MAGIA III
                    A BACIA DE PRATA
 
            Um casal de mágicos, usando da magia, transportou-se a um mundo de sonhos e de medos governado por um Sol-menino.  Neste conto, eles residem naquele universo.
 
          Repousavam placidamente sob um arvoredo podendo observar a pradaria ao redor, área de um verde repleto de gramíneas e flores minúsculas, quando sem mais nem menos surgiu diante deles, quase a seus pés, uma estrada rural intrigante. Em chão batido, a estrada mostrava sulcos lembrando rastros de carruagens. Nascia do nada à esquerda, a menos de 200 metros, e terminava exatamente onde estavam os dois. E, da esquerda, pela estradinha sem começo, aproximava-se um carroção tendo na boleia um anãozinho. Fez com que os animais parassem. Escorregando-se pelos raios da roda veio ao chão e andando desengonçado, disse:
            -- Tenho uma única bacia de prata, sobra de feira. Sabem da utilidade dela.
            Obedientes, os cavalos quase não se moviam. Estavam visivelmente cansados, suados, mas eram fortes. O aspecto geral era de animais expostos a uma longa caminhada até chegarem ali. O anão fez uma reverência e num salto voltou a boleia. A estrada que existia à esquerda desapareceu. Um pedaço de estrada surgiu diante dos cavalos que reiniciaram a puxar o carroção. Em menos de um segundo não havia mais a estrada. Não havia mais o carroção. Não havia nenhuma prova do ocorrido, exceto por uma pequena bacia que o vento virou sobre a relva.
            Dias depois ela encontrou um pequeno animal quase inerte às margens de um pequeno lago. Não havia sinais de contusão e eram frágeis os sinais de vida. Ele fez alguns linimentos para banho e ela deixou na bacia de prata um espelho raso de água, para que o animalzinho não morresse afogado ao tentar tomar da água do poço mais profundo. Ocultaram-se os dois observando o animal durante algumas horas. Depois de muito tempo, com muito esforço, o bichinho pôs o corpinho sobre as patinhas e ingeriu um pouco da água da bacia. Quase imediatamente o corpinho todo pareceu iluminado, como se houvesse por dentro uma lâmpada azul. Ao voltar ao normal estava curado, alegre e brincalhão.
            A partir de então o casal ousou olhar para espelhos de água no fundo da bacia de prata.
            Na primeira tarde viram uma batalha. Soldados defendiam um castelo contra o ataque de invasores. As cenas eram de brutalidade, de morte por fogo, espadas e pedras atiradas por engenhos mecânicos rudimentares. As cenas eram tão horríveis que o ar pareceu ainda mais aquecido e ela não se sentiu bem durante toda a noite.
            Na tarde seguinte, no fundo da bacia de prata, havia uma longa fila de carroças transportando defuntos que eram atirados de uma laje. Os corpos caiam em um precipício muito profundo, desaparecendo no breu. Também aquelas cenas a abalaram e ela novamente não teve uma noite feliz.
            Ele propôs jogarem a bacia de prata em algum lugar para que o vento a levasse, ou a vegetação a cobrisse ao longo de algum tempo. Ela não concordou. Disse que a lâmina de água no fundo da bacia não provocava o ataque ao castelo, nem produzia os cadáveres para o alimento do abismo. As imagens eram mostradas ali porque, em algum lugar, pessoas faziam acontecer tudo aquilo. Fechar os olhos aos fatos seria tolice. Talvez houvesse alguém capaz de ver com olhos de quem deseja agir cortando as causas.
            Na tarde seguinte havia no fundo da bacia uma plataforma elevada, muito aprazível, de onde o observador podia ver a Lua refletida nas águas escuras de um mar muito calmo.
           Dispostos a atrair a Lua para que no Conselho Celeste convencesse o Sol-menino a ser mais ameno, decidiram procurar aquele penhasco. Ele a convenceu em seu propósito de atravessar densa floresta. Ela aceitou fingindo acreditar no propósito dele, isto é, conhecer novas espécies vegetais. Soube, entretanto, desde sempre, que a outra alternativa seria penosa, pois caminhariam quase sempre sem proteção de sombras que filtrassem os raios solares.
            Concordando com ele, adentraram a floresta.
            Ainda que nem sempre ele tivesse demonstrado em outras ocasiões qualquer tino em suas iniciativas, caminhar pela floresta foi, a bem da verdade, uma grande ventura. A mata escondia tesouros de um valor incalculável em sua flora e em sua fauna. Existiam milhares de espécies de pequenas borboletas, centenas de milhares de pequenos pássaros que os festejavam. Ela usava um similar de cordão de embira para criar enfeites de flores a guisa de contas de seus colares naturais e ele colhia mel e outros alimentos variados. De certa forma eram como os casais do mundo atual, cada um procurando dar conta de seus achados, mergulhados no dia-a-dia para encurtar as distâncias entre si e suas carências do ter.  A floresta era exatamente isso, uma floresta repleta de caminhos e desvios e eles, logo habituados, não se importavam muito quando, se separando  perdiam um ao outro. No dia seguinte, ou no inícicio da noite, estariam lado a lado, cada um podendo falar sobre suas andanças ainda que o outro estivesse pensando em seus próprios sucessos durante o monólogo. Assim,  cada reencontro mostrava o distânciamento se ampliando.  De ponto em ponto nasciam olhos de águas que corriam sobre pedrinhas brilhantes até se concentrarem em pequenas poças contendo peixinhos de muitas cores em suas escamas. Ali repousavam conversando e muitas vezes adormecendo ao relento, como se fossem elementos naturais naquela natureza exuberante.
            Descobriram maravilhados que no interior da floresta seus pensamentos eram claros e limpos. Absolutamente destituídos de qualquer nódoa importada através dos tempos por questões genéticas. Gostava um do outro e muito profundamente, na plenitude de um amor sublime, semelhante ao descrito nas Sagradas Escrituras, e relativo a um período anterior aos fatos que levaram o zeloso narrador dos acontecimentos sagrados a culpar a cobra pelo fascino que então teria aquele homem primordial experimentado em relação à maça. Posto nestes termos deve-se entender que se descobriram não apenas em um mundo novo. Descobriram-se renascidos.
            Findos os apetites de parte a parte, inclusive porque a floresta oferecia mil entretenimentos e aventuras, extenuando-os, e um milhão de motivos elevados que os transportavam para patamares outros, descobriram maravilhados que abriram-se as mentes para as maravilhas de um mundo sem traumas e assim se descobriram em uma parte do universo onde os sonhos jamais dariam causas aos pesadelos, nem haveria jamais a menor sombra de sustos. Souberam, enfim, serem de Deus e que todo o mundo está no maligno, conforme o Livro Santo.
            -- Não se esqueça de esquecê-la – Disse a ele o galho de uma árvore talvez milenar, galho que teria provavelmente muita experiência. Isso, a julgar por estar vergado como um portal pelo peso de seus séculos. Cobria-se de musgos e de outras espécies de parasitas. E em sua base e em sua sombra vingavam belas hortênsias de várias cores convivendo em harmonia com lindas orquídeas.
            Ele intuiu que o mesmo conselho chegara aos ouvidos dela por outros emissários que não um galho de venerando saber e não se preocupou muito com aquilo de não esquecer de se esquecer. Pelo menos em seu dicionário de bolso aquele verbete era um dos que, num passe de mágica, estavam perdendo a intensidade da impressão, tendendo a deixar na folha um espaço absolutamente em branco uma vez que onde existe a consciência a nível ultra elevado não há sentido em existirem  tais palavras.
            Em outros pontos naquela excursão sob a proteção das folhas das árvores, surgiram duendes e criaturinhas tendentes a tentá-los. Foi assim que ela se deparou com um ser a lhe soprar aos ouvidos, por dias inteiros, a receita de uma poção mágica para aumento da sexualidade. Houve mesmo a chegada inesperada de emissários da decadência exibindo aos olhos dela um caldeirão que poderia ser usado para o aquecimento da mistura. A receita – que ela não anotou – incluía casca de laranjas, noz-moscada, folhas de limão, pétalas de rosa, hortelã, coentro, chá preto, pitadas de tomilho, pitadas de alecrim e água mineral. Depois de aquecida a água no caldeirão, ela devia colocar as ervas em processo de infusão. Em seguida devia servir e servir-se. 
            Por razões já explicadas aqui, ela não precisava dos efeitos prometidos e não deu ouvidos. Aquelas criaturas desapareceram vencidas pelo cansaço.
            Para ele, entretanto, ela fez, aconselhada por uma fada, uma boa mandinga, especial para o aumento da auto-estima. Aqui vai a receita:
            Aveia, mel, pétalas de seis rosas-vermelhas ou cor-de-rosa, banho de lavanda.
            Em um mingau fino de aveia deve-se acrescentar água mineral. Adiciona-se um fio de mel e pétalas das seis rosas. A pessoa deve tomar banho nessa poção mágica e, depois, deve ser enxaguada com um banho de lavanda. Importante: deve vestir-se depois do banho. Mesmo que o espírito seja superior a roupa deve ser clara.
            Por último, dois dias antes de saírem da mata, já bem próximos aos rochedos que procuravam, encontraram uma tabuleta onde existiam alguns caracteres gravados a fogo. Era uma tábua de pedra que num passado muito remoto fora um carvalho.
            Ainda que dotados de espírito livre de máculas e repletos de conhecimentos, tiveram alguma dificuldade para traduzir aqueles sinais esquisitos. Por fim ela conseguiu. 
              Dizia quem ali deixou seu pensamento não se sabe por quais motivos:

