O ESTRANHO CASO DO HOMEM
QUE ENTROU NO LIVRO

PARTE 2 

Link da Parte 1, clique AQUI
 
   Sherlock deu mais duas baforadas no cachimbo. Pensou por alguns segundos se valia à pena continuar o diálogo descabido. Ele gostava de desafios e, depois de ponderar por um minuto, resolveu dar corda àquele homem para ver até onde ia a gravidade do seu desatino.

  — Sr. Acácio, afinal de contas, você pensa que está exatamente aonde?

    — Ora, sem dúvida eu estou dentro de um dos contos que compõem a antologia de mistério intitulada “As melhores histórias de detetives de todos os tempos”. E não tenho a menor ideia dos motivos que me trouxeram para dentro desta narrativa inédita de Arthur Conan Doyle. A composição original da obra foi descoberta há pouco tempo como um rascunho depois de sua morte.


   — E qual é o nome do conto?

   — “O estranho caso do homem que entrou no livro” com o subtítulo promocional de “uma aventura inédita de Sherlock Holmes”.

   Fiquei, reconheço, surpreso ao perceber o súbito brilho nos olhos do meu amigo detetive. Toda a sua postura e fisionomia se transfiguraram como se, de repente, houvesse ali um verdadeiro enigma a ser desvendado.

   — Então, o seu propósito é saber como veio parar aqui dentro deste mundo, do qual o senhor afirma ser uma obra de ficção?

     — Sim, pois sabendo como entrei, saberei como sair.

    — Entendo – assentiu Sherlock –, contudo para ajudá-lo, sr. Acácio, eu precisaria consultar um dos livros da minha biblioteca. Ah, que ótimo! Aí está a sra. Hudson com o chá. Pois muito bem, Watson, faça companhia ao nosso visitante enquanto busco corroborar algumas informações para elucidar determinadas questões que ainda me obscurecem os pensamentos. Já volto.

    Assim que Holmes se dirigiu à biblioteca, a sra. Hudson, depois de nos oferecer as xícaras de chá, passou a colocar algumas achas de madeira na lareira para acender o fogo. Era visível o nervosismo dela diante do olhar interessado do brasileiro sobre si. Aquilo notadamente era uma grande falta de respeito, não me contive e disse-lhe irritado:

    — No Brasil é costume entrar na casa das pessoas sem ser convidado, ou ficar observando acintosamente uma senhora enquanto lhe serve o chá?

  — Oh, me desculpe, Dr. Watson... é que tudo que se relaciona com os personagens do meu escritor preferido me fascina e...

   — Como o senhor entrou nesta casa sem ser convidado? Na verdade, o senhor a invadiu, já que a mesma estava de portas trancadas!

   Minhas acusações o empertigaram na hora. A face ficou rubra de imediato.

   — Arre égua, eu não invadi nada não! Tu tá doido, é? Tenho boa educação, visse? Simplesmente apareci aqui. Eu tava de boa lendo o livro e, sei lá, do nada, apaguei e quando acordei vim parar neste lugar, foi isso!

    A senhora Hudson, atenta àquela conversa estapafúrdia, olhou-me um tanto mais receosa e tratou de se retirar rapidamente aos seus aposentos. Não sei se para me irritar, ou por ignorância mesmo, o parvo começou a fazer ruidosos barulhos para sorver o chá. Era um homem realmente desprovido de educação no trato do bom convívio social.

   Calei-me por alguns minutos enquanto apreciávamos a bebida. Passou-me pelo pensamento Holmes ter solicitado uma pausa a fim de encontrar alguma forma de pedir ajuda à polícia. Acácio poderia ser um homem perigoso. Arrependi-me na hora de tê-lo confrontado com minhas observações ao seu comportamento questionável.

      Depois de mais de cinco minutos, Sherlock retornou à sala confiante. O brilho dos seus olhos estava ainda mais intenso. Aquela expressão de frustração desaparecera do semblante. Sentou-se, deu algumas baforadas no cachimbo e se dirigiu ao brasileiro.

