A loteria

A Loteria

Lizete Abrahão

Roberto é um garoto de 16 anos e que vive numa pequena cidade do interior. É pobre, mas sua família, apesar das agruras da vida mantém-se unida. Quase todos ali trabalham, desde o pai até o irmão de 12 anos que vende os picolés feitos pela mãe. Apenas Tininha, a caçula, e o tio, já aposentado, é que não trabalhavam: ela, por ser tão pequena e ele, por problemas sérios no coração. Diziam os médicos que qualquer emoção, por pequena que fosse, poderia ser-lhe fatal.

É Domingo. Véspera de Natal.

Depois da missa na Igreja Matriz, o pai foi roçar o que ele chamava de horta. Os pequenos dispararam para a pelada na rua. A mãe e Tinha, com rádio ligado e cantando junto, enfiadas na cozinha minúscula, preparavam o almoço e adiantavam o que seria a ceia de Natal. Por ser domingo e a família estar reunida, tio Pedro resolveu que iria pescar o almoço, no rio estreito que cortava a cidadezinha.

Pegou uma cesta, caniço e algumas minhocas. Quando saía da casa, lembrou-se de alguma coisa e voltou. Caminhando devagar, como sempre, meteu a mão no bolso e disse a Roberto, que tentava, em vão, consertar a fechadura da porta principal:

-Roberto, faz um favor?

-Claro, tio, pode pedir.

-Olha, falou mostrando um pedaço de papel, eu comprei este bilhete da loteria de ontem. Mas como não estava muito bem, tomei meus remédios e dormi. Perdi o resultado da loteria que dá no rádio. Mas eles repetem nos domingos, por volta das dez horas.Você confere para mim?

-Pode deixar comigo, confiro sim. Eta tio! Querendo ficar rico, é?

-É, bem que podia mesmo, se a sorte um dia viesse me visitar...Mas tenho que tentar, não é mesmo? Comprei o bilhete com o restinho que roubei da minha aposentadoria. Mas não diz nada para sua mãe. Ela não gosta que eu gaste dinheiro com o que chama de jogo de azar. Já pensou...poder dar uma vida melhor para vocês, e eu poder viver o tempo que me resta, sob a sombra da figueira, só sonhando...

E foi andando, olhos sonhadores, caniço, cesta e minhocas com ele.

-Mãe, grita Roberto, aumenta o volume do rádio, também quero ouvir música. E quando for sair o resultado da loteria, me chama correndo, quero ver se saiu um número que sonhei...

-Tá bom...tá bom...eu chamo. Mas que mania você e seu tio têm de só ficar pensando em ganhar na loteria.

A música espalhou-se pela casa, pelo quintal, perdia-se por cima da cerca, árvores...

E a fechadura nada de funcionar. Comprar outra nova, nem pensar.... Cantarolava...Depois do almoço iria até à praça. Quem sabe poderia encontrar a filha do seu João da padaria...bonita ela...

-Roberto! Olha o resultado da loteria! Gritou a mãe da cozinha.

-Tô indo. Pegou um lápis, na corrida, e colou o ouvido no rádio.

-Credo, rapaz! Pra que isso? Até parece que espera ganhar na loteria.

-Não é por nada não, mãe. Mas se sair o número que sonhei, compro um bilhete mesmo, se sonhar com números de novo.

-Compra nada, dinheiro não tá sobrando pra isso.

E Roberto ia anotando todos, em um pedaço do papel que embrulhava o pão em cima da mesa.

-Pronto, mãe, se quiser pode diminuir o volume, não saiu o meu número....

E se foi para a saleta.

Pegou o bilhete do tio, que guardara no bolso da bermuda, e sentou-se na cadeira que havia colocado para calçar a porta.

Um a um, os números foram sendo conferidos. E a cada um o coração saltava. Chegou ao primeiro prêmio. A mão até já tremia. Se soubesse que iria ficar nervoso desse jeito, não teria aceitado a tarefa, pensava.

O coração já nem pulava, corria em disparada. Olhou de novo, não podia ser! Todos conferiam! E era o primeiro prêmio!! Algumas lágrimas o impediam de ver direito. Seu tio ia morrer de alegria.

-Morrer??? Meu Deus do Céu! Virgem Maria! Você tem certeza?

-Tenho mãe. Mas como vamos contar pra ele?

-Nossa Senhora Aparecida! Ele vai morrer mesmo quando souber... E chorava copiosamente. Vamos esconder isso dele. Não queremos perdê-lo, não é mesmo?

-Claro que não, mãe. Mas ele tem direito de gozar desse dinheiro. Pode até se tratar nos Estados Unidos e ficar bom.

-Não, meu filho. O caso dele não tem cura, em lugar algum do mundo. É só uma esperança que ele alimenta.Tem os dias contados. Só eu e seu pai sabemos disso. Muitos médicos já falaram conosco.

-Vamos fazer assim então: contamos só pro pai e, aos poucos, devagarinho, um tantinho por dia, contamos pra ele. Ou, quem sabe, vou na lotérica e digo que o bilhete é meu? Não, não adianta. Mentiras têm pernas curtas. Ele ficaria sabendo, um dia, que seu bilhete foi premiado. Deus me livre de ele pensar que eu roubei dele! O que fazer mãe? É muito dinheiro!

-Mãe!Mãe!

Era Tininha, a caçula, correndo esbaforida e entrando na cozinha feito furacão.

- O pai tá chamando, venham ligeiro!

Mãe e filho saíram às pressas, atrás de Tininha, em direção ao rio.

-Olha mulher. O Pedro...Filho, veja seu tio...

Soluçava, lágrimas molhavam-lhe as faces, corriam pelos vincos como o rio estreito.

Estatelados, olhos arregalados, mãe, filho e Tininha olhavam o corpo do tio Pedro, recostado na árvore. Olhos fechados, peixes caraminguados na cesta.

-Meu Deus! O que aconteceu? - gritou a mãe.

Só então Roberto viu seu João, que, além da padaria, tinha uma pequena casa que vendia quinquilharias e bilhetes ...

-Hoje, quando ouvi o resultado da loteria, como sempre faço, anotei os números. Quase não vendo nada e lembrei que o seu Pedro havia comprado o último bilhete. Lembrei do número porque ele me disse que sonhara com ele. Até me pediu que cuidasse de conferir isso pra ele. Vim correndo quando vi que o número dele fora o sorteado. Quando estava começando a contar para ele, colocou a mão no peito e me pediu que o ajudasse a sentar debaixo dessa figueira. Foi o que fiz e fui correndo chamar vocês.

Roberto, tentando conter a emoção, olhou para o tio.

-Pai, mãe...ele está sorrindo...

E uma estrela riscou o céu...

lizeteabrahao@terra.com.br