Imagem: Cachoeira Sete de Setembro - Chapada dos Guimarães - (MT)


TRECHO DO MEU LIVRO - 16


– Olá, Emanuel, boa tarde!
– Quem te disse meu nome? – perguntou, surpreso.
– Eu ouvi por aí. Mas o que eu quero mesmo é te pedir um pequeno favor...
– O que é?
– Bem, eu estou achando que o jipe está com um barulhinho estranho... será que poderia dar uma volta comigo para ver? Eu não queria trocá-lo por outro porque gosto tanto desse! Ou quem sabe é apenas imaginação minha? Mas, e se estiver mesmo? Sabe, eu não entendo nada de...
– Chega! Você fala demais! Entra aí!
Betina vibrou: seu plano funcionou direitinho!
Entraram no carro. Ele foi dirigindo, a pedido dela, para perceber melhor o tal “barulhinho”.
Saíram do estacionamento, passaram pela praça e pegaram a estrada que levava à cachoeira onde Betina e Rudi salvaram o filho de Clarisse.
Quando estavam próximos daquele local, ela disse:
– Ouviu?
– Não ouvi nada! Está me fazendo perder tempo!
– Olhe lá, que lugar lindo! Vamos parar um pouco e chegar mais perto, vamos! Só um pouquinho!
A expressão de Emanuel era um misto de surpresa e irritação:
– O quê? Não, não posso perder tanto tempo! Preciso voltar logo para aquela porcaria de serviço!
– Porcaria? Por quê? Não gosta do que faz, Emanuel?
Ao invés de responder, ele lhe fez três perguntas:
– Afinal, por que tanto interesse? O que quer? Está querendo transar comigo, é isso?
A resposta de Betina foi uma sonora bofetada.
– O que é isso, sua louca? – perguntou, com a mão no rosto e os olhos soltando chispas de ódio.
Por um momento ela pensou que ele fosse revidar. Mas não teve medo: encarou-o firmemente – e dessa vez ele não desviou o olhar. Ficaram assim, olhando um para o outro por um longo tempo. O silêncio era total. O único barulho que se ouvia era o da água da cachoeira e dos pássaros que cantavam – além da respiração acelerada de ambos.
Betina finalmente quebrou o silêncio:
– Não, Emanuel! – olhava diretamente dentro dos seus olhos, pois era assim que gostava de conversar. – Eu não quero transar com você! Aliás, se fosse isso não teria nada de mais porque eu sou uma mulher livre e desimpedida, e você também é, pelo que sei (ao dizer isso fez uma pausa para observar sua reação, mas ele permaneceu calado), além de ser um homem muito bonito! Mas não é isso! A verdade é que desde a primeira vez que te vi naquele estacionamento eu percebi que... que vive angustiado, insatisfeito. Sabe, eu senti que sob essa capa de pessoa rude, mal humorada, você esconde um sofrimento... alguma coisa que te faz muito mal!
Ele reagiu:
– De onde tirou essas bobagens? Não preciso que ninguém se meta em minha vida!
– Mas... ouça Emanuel...
– Ouça você: eu estava lá, quieto no meu canto! Por que resolveu me infernizar desse jeito?
Betina permaneceu muito tranquila. Era preciso fazer com que ele se acalmasse um pouco para conseguir ao menos conversar civilizadamente, sem agressões.
– Por que não responde? Perdeu a língua? – insistiu ele.
Ela continuava tranqüila, olhando para ele com um sorriso nos lábios.
Ele ficou quieto, afinal. Ela esperou.
Depois de alguns minutos, quando falou novamente, já não tinha a voz tão cheia de ódio. O que Betina notava era uma grande angústia:
– Você... você tem razão... eu carrego comigo uma profunda revolta. Sim, revolta! Por não poder viver do jeito que eu queria, do jeito que... eu sempre sonhei, entendeu?
– Não! – ela respondeu, muito séria.
– Ora, deixe pra lá! É problema meu!
Betina se animou: não podia parar por ali! Insistiu:
– Não! Por favor, continue! Divida seu problema comigo! Quem sabe eu possa ajudá-lo?