   — Sr. Acácio, creio poder desvendar o mistério de como você entrou no mundo deste conto que é a minha realidade. Não me julgo um personagem de ficção. Sou um detetive de qualidades intelectuais excepcionais e, embora ainda esteja no começo de minha carreira, ainda prevejo um grande futuro para mim.

    — Sim, com certeza, o senhor é o detetive mais famoso do mundo. Hercule Poirot, de Agatha Christie, por exemplo, não é tão porreta quanto o senhor, não chega aos seus pés...

   — Quem? – interrompi curioso para saber sobre o tal Hercule Poirot, pois vi um lampejo de interesse de Sherlock por conhecer outro detetive que lhe pudesse ser de comparação.

    Embora a direção da conversa elogiosa à sua pessoa lhe fosse de muito prazer em ouvir, o lado mais pragmático do detetive, como sempre, dominou o seu espírito. Então, daquele momento em diante, sabia que Holmes tinha uma série de indagações por fazer a fim de resolver aquele desatino. Jamais duvidei de sua competência.

    — Sr. Acácio, gostaria de lhe fazer algumas perguntas e...

     — Manda vê, pode perguntar.

     — ... mas precisaria de resposta sinceras.

     — Não vou mentir, sou todo ouvidos.

    Larguei a minha xícara de chá muito interessado. Dei um estalo com a língua no céu da boca para emitir a minha satisfação com o término da bebida, recostei-me na poltrona de modo indolente e me preparei para testemunhar mais uma das extraordinárias performances de raciocínio lógico do meu amigo detetive.

    — Ao que parece – começou Holmes, largando o cachimbo e unindo as mãos para deixá-las displicentemente repousadas no colo – o senhor é fã deste tal escritor Arthur Conan Doyle, não é assim?

   — Com certeza! É o maior escritor de mistério de todos os tempos, na minha opinião.

     — Quem o incentivou a ler as obras deste escritor?

    Acácio não respondeu de imediato. Ficou em silêncio por um longo tempo. Não demorou muito, os olhos começaram a se mover de forma rápida e aleatória como se buscasse informações importantes dentro daquela mente perturbada. Pretendia falar alguma coisa, mas engoliu a saliva. Pela primeira vez, desde que colocara os olhos naquela figura exótica, percebi a autoconfiança na sua postura minguar, a alegria evadiu-se do semblante. O rosto murchou e empalideceu um pouco.

     — Meu pai – disse, finalmente.

   Sherlock, estava claro, percebeu a mudança na postura do brasileiro e, por alguns segundos de silêncio, considerou bem o que pretendia dizer. Achou prudente mudar o rumo da conversa.

    — De que forma Arthur Conan Doyle costumava narrar as histórias dos seus livros?

   Então, foi a partir desta pergunta que os acontecimentos tomaram um rumo completamente diferente, uma reviravolta inesperada digna dos melhores contos de Edgar Allan Poe, pois tomei um susto quando notei Acácio apontando-me o dedo indicador.

   — Ele, o Dr. Watson, é o narrador em primeira pessoa de todas as aventuras do senhor, exceto em 4 ocasiões. São quatros livros e quase setenta contos.

    Ouvi um assovio alto de Holmes admirado. Fiquei atônito, sem fôlego, porque na ocasião, por gostar muito de escrever, pretendia realmente narrar os casos do meu amigo detetive, mas, até então, não havia escrito uma linha sequer já que nos encontrávamos nos primeiros meses de nossa parceria. Tratava-se de um projeto para o futuro.

     Sherlock, mais uma vez, se entregou ao silêncio. Reparei a fisionomia dele ficar tensa, algo muito raro de acontecer. Dificilmente Holmes deixava transparecer as emoções. Fosse lá o que estivesse pensando, o próximo passo poderia resultar em alguma situação desagradável, ou até perigosa.

