O AMOR VENCEU A GUERRA

O fantasma da incerteza rondava a mente de Julieta. Ultimamente andava triste pelos cantos. Romero Seixas partira para a guerra já havia três anos e desde então, nenhuma notícia que fosse.

Naquele sábado como era de costume, Julieta pegou o vime com roupas pra lavar. Despediu-se de seus pais e juntando-se a outras companheiras tomou o caminho do rio. Já passava das duas da tarde.

A paixão teve início há uns quatro anos atrás, alguns meses antes da guerra. Aquela morena de olhos castanhos e sorriso doce, cativara o coração de Romero. Na época, já professor ministrava aulas no ginásio onde ela ainda era estudante. Lá se conheceram. Do namoro ao noivado tudo aconteceu rapidamente.

Romero passa então a frequentar a casa de Julieta. Eram nove quilômetros e o rapaz em seu recém adquirido automóvel cobria a distância em um piscar de olhos. O amor entre os dois ganhara proporções inimagináveis, logo, com certeza estariam casados.

Porém veio a guerra que já grassava por toda a Europa e o castelo de sonhos que haviam erguido com amor e carinho parecia na iminência de desabar. Mesmo assim antes da partida celebraram um pacto de fidelidade, embora sabedores de que numa guerra tudo é incerto. Então trocaram juras e mais juras. Juraram pelas coisas mais sagradas de que acreditavam, e acreditavam no amor eterno. Ficariam juntos pela eternidade. Houve muito pranto na despedida. Era de tarde!

A moça não teve coragem de acompanhá-lo até o portão, ficou ali na sala, estática e encovada numa poltrona arriscando somente a ouvir o ronco do carro que levava Romero desaparecendo aos poucos na distância.

Aquele era um sábado de verão, daqueles dias em que o sol parece nunca mais se pôr. E assim descem a trilha da prainha numa harmoniosa lengalenga que de longe ainda dava pra ouvir...

Sinhá cadê o sabão

Pra roupa eu lavar?

Esfrego com a mão

Depois é só quarar!

Sinhá cadê o anil

Pra roupa eu alvejar?

Na aldeia há um só rio

E muita roupa pra lavar!...

E embalados por aquela cantoria chegaram ao local. Era um rio de poucas braças de largura e de águas tão claras que era possível ver cardumes prateados de lambaris vencendo a correnteza.

Depois da labuta lá pela tardinha, Julieta resolveu que ficaria mais um pouco. Sozinha, a moça deitou-se sobre a relva macia e ainda morna, bem às margens de uma pequena lagoa enquanto suas amigas marchavam de volta para casa. Logo, aquela procissão de lavadeiras carregando sobre suas rodilhas cada qual um andor colorido de roupas ia desaparecendo na sombra de um bambuzal, assim como aquela mesma cantoria.

Com a cabeça levemente apoiada no vime, Julieta lê um romance. já havia lido uma enormidade deles principalmente após a partida de Romero. De quando em quando interrompia a leitura e fixava o seu olhar no infinito. Num desses intervalos Julieta, num momento sonhador, trocou a aliança da fidelidade. Passou-a então para a outra mão e ficou demoradamente a examiná-la esticando o seu braço.

A estória parecia ter apetecido a sua imaginação. Volta então à leitura e devora rapidamente mais algumas páginas livro.

O cansaço da lida costuma sempre abrir as portas para o sono, e a moça pestanejando, pestanejando...é por fim vencida. O pequeno livro lhe cai das mãos e o vento logo trata de fechá-lo página por página. E ela adormece profundamente. Mas seus lábios de cereja tremulam como a ensaiar um primeiro beijo enquanto a aragem fresca da tarde lhe afagava o rosto.