– Você... me ajudar? – riu, sarcástico.
– Sim, Emanuel! – disse, com ternura, continuando a olhá-lo nos olhos. Olhos que agora pareciam os de uma criança que foi surpreendida fazendo algo errado. Parecia arrependido de ter começado a falar.
Ela aproveitou a trégua: pegou em sua mão e o conduziu para fora do jipe. Não houve qualquer resistência.
Enquanto pensava, continuava puxando Emanuel pela mão. Ele a seguiu em silêncio até a beira do rio. Ali ela parou e sentou no chão, convidando:
– Sente-se, Emanuel.
Ele sentou. Ficou alguns minutos olhando a água que batia nas pedras. Depois falou:
– Minha vida está toda errada. Sou... muito infeliz por isso. Mas, sei que não adianta... já me conformei! Por que você tinha que aparecer pra meter o dedo em minha ferida? Não posso mudar nada! Nem você, nem ninguém! É minha obrigação enfrentar tudo sozinho, não há outro jeito! A vida foi dura demais comigo e eu... preciso aceitar isso!
– Não quero atormentá-lo. Quero apenas que divida comigo o seu problema. Confie em mim!
– Dividir! De quê adianta?
Conte-me tudo, desabafe, vai te fazer bem! É tão bonito, tão jovem e cheio de vida! Não pode ter desistido de acreditar, de lutar, de querer! Não deixe que isso aconteça com você, nunca!
As últimas defesas de Emanuel caíram por terra diante daquela voz tão doce, tão suave, que parecia hipnotizá-lo.
Começou a contar:
– Eu era muito feliz quando era mais jovem e morava com meus pais. Éramos pobres, mas tínhamos o essencial para viver com dignidade. Meu pai trabalhava como garçom. Era uma vida bem modesta, mas eles não reclamavam. Quando me tornei um homem passei a acalentar um sonho que se tornou o objetivo maior da minha vida: queria fazer faculdade de Educação Física e um dia montar minha própria academia. Queria dar aos meus pais uma casa própria!
Só que meu pai também tinha os seus sonhos de melhorar de vida, mas de uma forma diferente. Queria se aventurar no garimpo de Serra Pelada para procurar ouro. Minha mãe pediu, implorou, chorou, mas não houve meios de demovê-lo dessa idéia.
Saiu numa madrugada em companhia de um amigo, com quem dividia as mesmas ambições – ambos praticamente sem dinheiro no bolso, mas com muita disposição para correrem atrás do sonho de se tornarem ricos.
Quase seis meses se passaram sem que tivéssemos qualquer notícia dele. Minha mãe já não dormia e não comia, rezava dia e noite. E eu ali com ela, sem saber o que fazer.
Até que um dia o amigo do meu pai voltou. Sozinho. Trazia uma triste notícia: meu pai havia conseguido uma boa quantidade de ouro. Pretendia vender e voltar o mais depressa possível. Mas ele, o amigo, não encontrara quase nada. Então meu pai resolveu ficar mais uns dias para ajudá-lo a conseguir mais um pouco, e então voltarem juntos.
Mas, numa noite o acampamento foi assaltado. Os ladrões pegaram tudo que puderam dos garimpeiros que dormiam.
Meu pai acordou e – desesperado por terem roubado seu ouro – reagiu. Os ladrões o mataram e fugiram com tudo.
Seu amigo voltou, com o coração despedaçado por não ter podido fazer nada pelo homem que lhe demonstrara tanta amizade – a ponto de permanecer ali naquele inferno após ter conseguido o que queria, apenas para ajudá-lo.
O tempo passou, mas minha mãe jamais foi a mesma. Ficou doente de tanta tristeza. Sofreu um derrame cerebral e hoje vive numa cadeira de rodas.
Com muito sacrifício, fazendo qualquer tipo de serviço que aparecia, consegui me formar. Mas tenho que trabalhar para sustentá-la e comprar seus remédios. Tive que dar adeus aos meus sonhos. Aos poucos fui me tornando essa pessoa amarga que você está vendo. Detesto trabalhar no estacionamento, mas... não posso escolher muito, pois aqui as opções de emprego na minha área são escassas. Além disso, as gorjetas lá são boas – principalmente quando há turistas na cidade. Não posso deixar a Chapada, pois tenho que ficar perto da minha mãe. Jamais a abandonarei. Ela já sofreu muito nessa vida e agora só tem a mim.