   — Sr. Acácio, você aparece no meu apartamento e me acusa de ser um personagem de ficção, afirma que eu não existo no mundo real. No entanto, o senhor está bem aqui conversando comigo, como se explica isso?

   O lunático deu um pulo no sofá e esbugalhou os olhos assustado.

   — O senhor está querendo insinuar que eu não existo também?

     — Não posso afirmar isso com certeza, todavia posso lhe dizer algo que o senhor precisa saber.

     — O que é? Pode falar.

     — Você e o meu amigo Watson ali são a mesma pessoa.

   Aquela declaração me atingiu em cheio como um potente soco no estômago, inclusive faltando-me ar por alguns segundos!

     O meu mundo virou de cabeça para baixo!

    De súbito, todo o apartamento começou a girar como se eu tivesse sendo acometido por uma crise de tontura. Escapa-me à compreensão, até hoje, as forças obscuras que me coagiram a me pôr de pé completamente grogue, feito um bêbado inconsequente. Desconheço, também, a natureza sobrenatural que agiu em mim para arrastar-me, contra a minha vontade, ao encontro do brasileiro. Ele, sentado, de modo inconcebível tornou-se translúcido... e eu também! Éramos, naquele instante, dois espectros assustados, um olhando para o outro... até ... até que nos unimos em um só corpo!

     Não encontrava-me mais sentado na poltrona junto à escrivaninha. Agora, estava de frente para o intragável detetive, próximo à lareira. Eu o encarei com raiva. Muita raiva. De alguma forma ele estava me manipulando. Já ia lhe dizer uns impropérios quando teve a audácia de me interpelar:

     — Posso saber com quem estou falando?

     Não quis responder, por birra. Estava furioso por induzir-me a cair no seu engenhoso ardil psicológico para me ludibriar. Ofereci-lhe à minha expressão contrariada, decerto uma carranca terrível, e pouco não faltou para atirar-me em cima dele à força de socos e pontapés. Queria quebrar a insolência daquela confiança irritante. No entanto, ele era um homem ardiloso, não se deu por vencido, levou novamente o cachimbo fétido à boca, deu duas baforadas, e disse-me confiante:

     — Agora sei que estou falando com o escritor Arthur Conan Doyle, meu suposto criador.

   — Suposto uma ova! Eu sou de fato o seu criador, Sherlock, e devia tê-lo mantido morto no conto “O problema Final”, isso sim.

    Levantei-me indignado em ser tratado daquela forma por um personagem ingrato que eu mesmo criei. Ele estava duvidando da minha autoria como escritor. “Suposto criador” disse-me ele! Veja só a ousadia! Ora, tudo aquilo ali à minha volta foi concebido por mim. Cheguei perto dele, inclinei-me um pouco à frente e olhei bem dentro dos seus olhos. Queria lhe dizer uma verdade também, mesmo que ele já soubesse.

   — Sherlock Holmes, preste atenção, você não é nada - levei o dedo indicador à minha têmpora direita e bati nela repetidas vezes. - Você saiu daqui de dentro da minha cabeça.

    A minha criação insolente se manteve impassível e sequer se afastou de mim. Percebi que ele não se encontrava intimidado como gostaria, pelo contrário, cruzou mais uma vez uma perna por cima da outra e, sem desviar os olhos dos meus, falou de modo claro e pausado:

   — Senhor Doyle... um homem tão inteligente, tão criativo, tão articulado feito vossa pessoa, já deve ter ouvido falar de um distúrbio mental chamado Transtorno Dissociativo de Identidade, não é?

    Levei outro baque nos meus sentidos. Afastei-me dois passos dele como se perto dele estivesse quente demais. Senti cheiro de outra emboscada psicológica na pergunta. Claro que nunca ouvir falar de tal distúrbio mental, até porque no meu tempo ainda não havia estudos sobre isso. Aquilo com certeza era uma cilada. Precisava sair daquele apartamento. Sentia-me sufocado!

