Injustiça

O sol escaldante penetrou por uma fresta e iluminou o ambiente sombrio.

Devido à luminosidade, ele abriu os olhos de forma súbita, como se tivesse acordando de um pesadelo.

Com a respiração acelerada e os pensamentos confusos, seus olhos percorreram rapidamente o ambiente à volta... Viu que estava em um quarto fechado, cujas paredes eram encardidas. No chão, havia poças de água e de outro líquido que não dava para identificar direito, talvez uma espécie de óleo. Havia também algumas quinquilharias enferrujadas espalhadas de forma desordenada. O cheiro de estrume de cavalo adentrava suas narinas sem pedir licença.

Logo após, percebeu que estava sentado em uma cadeira com as pernas e as mãos amarradas.

Tentou inutilmente sair.

Quanto mais tentava, mais as cordas roçavam e feriam a sua pele.

Vasculhou a mente à procura de respostas e logo se deu conta que tinha sido abandonado até por suas memórias.

Estava sozinho da forma mais cruel: não tinha nome, respostas, liberdade, direitos, crimes; tinha apenas castigo.

O corpo todo doía como se tivesse sido surrado e, tanto no chão quanto na roupa, havia sangue.

Ouvia o barulho do vento lá fora, que, de tão forte, uivava.

De repente, o som foi interrompido por passos...

Tentou gritar, pedir por socorro, no entanto se deu conta que sua boca estava amordaçada.

O medo ia tomando conta de todo o seu corpo à medida que os passos iam se aproximando.

Nesse instante, pensou:

- Quem está vindo? A minha salvação ou perdição?

A espera parecia infinita e, segundo a segundo, o medo ia paralisando cada parte do seu corpo.

Apesar de não se lembrar de nada, tinha a leve intuição de que nunca foi tão medroso, mas a situação justificava, afinal, quando não se sabe do quê ou de quem tem medo, o medo é maior.

Enfim, os passos cessaram e a porta se abriu lentamente.

Lá apareceu um homem alto, forte, sisudo e com bigode. Aparentava ter uns quarenta e cinco anos de idade e portava uma pistola.

Entrou e foi em sua direção.

Enquanto tirava a mordaça da sua boca, perguntava como ele havia passado sua última noite.

O homem sem memórias tentou buscar alguma familiaridade no outro homem, seja a voz, o jeito de o tocar, o olhar... mas não encontrou nada, tudo era estranho.

Após tirar a mordaça da sua boca, o homem sisudo o socou nos lábios.

Depois vendou seus olhos.

Enquanto o desmemoriado cuspia sangue, foi empurrado e caiu no chão. Então o seu algoz pegou a corda que prendia seus braços e saiu puxando. Por onde seu corpo passava, deixava um rastro de sangue.

Foi arrastado até um carro e colocado no porta-malas.

Após percorrer a distância de cinquenta lombadas, o carro parou.

O único barulho que ouvia era do vento sacudindo as folhas das árvores.

A adrenalina tomou conta de todo o seu corpo enquanto sua boca só sabia implorar por clemência e por respostas.

Naquele momento, soube que estava perto de morrer, porque, mesmo para ele que estava desmemoriado, as lembranças inconvenientes de sua vida começaram a importunar a mente. De forma aleatória, pouco a pouco, foram surgindo. Viam como flashbacks.

Elas eram inconvenientes porque, justo próximo da morte, ou esfregavam na cara o quanto a vida foi maravilhosa, o que deixa tudo mais dramático e dolorido, ou o quanto a vida foi miserável e que nem direito ao final feliz teve.

Nessas lembranças, viu que foi uma pessoa que abriu mão de sua vida para ajudar as outras pessoas...

"Isso deveria servir de atenuante", pensou.

Até serviria se a vida fosse justa e os pecados ou crimes fossem seus, se não tivesse pagando por outra pessoa.

Sempre foi alguém otimista... E assim permaneceu. Até o fim esperou seu herói, a polícia ou um pouco de consciência de seu algoz. Esperou por algo que nunca chegaria. Não foi a primeira vez que alguém teve uma espera frustrada, mas, no seu caso, seria a última.

Sabia que não merecia aquilo. Por um momento, perguntou-se se havia alguém que merecia. Quem estava fazendo isso com ele? Talvez.

Percebeu da pior forma que não era especial...

Após caminhar por cerca de duzentos metros sentindo a pistola na nuca, sentiu na pele a quentura e no nariz o cheiro de fumaça.

E o fogo, que tudo transforma, o transformou... em estatística, em um inquérito policial arquivado e na saudade e na revolta de alguém que, mesmo ele não tendo lembrado seu nome, sua voz, seu rosto, sabia que existia. Enquanto o fogo queimava, ele sabia que ela estava em algum lugar. Ele a podia sentir...