= MEMÓRIA DE UM ADICTO= 3 e 4

CAPÍTULO 3

Meus pais eram verdadeiros heróis da fé, da perseverança e da esperança. Eu era só orgulho, vivia de meu sucesso precoce do passado. Eu me sentia muito importante, inteligente e por que não dizer, o centro do universo?

Não precisava aceitar ajuda daquelas pessoas que me pareciam medíocres. Eu nunca me renderia à ajuda dos Alcoólicos Anônimos, ou Narcóticos Anônimos. Pensava: ”logo eu, misturar-me com aquele bando de cachaceiros e drogados? Nunca!”

Em uma manhã de setembro, eu disse para meu sofrido pai que iria ganhar o mundo e que, decerto, o meu empecilho eram aquelas pessoas que não tinham o que fazer e viviam a preocupar-se com minha vida. Eles tinham inveja de mim, pensava eu. Meu pai, homem simples, sábio, implorava-me uma mudança de vida, enquanto as lágrimas despencavam-lhe no rosto sofrido. “Haveremos de arrumar uma saída”, dizia ele. Aconselhar um dependente é ofendê-lo profundamente. Não há nada que se diga ao adicto que ele não saiba: aconselhá-lo é muito fácil; entendê-lo, é difícil. Eu, em minha arrogância, gritava, insanamente, que iria voltar e mostrar a ele e para toda a gentalha daquela cidade o meu grande potencial. Meu pai me disse: lembre-se, meu filho de que “o cachorro, aonde vai, ele carrega as suas pulgas.”

Na época, não entendi direito mas, hoje, vejo o seu significado. Fui para uma cidade grande, uma metrópole, “lá onde o filho chora e os pais não escutam”. Peguei algum dinheiro com meu pai, e ali estava eu em busca dos meus sonhos.

A princípio, morei em uma república. Matriculei-me em uma escola profissionalizante. Lutei desesperadamente para arrumar trabalho. Tudo eram sonhos. Em pouco tempo, consegui emprego, não era o que eu queria, mas eu precisava de algo para começar. Iniciei meu trabalho em um grande estacionamento. Eu morria de inveja dos jovens, cujos carros ali eles estacionavam dirigindo-se para a faculdade do outro lado da rua. Meu Deus, pensava eu: “que injustiça! Sou muito mais inteligente que estes caras! Eu só não estou ali, porque eu não tenho dinheiro. Até quando terei que sujeitar-me a esta vida?”

Aqueles questionamentos consumiam-me como fogo. Meus colegas de serviço, coitados! Eu os desdenhava e os humilhava, querendo mostrar-lhes o quanto eu lhes era superior. “Dizem que, no mundo, nós devemos aprender tudo o que a vida puder nos ensinar, para, quando chegarmos perto de outros seres humanos, sermos apenas humanos”. Infelizmente, o adicto perde a sanidade. O pior dela é fazer as mesmas coisas erradas, querendo resultados diferentes.

Em pouco tempo, eu estava gerenciando aquele lugar. Os empregados sofriam com os meus modos desequilibrados. A cada dia, o patrão mais se enriquecia. Eu era o seu braço direito, ou melhor, seu cãozinho de guarda. Os dias se passaram... Estava conseguindo conter o monstro da obsessão. Parecia que uma luz tímida começava a aparecer, ainda que em meio à névoa. Dizem que temos de levantar os olhos para a luz e, ainda que ela não esteja lá, com certeza, saberemos a sua direção.

Dia dezenove de fevereiro, meu patrão chamou-me para lhe fazer companhia em um jantar comemorativo com os seus amigos. Senti-me o máximo! Eu sendo mais novo funcionário e cotado, indiscutivelmente, como o melhor, era demais para mim. Minha vaidade cresceu como erva daninha. Teria sido uma noite de glória, mas as coisas não foram como pareciam. Nos reunimos em um pequeno restaurante, que também era do patrão e, aos poucos chegaram os seus amigos, convidados e fornecedores.

Achei bonito o modo como se comunicavam: muitas gírias, e palavras codificadas. Fui apresentado como seu homem de confiança. Antes de nos servirmos, resolveram brindar o sucesso. Eu não sabia o porquê da comemoração. Não quis beber, mas aqueles senhores insistiram: Beba apenas uma dose, uma só, não fará mal algum! Meu lado alcoólico pensou: quem sou eu pra recusar? É tão fácil convencer alguém a beber, principalmente, quando se é alcoólatra. Assim começou novamente o meu calvário. Nos dias que se seguiram, eu tentava beber com responsabilidade, mas, na verdade, passou a ser o dia todo, em pequenas doses. Todas as noites, antes de fechar os portões do estacionamento, chegava um carro importado e luxuoso que estacionava no fundo do pátio. Minha função era abrir o porta-malas e retirar uma maleta de couro, parecida com uma valise de médico, levando-a para a sala dos fundos, onde era guardada dentro de um pequeno cofre, escondido atrás do armário.

Eu nunca consegui ver o condutor daquele veículo, que os vidros eram escuros, impossibilitando-me a identificação dos seus ocupantes. Na noite de primeiro de março, chegou, em seu carro, um de nossos clientes. Era um advogado com um invejável poder aquisitivo. Não advogava mais: Estava totalmente dominado pelo alcoolismo. Havia perdido a sua família, clientes e estava prestes a perder a vida.