Talvez induzida pela estória que a pouco saboreava passou a sonhar com uma paisagem aquática. Um reino de águas cristalinas onde se deleitava com o clarão da lua cheia que chegando até o fundo dardejava cores alegres que suavemente se submetiam às ondulações que vinham da superfície. Aquela visão paradisíaca era magnífica demais, única para estar ali só. Ah! Se pudesse dividi-la com seu grande amor. Mas sonhos, principalmente os melhores, são tão imprevisíveis.. De repente o cristal virou ébano. O que a jovem não sabia era que essa lagoa tinha um perau dos mais abruptos. Bastou rolar o corpo para a margem e lá se foi ela para dentro d’água transformando um sonho de luz num real pesadelo. Debatia-se desesperadamente gritando por socorro. Tentava em vão agarrar-se às poucas ramas firmes que bordavam a margem. Não sabia nadar. O seu desespero a levava cada vez mais a um iminente fim, pois nenhuma viva alma viria a tempo para salvá-la. Subitamente, como naquelas histórias entre nobre e plebeu aparece por ali um herói.

Mas esse não era um belo cavaleiro dominando seu corcel e trazendo símbolos de nobreza, mas sim, um homem com vasta barba mal cuidada, um tapa-olho, trazendo sim, símbolos de sofrimentos e apoiando-se numa muleta, que ouvindo os apelos da jovem em apuros apressa-se a socorrê-la. Foi com muita dificuldade que salvou a pobre moça.

Aqueles braços fortes com o auxílio da muleta e um pouco de sorte puxaram-na para fora daquela água escura e tijucada. Engrunhida e tremendo de susto, ela balbucia alguma coisa enquanto o homem evita que ela lhe olhe nos olhos. Coloca-a sobre a relva e toma distância arqueando a aba do seu chapéu.

Era Romero com certeza, estava ali o “cavaleiro” diante de sua amada. Rondava por ali para vê-la e isso já alguns meses, porém não tinha a coragem de aproximar-se, preferia o anonimato. Sentia-se humilhado pela guerra. Já não era o mesmo, carregava uma profunda amargura e um corpo mutilado. Carregava um conflito dentro de si mesmo. Não queria partilhar a sua desgraça com aquela a quem sempre amou, mas ironicamente a teve em seus braços por um instante.

Já refeita, Julieta rompe o silêncio. Lhe faz uma pergunta enquanto torce a barra do vestido:

- Posso saber o seu nome bom senhor?

Mas o homem com os olhos fincados no chão nada responde. Julieta só ouve dele suspiros de quem segura um choro iminente e insiste:

—O senhor está bem, pode falar comigo?— Insiste.

Ela tenta agora olhá-lo com mais intensidade procurando-lhe as feições, mas ele vira-se de costas socorrendo um cristalzinho de lágrima.

A guerra o envelhecera rapidamente enquanto Julieta ainda guardava aquela beleza de adolescente, agora num corpo exuberante de mulher feita. A verdade era que Romero estava muito indeciso. Se por um lado tinha a certeza de que não recuara por covardia, por outro lado o que mais ele queria era correr para os braços dela...

“Que Deus me perdoe os meus perjúrios” balbuciou saindo lentamente de cena

Julieta meio confusa preferiu não mais insistir. Abraçou o vime com as roupas e disse com voz pálida:

- Então senhor, muito obrigado, que Deus lhe pague por tudo, se precisar de alguma coisa, minha casa fica logo acima do rio.

O homem ao ouvir palavras que para ele soavam como derradeiras e tocado pelo som angelical da moça, vira-se instintivamente, mas logo desiste. Dá de vez as costas acometido de um invulgar sentimento de ódio e sai caminhando por aquela trilha agora já quase escura. Vai como um atormentado resmungando impropérios até que desata a gritar:

- Malditos todos aqueles que fomentam a guerra, malditos...infames...para o inferno! Para o inferno!

Aquele homem, dada a sua veemência no gestual e no falar, mais parecia um ator em improvisado proscênio declamando Shakespeare.

A pobre moça agora plateia, a tudo assiste, aflita e amedrontada. A cortina do derradeiro ato já ansiava descer. Porém, tocada pela sensibilidade ela deu conta afinal que ali havia algo familiar. Julgando reconhecer-lhe a voz e alguns trejeitos, ignorou as roupas e partiu tresloucadamente em direção a ele e com toda a certeza deste mundo chamou-o pelo nome:

- Romero, Romero, agora sei que é você! Amo-te tanto, por que foges de mim, por quê?

Os dois se abraçam fervorosamente já no lusco-fusco da tarde enquanto a vizinhança preocupada saía à procura de Julieta.

José Alberto. Lopes®

SBC-SP. 2006/2018