Os Anjos Caídos

Ela andava em meio à multidão como se mais ninguém além dela existisse. O olhar fixo em um ponto como se existisse um caminho imaginário para onde ela se dirigia. Visivelmente apática... Visivelmente sem nenhuma emoção manifestando os músculos da face pálida. Os ossos pareciam saltar-lhe da pele. Encontrou um banco de praça e sentou-se. Passou a ponta dos dedos que escapavam pelos vãos. Não limpava o assento... Permitia que seu tato se recordasse de algo. Seu pensamento foi longe...

Ela esteve aqui tantas vezes, que perdeu a conta. Recebeu o perdão por sua traição, mas nem seu pai poderia livrá-la das conseqüências de seus atos. Ela cobiçou a vida que agora rejeita! Seu pai a deu... Mas sua função não poderia abandonar. Nasceu exatamente para isso e para assim ser pela eternidade. Cada um é criado para uma função exata, e o não cumprimento desta desequilibra tudo.

Olhava ao redor e percebia que outros estavam abandonando suas funções. Porque o caos estava cobrindo o mundo como uma sombra gigante e ninguém a estava notando. Talvez, os outros não se lembrassem de quem são como ela se lembra. Em sua mente todas as lembranças estão claras como se houvessem ocorrido há poucos instantes.Algumas delas trazem intenso sofrimento. Ela tinha a palavra certa para todos os corações aflitos... Mas, para ela os conselhos não serviam. Não podia esquecer o motivo de sua condenação. Aconteceu e estava acontecendo o momento que cobiçou e por isso caiu. E tem caído por eras e eras.

Era simples cumprir sua pena. Bastava infiltra-se onde devia e fazer o que devia ser feito. Ao término, bastava cair... Depois de uma das quedas, tudo mudou.

Onde vivia havia um igual a si mesma. Eles estavam sempre juntos tarefando o dever. Quando a indecente proposta surgiu, olharam-se e viram que havia uma chance. Eles desejaram fazer parte daquele plano para serem dignos de participar do Grande Projeto. Desse desejo nasceu à cobiça. Tiveram o desejo satisfeito, mas teriam que pagar pela escolha para que a harmonia do Projeto não fosse transgredida. Foram expulsos com os demais, e tornaram-se prisioneiros em abismos escuros no interior de animais, minerais e vegetais. Para que desfrutassem do que tanto ambicionaram, teriam que merecer cada estágio de evolução. E nisso, perderam-se! Pois cada ser tem seu tempo de existência: uns mais outros menos. Desencontraram-se. E como foi longa a evolução que os trouxesse a esta condição!

Passaram-se muitos e muitos anos... Eras... Ela estava para cair novamente quando contemplou um guerreiro prostrado numa noite cheia de estrelas, a rezar. Dele vibrava a mais doce e profunda energia que ela bem conhecia. Mas, assim como tem que esperar para voltar tem que esperar para cair... E assistiu a chance de ter seu desejo nas mãos, numa espada que findou aquela existência. E novamente caiu...

E quando se encontrava caminhando em meio à floresta densa, carregando um cesto e cantando como que imitasse o som dos passarinhos, uma dor tomou-lhe o peito. Seguia pisando as folhas secas aos montes pelo chão, que faziam um som que gostava... Afastava as folhagens e os cipós pelo caminho como quem abre uma cortina... Ia descendo um pequeno morro onde uma antiga trilha quase desaparecia... Lá embaixo, ele ergue-se e ela o reconheceu! Ele estava fugindo, escondendo-se ali. Ela, depois de tantos olhares que aconteciam apenas quando se cruzavam nos amplos corredores, o tinha ali a poucos passos de si. Levando-lhe algum alimento para saciar a fome de dias. Ele a olhava como se um sol estivesse nascendo diante de si. Ela tentava esconder sua emoção, aproximando-se e apenas permitindo que o brilho intenso de seus olhos se revelassem. Foram minutos... Muitos minutos assim... Talvez agora, o amor proibido teria fim. Ela estendeu a enorme toalha bordada, e compunha uma falsa mesa para seu amado. Ele a olhava e cada gesto seu considerava tão belo! Ele abaixou-se e segurou-lhe a mão, passando-a em seu rosto como se não quisesse mais esquecer aquela sensação. Eles apenas abraçaram-se contendo o desejo que os perseguia por tanto tempo. Tentaram gravar num abraço como era estar ligado um ao outro. Depois daquele dia, ela não mais o viu... E de novo, ela caiu!

Ele foi o camponês na choupana na floresta, que no campo abraçava-lhe e lhe dava Alfazemas. Ele foi o motivo da sombra diante da lareira crepitando a lenha enquanto segurava sua mão, ensinando-lhe a desenhar com carvão. Ele foi o bem sucedido Capitão e mercador, que sendo ela ainda precoce a tomou para si. Partiu em seu navio e não mais voltou. Por isso ela de novo caiu.

Agora estava ela ali... Lamentando por mais uma vez que teve seu maior desejo tão perto...Ela sentiu medo e o mandou embora! E ele foi! E não voltou atrás! Ele não se lembra quem é, assim como os outros que abandonam a tarefa... Ele esteve tão perto!

O olhar dela nem pisca... Parece já morta, mas respira! As pessoas passam e observam curiosos, a bela moça de cabelos como a noite ali sentada por tanto tempo olhando para o nada. Engano deles...Ela olha para o passado tão presente!

Depois de horas, olha para seu lado para o lugar ainda vazio... Ele está em algum lugar, vivendo uma vida que não quer, acreditando ser tão pequeno, lutando por utopias, fingindo estar bem... Distante... Não se compadece pela dor dela... Ela que espera pelo menos um ponto, uma vírgula ou pelo menos um adeus para ter fim à dor.

Ela passa novamente os dedos pelo banco olhando o lugar vazio. Enfim se levanta e segue... Ela novamente terá que cair!

São Paulo, 31 de Outubro de 2008, 04: 01

(APENAS UM PEQUENO SURTO INSANO MEU)

Shimada Coelho A Alma Nua
Enviado por Shimada Coelho A Alma Nua em 31/10/2008
Reeditado em 31/10/2008
Código do texto: T1257558
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