   — Você não é o Dr. Watson ou Arthur Conan Doyle – continuou o petulante sem tirar-me da mira dos seus olhos perscrutadores.

     Levei as duas mãos aos ouvidos para não escutar mais aquelas insanidades, todavia o maldito era cruel demais e prosseguiu:

    — Farei o obséquio de explicar-lhe o que está acontecendo aqui. Você é realmente Acácio Raimundo de Pompeu! Quem está escrevendo essa história é você, e não um escritor já falecido há mais de noventa anos.

   Eita que aquela prosa, aquela escrevinhação toda, de repente, começou a fazer um pouco de sentido. Um remanso caiu por riba de mim e senti uma saudade imensa e inexplicável de painho. Ôxe, o velho Chico era tudo pra mim. Que saudade. Eu e meu pai líamos, juntos, todas as histórias de mistério do detetive mais famoso do mundo. Minhas pernas afrouxaram e me arriei no tapete da sala. Comecei a soluçar enquanto Holmes dirigia-me esclarecimentos, agora, mais compreensíveis à minha razão.

     — Você se encontra no hospital psiquiátrico de Teresina em 2021. Está sob o tratamento alternativo específico para o seu caso. A terapia inclui medicamentos e produções literárias das quais gosta de escrever, das quais o seu psiquiatra tem esperança de que possa extravasar partes das suas múltiplas personalidades e chegar à verdade. Acácio, você precisa superar a morte do velho Francisco de Pompeu, seu pai.

     — Sim. Agora sei quem eu sou de fato. Meu nome é Acácio Raimundo de Pompeu. Não sou Arthur Conan Doyle. Jamais fui.

   A verdade não era tão fácil assim de superar. Doía-me muito. Sufocava-me! Meu pai, meu velho pai... coitado.... Quando fiz menção de me levantar à procura da brisa que vinha da janela, senti uma dor horrível na parte de trás da cabeça. Fiquei atordoado, tentei olhar às minhas costas pra ver o meu agressor, mas devo ter desmaiado, porque a escuridão da inconsciência me envolveu sem a menor chance de defesa.
 
      Acordei indisposto naquela manhã, em meados de abril de 1883. Não fazia a menor ideia de como adormecera na poltrona em frente à lareira. Levantei-me e reavivei o fogo já quase extinto. Estava um dia muito frio. Em seguida, aproximei-me da janela e olhei com interesse à movimentação dos transeuntes na rua mais famosa de Londres. Senti um movimento atrás de mim. Virei-me displicente e tive a grata satisfação de vê-la entrar na sala com um maço de folhas nas mãos.
   
     — Bom dia, sra. Hudson.

   — Bom dia, sr. Holmes. Sinto muito pelo rompimento de tão bela amizade entre o senhor e o Dr. Watson. Hoje, antes de partir, ele encontrava-se arrasado, mas disse-me que ia embora para não mais voltar. Antes de partir, porém, solicitou-me para lhe entregar este manuscrito do qual se dedicou na última semana.

   — Dispenso qualquer composição oriunda de alguém que me considere um homem dissimulado. Não tolero este tipo de observação a meu respeito. Faça-me o favor, minha cara, jogue estes papéis na lareira.

   Ela se aproximou da lareira e, sem a menor hesitação, jogou o alfarrábio no fogo. Depois, veio postar-se ao meu lado, junto à janela, para observar a vida correndo lá fora.

  — Sabe, senhor Holmes, eu sempre considerei o Dr. Watson um homem muito estranho!

     — Eu também, minha cara sra. Hudson, eu também.



Este conto foi escrito para participar de um Desafio Literário do qual a premissa básica, a fim de comemorar o dia do livro, dia 23/04, era colocar um personagem dentro do seu livro favorito.
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 28/04/2021
Reeditado em 11/07/2021
Código do texto: T7243161
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.