DO AMOR JÁ NEM LEMBRAVA*

Encontrei Julio por acaso enquanto estacionava o carro numa rua central da cidade. Demorei um pouco para manobrar o carro, mas consegui. Estacionei e estava com a cabeça abaixada para marcar o cartão do Estar**, quando ouço um toque no vidro da janela do passageiro. - Pronto, vou ser assaltada em plena luz do dia, pensei! Baixei o vidro e aquele homem com um semblante triste me lembrava alguém. Mas como reconhecê-lo atrás de uma barba longa e roupas sujas? O senhor me perguntou se eu precisava de cartão e eu lhe agradeci dizendo que já tinha meu próprio cartão.
- Ah! Que bom, então a senhora quer que eu cuide do seu carro?
- Julio... É você mesmo?
- Como sabe meu nome?
- Estudei com esses olhos verdes sempre me fitando durante todo o meu curso de Patologia Clínica lá no Colégio Estadual do Paraná, não poderia esquecer seu nome.
Julio inclinou-se e me fitou com um olhar perdido no tempo.
- Espere! Vou sair do carro. – Desci do carro, e fui ter com ele na calçada. Passantes iam e vinham de todas as direções e eu ali, estagnada, sem conseguir mover mais nenhum músculo. Julio tratou de resolver aquela situação e me disse:
- Tudo bem, eu conto tudo, se você tiver um tempinho. Eu fiz que sim com a cabeça e ele passou a me narrar alguns fatos. Disse que ao término do curso entrou para um grande laboratório de Análises Clínicas, e por lá ficou durante seis anos. Estudou bastante, mas não o suficiente para passar no vestibular para farmácia, seu grande sonho. Mas conseguira um bom cargo no tal laboratório, quando conheceu uma garota por quem se apaixonou. Em seis meses estavam casados e grávidos. Depois que o bebê nasceu, sua esposa começou a exigir muito dele, mais dinheiro para isso e tempo para sair, ir às compras, festejar com amigos, enfim, queria mais dinheiro e Julio passou a afundar-se em dívidas. Tinha os cartões de crédito de todas as cores e marcas. O seu cartão era o mais rápido do oeste. Acabaram-se as economias, e a dívida avolumou-se a tal ponto dele ter que vender seu apartamento que comprara num bairro da periferia. Sua esposa não aguentou a situação e foi embora do país, sem que Julio tivesse tempo de sequer dar um último beijo no seu filho.
Passou a beber muito. Em dois tempos estava dependente do álcool. Foi demitido do seu trabalho e foi vendendo aos poucos o que lhe restara. Ficou sem nada e até do quarto e pensão precisou sair porque não tinha mais como pagá-lo. Foi para as ruas. Em uma semana perdeu o resto de dignidade que lhe restara. Transformou-se em mais um Morador de Rua. Peregrinou por vários albergues, vagou pelas estradas, mendigou por várias cidades e há alguns meses voltou à capital. Está morando num velho casarão abandonado com mais uma dezena de desabrigados como ele. Mostrou-me em sua mão trêmula com as unhas encardidas, uma cicatriz bem aparente. – Foi um golpe com um gargalo de garrafa, confidenciou-me – Nem tive tempo de reagir. Lembrei de Jesus mostrando sua mão chagada para o incrédulo Tomé.
Fiquei estupidamente muda, sem qualquer tipo de reação. Lembrava apenas daqueles olhos verdes que me fitavam. Julio era um dos melhores alunos, me ajudava na aula de fundamentos. Nós dois éramos os primeiros a oferecer o braço para a coleta de sangue. Nunca tive medo de deixar que ele usasse o meu braço como sua cobaia. Eu nunca acertaria aquela prova de verificação de parasitas no microscópio, se Julio não tivesse me ajudado a decorar suas principais características.
- Ascaris lumbricóides - Casca serrilhada e dupla membrana
- Entre no carro, eu disse a ele.
- Onde vai me levar?
- Para uma aula de fundamentos parasitológicos. Vou te lembrar o que faz uma lombriga no intestino da pessoa.
- Julio deu um sorrisinho maroto (ah como era lindo aquele sorriso) e entrou no carro.
Seu cheiro era insuportável, mas eu lembrei de toda aquela merda que a gente mexia nos tubos de ensaio para elaborar os exames de fezes. Suportei, calada.
- Coloquei um cd e a música melhorou um pouco a nossa auto estima. “Te amo espanhola, te amo espanhola, se for chorar... te amo” (Flávio Venturini dos mesmos olhos verdes).
Dei várias voltas pela cidade, ficamos assim pelo menos umas duas horas, pois eu precisava pensar num jeito de ajudar meu amigo. Que medo de me envolver, que maldito respeito humano que me invade e me faz recuar diante de um ser que antes dividia comigo até um pedaço de pizza? Por que as pessoas são tão indiferentes? Que amor é esse que eu ouvia na homilia de domingo, que me dizia que amor não tem e não pode ter reservas?
- Tomei uma decisão, e levaria em frente meu propósito, custasse o que custasse.
Tomei o rumo de casa, dobrei a esquina, cheguei ao portão do prédio. Dei um clic no controle e pronto: Já descia a rampa para a garagem. Saímos do carro e eu rezei para que ninguém estivesse no elevador. Ufa! Três horas da tarde, esse prédio dormitório está mesmo vazio. Subimos até o meu andar e entramos no meu apartamento.
Levei Julio até o banheiro, lhe dei uma toalha, sabonete, shampoo e disse para ele ficar à vontade. Tem um roupão velho pendurado. Vou preparar um lanche para nós dois.
Corri para o telefone e liguei para minha amiga Marcia.
- Preciso que você me traga uma muda completa de roupa do seu marido. Para sempre, nunca mais eu vou devolvê-la.
- Tudo mesmo, até cueca?
- Sim, tudinho, meia e até um tênis velho, se você tiver.
Julio ficou uma hora no chuveiro. Veio para a cozinha meio assustado. Não encontrou suas roupas.
- Não se preocupe, eu lhe disse – Depois nós sairemos para comprar alguma coisa.
Ele sorriu pela primeira vez com um pouco de ânimo e perguntou?
- Mas eu vou assim, com teu roupão velho? Nesse momento tocou a campainha. Era o porteiro com uma sacola que minha amiga Marcia deixara com ele: - camiseta, calça jeans, cueca (novinha), dois pares de meia, um par de tênis e uma blusa de lã, acompanhado de um bilhete:

"- Querida, eu não sei o que você vai fazer com essas roupas, mas minha amizade por você me faz acreditar que é para uma boa causa e eu sei que você sempre faz a coisa certa. Se depois disso ainda precisar de mim, disponha. Beijos (Marcia)."

Engoli o meu nó na garganta e entreguei a sacola ao Julio.
- Olha só, ganhamos umas roupinhas novas para você. Não quer vesti-las?
Enquanto eu preparava nossos sanduíches, Julio desapareceu dentro do meu quarto e quando voltou já estava vestido. O tênis ficara meio largo, mas como ele estava usando as duas meias, dava para enganar os pés.
Lanchamos e em seguida fomos a um Shopping de Descontos, aqui perto de casa.
Compramos algumas roupas e um par de tênis.
Julio achou que já estava na hora de ir embora, começou a agradecer, mas eu lhe disse que a aula nem havia começado ainda.
Voltamos para casa, arrumei a cama no quartinho dos fundos. Ele ficaria bem ali, pensei.
No dia seguinte, depois do café, levei Julio para cortar o cabelo e fazer a barba. Aos poucos meu amigo voltava a ter as feições que sempre gostara de ter. Já no tempo de colégio ele andava impecavelmente vestido e perfumado.
- Onde você está me levando?
- Quero que conheça uma pessoa, lhe falei. Estacionei à frente de uma pequena loja de brinquedos e utilidades. Entramos, eu perguntei por seu Hamilton. Ele veio lá dos fundos com seu habitual sorriso. Eu lhe apresentei Julio e disse que os dois precisavam muito conversar.
Seu Hamilton, levou Julio para o escritório e eu fiquei ali, procurando sapinhos para compor minha coleção. A conversa demorou uns 40 minutos. Quando os dois voltaram eu já havia mandado embrulhar seis sapos diferentes um do outro.
- Pronto, disse seu Hamilton – Ele já vai participar da próxima reunião na quinta-feira.
Há meses não vejo Julio. Ele viajou para Portugal, pois graças à Internet, descobriu onde está seu filho. Há dois anos tudo aconteceu. Com minha rede de amigos, conseguimos um trabalho para Julio numa farmácia de manipulação. Ele ficou morando no quartinho lá de casa por seis meses, o tempo suficiente para alugar uma kitinete próxima do seu novo trabalho. Há aproximadamente setecentos e trinta dias, Julio não bebe o primeiro gole e frequenta as reuniões dos Alcoólicos Anônimos.
... e este é o amor que preparado com afeto, solidifica-se!

Paulo de Tarso um dia disse:
“ - Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência; mesmo que tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, não sou nada. Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada valeria! O amor é paciente, é bondoso. Não tem inveja. O amor não é orgulhoso. Não é arrogante, nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acabará.” (I Cor 1,13 ss)


* - esta é uma obra de ficção baseada na reportagem do Programa Fantástico sobre Moradores de Rua em São Paulo, onde entrevistaram um cidadão paranaense que trabalhava, tinha casa, comida, roupa lavada e num trisco, perdeu tudo,  inclusive a dignidade e a própria identidade.

** - ESTAR - Estacionamento em via pública, tarifado e  controlado pela URBS na cidade de Curitiba


Para Marcia com carinho - FELIZ ANIVERSÁRIO!
Lili Maia
Enviado por Lili Maia em 07/06/2010
Reeditado em 09/06/2010
Código do texto: T2305926
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