Sardinhas Me Afoguem!

Morri ontem. Melhor: desencarnei ontem, pois sou espíritista.

Não me tomem por louco. A verdade é que me vi diante do altar do Altíssimo. Estava eu envolto numa túnica muito alva e a contragosto, vi que não tinha um lindo par de asas e faltava-me um anel de ouro cintilante sobre minha cabeça. Diante do Todo Poderoso, fui argüido a respeito de minha extinta existência naquele vale de lágrimas chamado Terra, se bem que nem só lágrimas eu vertia naquele mundo!

E eu, sabendo da gravidade do momento e da importância do evento, busquei no fundo da minha alma um restinho de modéstia que eu havia guardado para essas emergências, evocando o espírito eterno da arte de representação, já fui logo dizendo, numa atitude humilde e submissa, cheia de afetação e salamaleques:

- “ Ó Deus! Vós Sois quem Sois e eu sou o que nada é. Sabeis a resposta do que me perguntais antes mesmo que eu vos venha responder. Mas obedecendo Vossa autoridade que pretende saber de mim o que é que fiz de minha vida, digo-Vos, Senhor, sem medo de errar ou cometer um vitupério, que eu fui um homem bom. Busquei e alcancei com enorme sacrifícios as virtudes mais caras determinadas pela Vossa Lei! Fui para muitos um exemplo a ser seguido e não poucas vezes, socorri os pobres, amparei as viúvas, amparei os órfãos e apaguei minha luz para que se brilhasse a Vossa! Minha honestidade e bondade deverão merecer o reconhecimento dos homens, que se forem justos, erigirão monumentos para honrar e perpetuar o meu humilde nome!

- “Apenas para ilustrar-Vos quão bondoso, generoso e simples eu sou, permita-me relatar-Vos que no último fim de semana fui para a fazenda pescar. Fazia muito tempo que não pescava e apesar de um dia esse tipo de passatempo ter sido para mim um gosto e uma satisfação pelo fato de estar no mato e encontrar gáudio e gozo sacrificando uns peixinhos para serem devorados com duas ou três cervejas bem geladas, desta vez, não sei se por culpa da largueza do tempo que não praticava esse capricho, ou se por culpa dos janeiros que corroeram minha frieza d’alma, (porque como sabeis, a velhice arrefece a dureza dos nossos corações e traz consigo toda sentimentalidade que se verifica nos velhos e nos românticos), ou ainda se por culpa da minha adiantada evolução moral e espiritual, não achei no esporte (vá lá por conta da minha superna sutileza), graça alguma! Comoveram-me as sortes dos peixes e das minhocas, pobres animais! Filhos da Vossa Criação!”

- “ Como, -perguntei ao Senhor, poderia sentir prazer em empalar uma minhoca, cravando-a no acúleo de um anzol, armando uma emboscada terrível e fatal para algum incauto peixinho, que andasse por aquelas bandas do rio buscando algo para forrar o estomago? Meu coração enternecido dispensou-se de praticar tão grande crime e meu cérebro voou longe... Do mato entrou no Carrefour e comprou dois quilos de filé de merluza e três latas de sardinhas. Passei pela seção de bebidas e busquei duas cervejas, sem álcool, naturalmente. Quando eu ia para a fila do caixa, uma horda de mutucas e borrachudos me fizeram despertar daquele delírio e me obrigou a sair correndo da beira daquele rio. Assim, ó Deus, me apresento: um homem que tem amor pelos vossos pequeninos animálculos... Preocupa-me a sorte do verme que fecunda o solo e a dos peixes que se comem uns aos outros numa ictiofagia sem fim e sem pecado, pois eles apenas obedecem a uma lei soberana que lhes governa suas vidinhas tão cheias de remansos e corredeiras: a lei da necessidade de comer para crescer e com um pouco de sorte, não ser comido!

Vede, ó Pai: sou um homem bom que merece estar convosco no paraíso e comer e beber do melhor que possa vossa munificência oferecer-me! Diga-me agora, ó Deus, onde devo sentar-me? À vossa direita? Onde?”

E Deus onipresente, onisciente e onipotente, disse para mim:

- “Alegra-me vossa bondade natural e acredito estardes realmente infenso à culpa que acompanha os pecadores vis e pérfidos, todavia, meu filho, sabeis que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

“Até eu, Jeová Senhor dos Exércitos, estou vinculado a Leis que eu mesmo criei e decretei. Por isso, manda o Ritual de Julgamento que Eu perscrute a profundeza de vossa alma para que nela Eu possa ver a extensão do bem que praticastes e o mal que abstiveste de fazer...”

E olhando-me com o olho onividente e generoso, Ele viu que de fato eu estava enfastiado de matar peixes e minhocas e se não fosse tanto por pena dos bichos, era por um secreto zelo e asco que eu nunca confessaria possuir. Viu mais e além: viu meus pés ligeiros esmagando baratas, minhas mãos precipitando sobre moscas e mosquitos, assassinando assim no calor dos acontecimentos outros bichos menos nobres e mais asquerosos. Chutando cães sarnentos e assustando gatos vadios! Viu mais: Quando criança, eu queimava formigas com uma vela e cortava rabos de lagartixa com pedradas!

Sentindo-se ludibriado, o Criador me disse:

“- Que coisa lamentável... Por haverdes ocultado crimes tão pequenos, poupar-me-Ei e a ti também de ver os outros maiores e mais clamorosos... Vá, meu filho... Vá...

