A canção de Laura - Parte I

1 Parte I

1.

Aconteceu em uma noite deliciosamente quente de verão, eu estava saciado, era minha primeira noite na cidade e os bordéis mostraram fartura de bons vinhos e belas damas de carne macia e sangue adocicado, decidi apenas caminhar pelas ruas e aproveitar a noite e explorar um pouco a cidade. Saí do não muito movimentado centro para me aventurar pelas ruelas sossegadas e praticamente desertas de um charmoso bairro chamado Roseiral quando a brisa trouxe as primeiras notas de um piano, de inicio um pouco tímidas, um breve aquecimento ou uma brincadeira para, em seguida, mostrar destreza e sensibilidade. Deixei-me embriagar pela suave melodia e encantado fui ao seu encontro.

Foi quando ela começou a cantar, minha pele arrepiou-se e naquele instante o mundo reduziu-se a aquela voz, era perfeitamente equilibrada e cristalina, de uma suavidade quase etérea, eu precisava vê-la, certificar-me que era real e lá estava ela, sentada em frente ao piano perto da janela aberta, os olhos fechados e o rosto sereno, totalmente entregue à melodia, como se esta fosse um amante que a tomasse em seus braços se a envolvesse com doçura e a elevasse ao êxtase ao mesmo tempo. Era maravilhoso, em toda minha existência jamais pensei que algo tão belo e perfeito pudesse sair de um ser humano, mas lá estava ela e dela, uma massa de carne humana, fraca e mortal.

Apenas quando o silêncio voltou a reinar por alguns instantes pude observar melhor a criatura em frente ao piano e para meu maior espanto, era uma criança, aparentemente em seus doze anos e além da genialidade musical, era dotada de estonteante beleza, se não se movesse eu a tomaria por uma boneca de porcelana habilmente moldada, a tez branca e aveludada de faces rosadas, lábios pequenos levemente avermelhados, grandes olhos azuis e o rostinho arredondando emoldurado pelas madeixas douradas que lhe caíam em suaves ondas pelos ombros. Angelical, simplesmente... Angelical!

Oh, como eu quis tê-la em meus braços e a embalar com belas palavras, velar seu sono tranqüilo; Oh como quisera mantê-la eternamente banhada pelo frescor da juventude, como um botão de rosa que em seus primeiros sinais de florescer é banhado em resina e assim permanece para sempre. Que loucos e idílicos delírios alimentei enquanto ela distraidamente dedilhava o piano. Quando ela finalmente deixou a sala eu pude sair das sombras que me escondiam, fiquei ainda alguns minutos parado em frente à casa da pequena beldade, talvez para recuperar-me, talvez para me certificar que não estava sonhando.

Regressei a meu apartamento pouco antes do sol nascer e após longas horas revirando de um lado a outro constatei que não conseguia dormir, deitado em meu quarto escuro eu ouvia a cidade despertar, os primeiros carros, os primeiros passos na rua deserta, depois a algazarra das crianças a caminho da escola, às vezes me esqueço dessa mistura desconexa de vozes e ruídos, a balbúrdia cotidiana que envolve as cidades numa dissonante sinfonia. É a noite que me atrai, as madrugadas silentes e as canções de ninar sussurradas na penumbra, é a noite que mantém viva a chama escarlate que brilha em meus olhos e me faz ansiar pelo momento em que o sol se vai, dia após dia eu espero a noite chegar, quantas vezes não me sentei, como faço agora, num canto qualquer a espera da reconfortante escuridão.

Michelle Angel
Enviado por Michelle Angel em 13/02/2009
Código do texto: T1437443
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