ETHOS, EROS E TANATOS

Disse-me Carmina que sábado haverá um debate sobre a família na livraria VEREDICTO, em Icaraí, Nirerói, conhece a dona e coisa e tal... gostaria que eu fosse. A Banda Resumo toca um bolero do Aldir Blanc, faço o leque ( passo de dança de salão, no qual os pares ficam lado a lado e justapõem os pés em alternância, na frente da perna do outro) , dois pra lá, dois pra cá e paro. A orquestra dá um intervalo.
Enfeito minha mesa com um Campari, detesto o sabor agridoce do drink, bebidas fermentadas ou destiladas já não posso mais, sofro de intoxicação idiossincrásica: um baixo limiar de tolerância à bebida, vivi glórias e infortúnios na minha juventude por causa da facilidade com que fico de pileque. Convido Carmina para me fazer companhia. Vai ao banheiro volta e senta à minha mesa.
“Fez sociologia onde?”.
“Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro”.
“Me formei em medicina lá em 1978”.
“Tenho dez anos de formada”.
“Conhece os trabalhos de Morgan?”.
“Das citações de Engels... Aborda a formação da família no período neolítico, quando os homens abandonaram o nomadismo e fixaram grupos à terra para cultivos agrícolas...”.
“E aí surgiu o casamento sindiásmico, no qual o casal se permite transas extra - conjugais, com outros parceiros mais ou menos fixos, mas procura manter para a prole a terra conquistada...”.
“Isso parece com as experiências de casamentos abertos que aconteceram nos anos setenta do século passado, não é mesmo?”.
“É...”.
“Engels diz que a grande derrota histórica da mulher foi o advento da monogamia”.
“Isso mesmo, mas desconsiderou o ser biológico feminino, no qual o contato da cavidade intra – abdominal com o meio externo e as moléstias do mundo se faz por meio da vulva, que a predispõe mais gravemente às doenças sexualmente transmissíveis”.
“Interessante essa visão biológica, mas prefiro olhar o ser feminino sob ótica histórica: o impacto consuetudinário maior sobre a mulher ocorreu com a vitória do cristianismo no Império Romano, sob a liderança de Constantino”.
“Como assim”.
“Os encratitas fizeram uma grande mobilização popular por uma devoção a Virgem Maria sem precedentes. O homem passou a enxergar a mulher sob os prismas dos mitos de Maria e de Afrodite”.
“Esses arquétipos impostos ao mulherio fizeram com que ficassem divididas entre o ser e o nada por séculos. Até surgir o movimento feminista e suas viragos”.
“O macho passou a querer Maria em casa, na sala e na cozinha, mas na cama passou a estranhar suas iniciativas mais íntimas, e daí foi um passo para ocorrer a repressão. Afrodite, coitada, passou a ser considerada como puta ”.
“Na época dos romances de cavalaria a mulher ficava reclusa às torres, quando nobres, ou no gineceu, quando servas, onde entravam apenas o senhor feudal ou seus soldados feridos em combate”.
“Um ferimento pequeno seria de bom alvitre para ter cuidados femininos”.
“Tenho muitos ferimentos”.
“Imagino”.
“Se Flaubert tivesse que escrever Madame Bovary no século XX, a personagem não tomaria arsênico, se manteria viva e infernizaria a vida de muitos homens. O ethos social feminino é confuso no mundo moderno”.
“Como os homens vêem as mulheres hoje em dia?”.
“Vêem com olhos de lobos. Mas eu já não consigo mais pensá-las somente como objetos obscuros do desejo. Vivi muito, fiz muita pesquisa de campo até completar o estudo, tenho uma casuística de quase sessenta casos. Sistematizei-as em três tipos”.
“Garçom, traz uma cerveja!... Quais são eles?”.
“Sérias, descartáveis e biodegradáveis”.
“Fale das sérias”.
“São as únicas que têm que se equilibrar entre extremos”.
“Como assim?”.
“Existem mulheres sérias mundanas e sérias econômicas. As primeiras são mais divertidas e com as segundas é mais fácil realizar um patrimônio. A mulher ideal seria um meio termo entre as duas, a ideal é competente nos prismas mundano e econômico”.
“As mulheres modernas precisam ser partícipes da população economicamente ativa”.
“Mais que isso: precisam transitar entre as funções de mãe, de mulher e de cidadã com equilíbrio, como se as três funções fossem uma coisa só”.
“E as descartáveis?”.
“São iguais a garrafa de plástico, depois das relações transformam-se em ex - esposas intragáveis, hostis e vazias, demoram mais de cem anos para desaparecer na natureza. Poluem e perturbam o ambiente ecológico humano.”
“Existem ex – esposas que são boas amigas”.
“Meu cunhado tem uma (ex) amiga e outra nem tanto. Não posso falar da minha por que sempre fui ruim de transa”.
“Qual o último tipo mesmo?”.
“Ah!... Sim... Chamo de biodegradáveis àquelas que escorrem para o ralo espontaneamente após sobreviverem do corpo na juventude, embora existam mulheres descartáveis que não têm coragem de assumir essa vocação, muitas vezes só por causa do medo do HIV”.
“Gosta dessa música?”.
“Gosto”.
“Vamos dançar?”.
“Vamos”.
“Nossa como você é leve para dançar”.
“Leve para isso sempre sou”.
Carmina aperta minha mão esquerda, meu braço direito abraça sua cintura, colamos nossas bochechas. Sinto um certo cansaço. A intimidade já não passa somente pelo sexo. Gostaria que me conhecesse muito bem, para poder dizer para Carmina que os meus fantasmas são os seus lençóis. Ethos, Eros e Tânatos; Tânatos, Eros e Ethos. Eros? Ethos? Tânatos?...Tudo coexiste numa síntese do tempo, neste exato momento em que encerra o baile.
Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 02/11/2008
Reeditado em 16/09/2022
Código do texto: T1261853
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