem
ao desejo de possuir os tecidos e as quinquilharias
vendidas por militares e, assim, os parcos recursos
que deveriam fazer face às primeiras necessidades
são desperdiçados em compras de supérfluos.
 
Alguns meses depois do primeiro descarregamento do
material do exército para a instalação do acampamento
vieram em sucessivas levas mais soldados e, em
seguida, as famílias dos militares. E em seus rastros
vieram professoras com a finalidade de instruir as filhas
dos militares, ensinando artes, leitura e escrita às
menores. Ás meninas moças elas ensinam leitura,
escrita, artes e questões relativas ao mundo feminino
sobre as quais nem sonham os homens comuns.
 
Banham-se os oficiais e seus familiares em chuveiros
de água corrente e em água corrente puxam suas
descargas. No acampamento as noites são animadas,
com cantorias e risos ao redor de mesas fartas,
regadas ao bom vinho e cervejas.
 
Ali, duas vezes por semana, são projetados filmes
coloridos e organizados grandes bailes para os quais
as moças da aldeia, contando com um pouco de sorte,
podem ser convidadas. Algumas delas têm estrelas
na testa e podem contar de ventiladores amenizando
o calor sobre os leitos dos oficiais do exército nacional.
 
Para alguns, na aldeia e arredores, o acampamento
sugere dificuldades diplomáticas no trato de questões
internacionais resultando na possibilidade de guerra
inevitável em curto prazo. A fronteira não está longe.
A índole belicosa de elementos pervertidos infiltrados
entre os vizinhos é sobejamente conhecida. Para
outros, a presença dos combatentes resulta de
estratégia destinada a evitar levantes internos em
resposta à política econômica austera e necessária
para tirar o país da grave crise em que se debate.
 
Kameyo com vinte e cinco anos de idade, órfã de
ambos os pais, voltou a viver na aldeia com sua família
de criação, um casal de idade. A mãe adotiva ainda
adiciona aos parcos rendimentos do marido o fruto de
seu trabalho na máquina de costura. Lava, passa,
cirze. Nos tempos melhores, produz pintura medíocre
em tecido. A jovem aprendeu a desenhar pássaros e
paisagens que, em alguns casos, são de uma beleza
cinematográfica. Há muito passou a ajudar mais do
que o fez desde sempre até atingir a puberdade,
quando então apenas se encarregava dos serviços
mais grosseiros, tais como carregar água para o uso
doméstico e trazer galhos secos atorados para o fogão.
A mãe adotiva habituou-se a encarregá-la de também
entregar nas residências a roupa limpa e passada,
administrar as finanças da casa, responsabilizando-a
pela aquisição dos suprimentos. Kameyo junta algum
dinheiro prestando serviços à comunidade.
 
Aparentemente frágil por ser magrinha, é inquieta e
ansiosa. Vive correndo de um lado para outro se
desvencilhando de seus afazeres e assumindo
compromissos como se o peso do mundo se destinasse
quase todo aos seus ombros. Faz amizades com
facilidade por ser risonha e atenciosa. Faz amizades
especialmente por ser extremamente reservada em
relação a si mesma e capaz de manter segredos sobre
o que lhe vem aos ouvidos. Os únicos momentos nos
quais faz jus ao seu nome, que significa ‘tartaruga’,
são aqueles de final de tarde, quando gosta de
permanecer no pátio do templo, sob as frondosas
árvores que ali se encontram com suas folhas
oscilando levemente pelos efeitos da brisa. Ali o calor
é relativamente amainado e existem as flores com suas
pétalas coloridas. E a vegetação é ainda viçosa, como
se os deuses operem o milagre de regá-las nas
primeiras horas de todos os dias. Ali se senta a rabiscar
seus desenhos. Ali ela não tem pressa, não é ansiosa
e parece deixar se transportar para um mundo feito de
sonhos. Ali Kameyo assume por assim dizer o outro
significado de seu nome, que também tem o sentido
de vida longa, ou eterna sequência ininterrupta de
transformações.
 
Na interpretação da mãe adotiva Kameyo procura as
energias dos pais ao se deixar sob as sombras dos
pessegueiros e das ameixeiras, no pátio do templo.
Eu a imagino ali, procurando sentir as vibrações de
um amor que hoje a acalma e nutre.
 
Ela ainda não alcançara bem sete anos de idade
quando forasteiros cruzaram a fronteira no início da
noite, armados até os dentes, dispostos a se divertirem,
desejos de estropiar, estuprar e botar fogo. Quem pôde
correr, correu. Quem ficou, ou foi alcançado na fuga,
sofreu todos os horrores que a mente humana pode
conceber quando um grupo de facínoras assume sua
índole animal e ataca um pequeno povoado. Kameyo
escapou por milagre. Os missionários encontraram-
na desfalecida, oculta pela vegetação composta por
mato e espinhos cujas touceiras alcançavam a altura
dos ombros. Cuidaram da menina nos primeiros dias
subsequentes à invasão dos forasteiros. Estava
bastante ferida no corpo e na alma, por haver
apanhado e por ter visto o que fizeram com sua mãe
antes de degolá-la na presença do marido, cuja
espinha eles fraturaram imobilizando-o para que, solto,
não pudesse reagir às cenas do show. As línguas de
fogo arderam durante horas, devorando os casebres,
iluminando a noite enfeitada por frações de palha seca
em chamas que o vento fez subir em meio aos rolos
densos de negra fumaça. Os religiosos a trouxeram
depois para a aldeia e a deixaram sob a guarda dos
pais adotivos. A menina não tinha um minuto de
sossego, impulsionada pela necessidade de ocupar a
mente impedindo que as lembranças do horror a
desmontassem. Era prestativa, gentil, disposta a rir,
mas muito emotiva, lutando permanentemente para
impedir que suas emoções a afogassem. Foi assim
que se tornou menina moça e foi assim que, quase
por acaso, iniciou um relacionamento com um rapaz
por quem esteve bastante inclinada.
 