Trazia consigo uma bondade sem igual. Adorava-me e, naquela noite, trouxe-me uma garrafa de conhaque “dos bons”. Isto que é “bondade da boa”! Enquanto eu esperava o carro da maleta, abri a garrafa e pensei em beber apenas um gole. O que desperta a obsessão alcoólica é a primeira dose. Para nós, alcoólicos, uma dose é demais, e vinte não nos satisfazem. Dizia um certo jornalista, já falecido: “O alcoólico tem dentro de si um tubarão adormecido, quando ingerimos a primeira dose, de qualquer bebida alcoólica, nós o despertamos e ele se torna insaciável levando-nos à bancarrota”. Naquela noite, tomei o maior pileque da minha vida.

Quando o carro chegou, eu, embriagado, fui até ele, peguei a maleta e caminhei a passos oscilantes para a sala dos fundos, a fim de guardá-la como de costume.

Desde o primeiro dia de serviço, eu estava curioso do enigma que rondava aquele procedimento.

Naquela noite, eu não me controlei, estava muito louco para avaliar as conseqüências de meus atos. Peguei a maleta, coloquei-a sobre a mesa, tentei abri-la, porém, estava trancada. Minha insanidade chegou a tal ponto, que tomei de uma chave de fenda, forcei o fecho até que o estourei. Quando olhei dentro dela, que felicidade! Que visão celestial! Era cocaína e muitas pedras! “Que sorte eu tenho”, pensei! Usei todas de que dei conta. Não sei nem contar o que sucedeu neste período. Quando voltei à vida, estava em um hospital, numa cama com a cabeça atordoada. No meu corpo, não havia locais que não doessem. Porque eu fora impiedosamente espancado. À porta, um policial, em silêncio, guardava-me. Eu não podia nem imaginar o que ocorrera. Naquele instante, um médico jovem e brincalhão, entrou no quarto. Ele perguntou ao soldado como estava o Lázaro. Este prontamente lhe respondeu que eu acabara de acordar. Fiquei pensando: “será que estou maluco? Meu nome não é Lázaro!”

O médico perguntou-me se estava tudo “bem” comigo? Eu lhe disse que meu corpo todo doía e que ele havia se enganado: eu não me chamava Lázaro. Ele deu um largo sorriso, respondendo-me: você, porque continua vivo, é um novo Lázaro que foi chamado da morte à vida.

Aí, lembrei-me de Lázaro das Escrituras Sagradas. De pronto, eu avaliei que, não tendo perecido por espancamentos brutais e overdose, reavivou-me o sopro da vida o Deus Criador. Enchi o doutor de perguntas. Quase nada me respondeu. Indagou-me se eu me lembrava dos acontecimentos que me jogaram numa cama hospitalar. Entrei no labirinto da memória, nada! Certifiquei-me de que, com a justiça, eu estava muito encrencado e que há mais de sessenta dias, eu jazia convalescente naquele leito. Eu não sabia porque razão, Deus tinha poupado a minha miserável vida. Mistérios insondáveis de Deus?

CAPÍTULO 4

Permaneci no hospital por mais quarenta e sete dias. Ao sair, fui conduzido para um presídio. Fui julgado e condenado por tráfico de drogas. No meu julgamento, não abri a boca. Sabia que, se eu entregasse alguém, assinaria a minha sentença de morte. Meu Deus! Como sofri naquela prisão! Perseguido por traficantes, fui espancado por várias vezes. Tentaram matar-me. Cheguei a pensar que Deus havia-me poupado a vida, para que eu pagasse todos os meus pecados, ou que, decerto, Ele se esquecera de mim.

Sentia vontade de morrer. Pensei até no auto-extermínio. Os dias se passaram. Minha família, aflita e sofrendo, acompanhava todo o meu suplício. “Não é justo, meu Deus, que todos os amigos e familiares que me amam paguem, com sofrimento, por meus erros.”

Lá no cárcere, fica-se cada vez mais insano. Morrer, naquela circunstância, seria lucro. Eu, sentado em meu canto, tentava escrever as minhas amarguras que estavam paralelas ou tão próximas à loucura.

Lendo hoje esta seqüência de versos, vejo que lá era isso que a vida me inspirava. Sentia-me tão desprovido de sentimento, que a única voz a me invadir o coração era a do medo, da solidão e da eterna amiga tristeza.

Minha alma não fazia silêncio, gritava estarrecida! E eram gritos de terror. Os fantasmas me rodeavam como uma roda gigante.

Comecei então a passar, para o papel, meus medos, meus pedidos e a minha insanidade.

Quem sou eu, meu Deus?

Serei um nada à mercê do tempo?

Sou trevas sem silêncio

Um vácuo no meio do nada.

Com certeza

Viandante sem estrada.

Meu sol não brilha e nem me aquece.

Sou o resto do luxo,

Refugo do lixo.

Sou o nada...

Escória da vida

O “Eu” esquecido

No lixão do acaso.

O que me reserva a vida?

Meus olhos aflitos,

Minha alma aos gritos,

A toalha e o manto

Da indiferença de tantos

Enxugam meu pranto.

/-/-/

Devaneio escuro

Apalpo, procuro

A musa ilusão.

No grilhão do anelo,

Sigo inseguro.

Não é preciso muito

É claro!

Pouco me basta

Um sorriso largo, pequeno,

Por entre os dentes,

Não me importa.

O terreno é sonho,

Repleto e baldio,

Imagem do belo

Por hora vazio.

Realidade, companheira fria,

Desmonta o alado sonho.

Espreita-me a insana verdade.

É um rosto oculto

De homem-solidão.

-/-/-/

Mãe do céu! Mãe da terra!

Que choram meu tormento.

Peçam a Deus que me leve,

Amenizando-me os sofrimentos.

Continua.....

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 06/12/2010
Código do texto: T2656493