Vá para o diabo que lhe carregue!”

Estupefato, medi o próprio Deus com um olhar de soslaio. Arrebitei ainda mais o nariz, apontei o queixo para além do céu e saí do paraíso com ar de ofendido. Mas como sou bem educado (sempre concordaram que sou bem educado, fruto do trabalho incansável de minha mãe, minhas tias e irmã), obedeci incontinenti a Jeová.

Fui então ter com o diabo.

Chegando nos arraiais do capeta, do pé preto, do tinhoso, me apresentei a ele sem a educação que me caracteriza, por crer que educação é um artigo que falta no inferno:

“- Venho da parte de Deus. Ele me mandou para o senhor devido às baratas, percevejos, mosquitos, lagartixas, piolhos, pulgas e carrapatos que gloriosamente pereceram sob o peso de meu pé, punho, unhas ou qualquer arma que me valesse para dar cabo às suas vidas insignificantes. Sou um homem ruim e perverso! Fui um ás no estilingue! Quantas pombas e rolinhas, quantos pardais e juritis sentiram a precisão do meu olho e a dureza do meu punho!

Já joguei pedras em cães e assustei criancinhas! Fui pescador e menti descaradamente! Logo se vê que sou tão ruim quanto sua excelência diabral e por esse motivo, enviou-me para esse local, o Senhor Deus!

Assim, solicito aposento particular à altura das minhas malvadezas e um tratamento adequado à minha rabugisse e vileza. Aviso de antemão que detesto comida muito cozida e pouco condimentada. Por onde devo ir?”

O diabo me olhou com um desdém que doía meu orgulho e disse com ar de deboche:

- Macacos me mordam! Mais uma dessas e declaro abertamente guerra ao céu! Achas certamente que mereces gozar do meu reino somente por haver matado umas coisinhas sem propósito? Certamente sois budista. Ah... Esses budistas, sempre prontos para sentir remorsos incabíveis!... Seu lugar não é aqui. Budistas não acreditam no inferno, então vá para a China, para o Japão, para o limbo, para o céu, para o raio que o parta, mas suma da minha frente, agora.

Eu olhei o diabo com os olhos arregalados e lhe disse:

- Como ousas? Não me conheces adequadamente para falardes comigo dessa forma! Se estivéssemos na Terra eu lhe processaria por injúria, calúnia, difamação e por conta dessas criaturas horríveis que armazenas aqui, imputaria-lhe também a acusação de formação de quadrilha! Nesse ínterim o diabo se transformou na recepcionista do INSS, grosseirona que me atendeu muito mal no dia anterior! Ela ria zombeteira e eu perdí as estribeiras:

-“ Não se trata assim um contribuinte que paga em dia seus impostos e nada deve aos cofres dos homens nem aos cofres de quem quer que seja. Eu exijo, neste momento, que a senhora encontre os papéis que foram entregues nessa zona e vocês sumiram! Se não encontrar, vou chamar a polícia! Quero lavrar um Boletim de Ocorrências e fazer uma queixa crime.”

Eu estava tão irritado, que poderia matá-la à dentadas, afinal de contas havia mais de um mês que um documento meu, muito importante havia sido extraviado naquele zoológico! Não aguentava de tanto ódio e desabafei:

"- Capivaaaaaaara! A senhora é uma vaca grosseira e mal educada! Anta! Sua aaaaaanta! Que tipo de gente é esse que o governo põe pra atender a gente, meu Deus do céu! Eu já lhe disse que o protocolo foi entregue à senhora há um mês atrás! Tire esse sorriso sarcástico dessa sua cara lambida! Vou chamar a polícia!"

E antes que pedisse para que chamassem de fato a rádio-patrulha, a recepcionista se irritou e mandando-me para um local não muito adequado para eu dizer aqui, juntando ao impropério um grampeador pesadíssimo que acertou minha cabeça, na altura da orelha esquerda!

Então, estrelas maravilhosas, multifárias e multicoloridas qual um dilúvio espocaram no fundo do meu cranio como fogos de artifício!

Acordei suado. A escuridão do meu quarto me deixou um pouco ressabiado por não saber se estava na no céu, no inferno, China ou no saguão do INSS... Levantei-me com cuidado. Achei o interruptor da luz e me vi diante do espelho. Tinha a cara amarrotada e os cabelos em desalinho. Procurei vestígios da pancada fenomenal que aquela senhora mal educada havia me aplicado, oniricamente! Graças a Deus, ela não existia. Uns urros saídos das profundezas do meu estômago lembraram-me o clamor das almas albergadas nos domínios do local de onde eu fora por último, banido e chamaram para a dureza do cotidiano, fazendo-me ir na cozinha, dizendo para mim mesmo:

"- Ai, que fome! Onde, onde estarão guardadas as benditas latas de sardinha que comprei agora à pouco no Carrefour?"

Não haviam sardinhas! Eu havia apenas sonhado que as tinha comprado! Comi um pão seco, murcho e com uns lindos pontinhos verdes esparramados nas pontas, cujo gosto lembraram-me champignons em conserva!

Devorei com avidez e novamente fui dormir, completamente esquecido dos trágicos eventos ocorridos minutos antes, no céu, no inferno e no INSS.

Quando voltei pra cama, esconjurei:

“-Com Deus me deito, com Deus me levanto! Com a graça de Deus e do Divino Espirito Santo! Amém!”

Marcos Aurelio Paiva
Enviado por Marcos Aurelio Paiva em 31/12/2008
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