Ele se chama Mitsuru. Era na época assistente de
engenheiro. Andava de um lado para outro
transportando instrumentos de detecção de minérios
sob os auspícios do Ministério. O governo contratara
os serviços de empresas especializadas em questões
ligadas a petróleo, uma das quais o mantinha em sua
folha de pagamentos. Era gentil, atencioso e muito
tolerante. Ela, no início, não demonstrava grande
entusiasmo, não parecia sentir a falta durante as
longas semanas em que o namorado se embrenhava
nas savanas atrás do engenheiro, procurando sinais
do ouro negro. Mas o relacionamento baniu os
pesadelos de suas noites de insônia, substituindo-os
por sonhos de amor. E ela estava se sentindo cada
vez mais apegada a Mitsuru.
 
Tinham o hábito de namorar sob as árvores frondosas,
no pátio do templo, trocando beijos, toques e juras. E
ela, que em geral fora sempre muito reservada e pouco
especula, passou a se interessar pelos livros de
romance e a prestar atenção especial ao estado de
alma das jovens recém casadas, às quais percebia
excitadas vivendo as delícias da iniciação aos prazeres
do relacionamento conjugal. Sob as ameixeiras e os
pessegueiros, ladeados por flores de todas as cores e
vegetação viçosa regada pelos deuses, entregaram-
se aos braços um do outro, enfeitiçados e enfeitiçando.
Ambos perdidamente apaixonados.
 
Ao retornar de uma de suas expedições mais
demoradas, ele a procurou e soube de uma festa que
a levara para a aldeia vizinha. Passara a fazer parte
de um grupo de jovens entusiasmados por suas
habilidades artísticas reunindo a multidão enfeitiçada
pelos sons de seus tambores. Kameyo estava
sorridente e seus olhos procuravam os olhos de um
moço de cabelos eriçados quando Mitsuru a viu de
longe. Estavam frente a frente, sentados ao redor de
uma mesinha enfeitada sob fios de barbante que
suportavam bandeirolas de papel colorido. Amigos
disseram que momentos de ternura entre ela e o
desgrenhado não eram raros.
 
Alguns meses depois Mitsuru desapareceu e Kameyo
aparentemente absorveu o golpe da separação sem
grandes traumas. Manteve basicamente o mesmo
comportamento brindando os aldeões com a banda
exterior de sua personalidade indiferente à dor. Seguiu
alguns anos depois para outros centros maiores onde
viveu, chorou e riu como qualquer ser vivente. Ao
retornar munida de seu tambor, estava convicta de que
a vida consiste em reparações e colheitas das quais
não podemos nos furtar sob pena de desastrosos
atrasos em nossa caminhada de retorno.
 
Quase por acaso eu a conheci um pouco melhor do
que a maioria das pessoas. Tenho certo grau de
parentesco com os pais de Mitsuru e sei que ao longo
da vida ele a adora. Vim à aldeia por estar vinculada à
instituição de ensino contratada pelo exército para
ministrar aulas de artes às filhas dos militares. Kameyo
me encanta com seus desenhos. São pássaros
representados de forma tão perfeita que parecem
vivos. Mas me encantam de verdade suas paisagens.
Mesmo para mim, professora de arte, é
incompreensível que consiga reproduzir com tanta
perfeição paisagens de uma beleza única.
 
— Você tem talento especial. Seus trabalhos poderiam
estampar as roupas de gala das damas da alta
sociedade na capital. Elas não usam duas vezes o
mesmo traje em solenidades oficiais e nesta época
renovam o guarda-roupa. Aldeãs talentosas podem ser
admitidas ao convívio da primeira classe. Algumas são
regiamente recompensadas por suas pinturas, seus
bordados, suas habilidades manuais para corte e
costura.
 
Com essas palavras tento seduzi-la.
 
Mas Kameyo apenas esboça um sorriso tímido. E para
fugir da tentação expõe outro de seus desenhos e
depois outro, e outro, emparelhando as folhas coloridas
sobre os bancos de pedra à sombra das ameixeiras.
Sente-se presa a compromissos assumidos com seu
destino e empenha-se em seguir as determinações a
ela atribuídas desde antes de seu nascimento. Há
prazeres a colher e transtornos a enfrentar em vidas
que virão.
 
Ontem foi convidada para abrilhantar a festa no
acampamento em honra ao comandante que faz
aniversário. Há um rol de oficiais disputando seus
favores. Ela os engambela a todos como dizem ter
sido o comportamento das virgens nos templos de um
passado que se tornou lendário.
 
É uma mulher muito bonita.
 
Especialmente bela quando maquiada e bem
penteada, aparece no palco em seu magnífico kimono,
portando o seu tambor.
                                      
 
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 01/05/2010
Reeditado em 23/12/2010
Código do texto: T2230965
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