Aí está minha história, Betina. E como pode ver, não é nada bonita...
Ela o abraçou, chorando:
– Emanuel... imagino como deve ter sofrido... – disse, deixando que as lágrimas rolassem livremente pelo seu rosto. Os soluços não deixaram que dissesse mais nada.
Ele olhou para ela, atônito:
– Você... espere... está chorando... por mim?
– Sim, estou... – respirou fundo, tentando parar de chorar.
Ele não sabia o que dizer:
– Mas, Betina... ouça...
– Ouça você, por favor! Não pode agir assim! Eu sei que foi realmente muito triste tudo que aconteceu com você, com sua família, mas por causa disso não pode jogar sua vida fora! Age como se fosse uma máquina, cumpre ordens e não realiza nada que realmente te dê prazer! Reaja, homem! Levante a cabeça, vá em busca da sua felicidade! Ele olhava para o céu, agora salpicado de estrelas. Acendeu um cigarro e a brasa brilhou na escuridão – que já era completa – como vagalume.
Betina juntou alguns gravetos para fazer uma fogueira.
– Quer voltar? – perguntou.
– Não...
Ajudou-a com a fogueira: pôs fogo numa folha seca com o isqueiro e colocou-a sobre os gravetos.
Betina soprou de leve – até obter uma primeira, trêmula e vacilante chama. Logo a madeira começou a crepitar e labaredas vermelhas subiram, produzindo pequenas faíscas que logo se extinguiam.
Ela olhava a fogueira em silêncio.
– Adoro os mistérios da noite, o fogo, a lua... acho que já fui uma bruxa!
– Só se foi uma bruxa muito boa!
Ela riu. Lembrou-se de Rudi: por onde andaria?
– Sabe Emanuel, eu sonho em encontrar minha alma gêmea – confessou. – Nem que para isso eu tenha que procurar até o fim do mundo. Acha que sou louca?
Ele olhava para o nada, para as trevas. Demorou um pouco a responder:
– Não. Quem diz as coisas que você diz não é louca, é sábia.
Ela sorriu. Ambos ficaram quietos, contemplando aquela linda noite.
Betina estava muito contente consigo mesma: podia sentir o efeito que suas palavras causaram no espírito de Emanuel.
Era hora de ir embora.
Certamente Emanuel seria despedido por ter deixado seu posto no estacionamento no final da tarde e desaparecido. Mas Betina prometeu a ele que daria um jeito:
– Eu preciso pensar, mas prometo que vou encontrar uma maneira de ajudar você. Confie em mim!
– Você já me ajudou, Betina! Fez-me entender tantas coisas hoje que... acho que passaria minha vida inteira sem descobrir sozinho!
– Mas quero te ajudar de outras maneiras. Agora vamos, já é tarde! – estendeu-lhe a mão.
Caminharam de mãos dadas.
Ao se aproximarem do jipe ele perguntou:
– Mas... e o barulhinho?
– Não existe barulhinho algum!
Riram e se abraçaram, felizes. Ele parecia outra pessoa.
– Mas vá dirigindo. Pode ser que ele apareça agora!
– Não vai aparecer, tenho certeza! – ele disse.
Dentro de alguns minutos chegaram ao estacionamento.
– Vou levá-la até o chalé – ofereceu-se.
– Não é preciso, obrigada!
– Boa noite, minha amiga! Eu... queria que soubesse que hoje quando saí daqui com você eu era uma pessoa, e agora estou voltando outra... muito melhor!
– Não sabe como fico feliz ouvindo isso! – ela disse, emocionada. – Tchau!
Afastou-se rapidamente, antes que começasse a chorar outra vez. Às vezes tinha raiva de ser assim tão coração mole!
Enquanto caminhava em direção ao seu chalé ia pensando em como ajudá-lo. Dar algum dinheiro? Não, ele poderia se sentir humilhado. Tinha que ser outra coisa...!