              ”Em um mesmo universo alguns morrem de amor e outros vivem eternamente amando.”

 
            A bacia de prata, entretanto, ainda reservava um espetáculo aos olhos do mágico. Deu-se assim que eles visualizaram a cara da Lua no fundo do mar.
            A Lua se transformou em mulher sagrada envolta em nuvem sobre o rochedo. Das nuvens que envolviam os pés da dama usando lilás sem babados e rendas, provinham músicas tão maravilhosas que não há na Terra compositor capaz de pôr em uma pauta. Vindas de algum lugar, pequenas aves tocavam na palma daquela mulher e voavam para o sul, transformadas em pequenas nuvens mais finas do que retalhos de véus. Véus que as adolescentes usavam sobre suas cabeças durante a celebração das missas que autorizavam o reverendo monsenhor a atestar que, entre as famílias de posse pelo menos, existiam as adolescentes puras e inocentes. 
              Intuiu o mágico que as aves eram uma representação das pessoas que viveriam eternamente amando. 
            Qual não foi sua alegria ao perceber que a mágica ao seu lado adquiriu asas? Mais do que isso, vou para a palma, e de lá subiu aos céus na forma de vapor glorioso.
            E tudo desapareceu de repente, menos ele que voltou de um susto, pois lhe pareceu ver aproximando-se um grupo de pigmeus trazendo a carroça que levaria seus ossos para as profundezas do abismo. 
            Em razão de seus horrores, destinava-se a morrer de amor. 
            Com sorte escolheria a espécie de amor mais puro, algo mais ou menos etéreo, que lhe sustentasse o cadáver menos denso e o levasse flutuando a alguma plataforma escura , saliente, na garganta do penhasco. 
               E ali, enroscado, seria denso bolor eternamente.
 
 
 
 
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 10/12/2008
Reeditado em 13/12/2008
Código do texto: T1328777
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