Um Mimo Americano

Para Tia Celita

I - Um dia de chuva

Caminhava solitária, mesmo que em suas profundezas ecoasse a voz de um sonho. Sentou-se numa pedra próxima. Fechou os olhos. O som do mar distante trazia as ondas que poderiam carregá-la dentro de seu próprio infinito.

Manhã clara. Sol ardente. Os reflexos nas janelas e na terra queimada. Celita desce a rua lentamente e contempla mais um amanhecer. O comércio abre as portas. Celita ainda esperava a sua.

- Aquela terra... Ah, que distância nos separa... - uma voz percorreu a rua.

Mulher de sorriso no rosto. Corpo esguio. Parou, contemplou o local e entrou numa casa simples, onde repousava uma senhora com um terço na mão.

- Sente-se, Celita. Conheço essa face. Objetivo trilhado, mesmo que este esteja longe – a senhora falou.

- Às vezes me parece tão...- Celita foi interrompida.

- Não comece perdendo a batalha. Acredite, mesmo que... - a mulher deixou lentamente a voz apagar-se.

Celita sorriu e olhou para o sol que nascia pela janela, através das árvores, onde ela, pensou, deveria estar.

- O ônibus para cidade parte em algumas horas. Tome a sua decisão e contigo leve minha benção – disse a mulher, tocando levemente a face de Celita.

- Eu tomarei – e um abraço finalizou sua resposta.

Celita deixou a casa, cruzando um jardim que se despedia da luz do sol. Atravessou o pequeno bar, encravado na esquina e os olhos mareados contemplaram, mais uma vez, a rua.

Raramente chovia ali, mas naquele fim de tarde a água escorria por canaletas em pequenos estalos. Um ônibus verde, quase sem cor, descia pela rua. Estacionou travando suas rodas. Celita subiu e sentou na janela. Assistiu sua vida passar ali perto. Chorou baixo. Não restavam forças.

Lua solitária no céu negro. Celita contempla o horizonte escuro clarear aos poucos e a terra ser tomada por uma doce penumbra. Ouviu as ondas dançantes e admirou os coqueiros, que já eram outros. Coqueiros que remetiam às histórias doces. Refúgios da memória.

A cidade cresce em praças arborizadas e hotéis, com pátios e seus chafarizes. Um mundo novo nascia ali sob seus olhos de menina. Uma Maceió que Celita reaprendia a amar, mas que em algumas horas permaneceria no horizonte distante: baú de lembranças.

Quando deixou o ônibus pela última vez, uma tarde sonolenta caía aos pés do Corcovado, banhando a alma. Celita deparou-se com um pequeno albergue. Passou pela pequena varanda, onde duas senhoras observavam as crianças brincarem sob a luz de um lampião. Cena que Celita procura ainda hoje. Busca agonizante. Uma tarde que se perdeu na história. Celita entrou na sala e pediu um quarto.

- Pretende morar aqui?

- Não por muito tempo – Celita respondeu. – Ainda irei além – concluiu.

II – Cristais

Acendeu a vela e deitou-se na cama. Aquele sonho permanecia vivo, mesmo que distante. Adormeceu com os sonhos.

Era cedo quando aquela jovem de cabelos longos e face de traços suaves deixou a velha casa. Andou pelo centro, com papéis voando e carros exibindo o charme da época. Celita entrou numa loja, onde se procurava empregos. Trabalharia já na próxima semana.

Trazia consigo um tesouro: o amor pela leitura. Celita lia sob o balcão naquelas tardes frias enquanto folhas voavam ao redor das árvores. Logo, recomeçou a estudar e a realizar, com sucesso, diversas provas, que a levaram, anos depois, a concluir o colegial.

Tardes longas, detrás do velho balcão, assistindo a vida da metrópole morrer com o breu. Um cliente entrou na loja e logo achou o que desejava. Um copo de cristal que brilhava, mesmo com a luz fraca do local. Colocou a peça no balcão e pediu que a embrulhasse. Celita pegou o cristal e trouxe ao ar, tentando ler o preço. Subitamente, seus dedos escorregaram pelo vidro, deixando-o cair.

- Meu Deus! - resmungou o dono do estabelecimento, andando vagarosamente saindo pela cortina branca.

-Talvez... Posso...

- Desculpe meu senhor – pausou e observou Celita varrendo o chão.

– E esse povo ainda sonha com a América! – completou.

O cristal foi pago, mesmo que custasse pouco. Celita não esqueceria aquelas palavras. Lembrou-se de sua avó. Lembrou-se de seu sonho que parecia dividir-se ali, naqueles pedaços de vidro. Chovia.

Celita dormiu ainda refletindo cada pequena palavra. Questões surgiram. Celita não deixou a loja e continuou seus estudos. No dia seguinte, sorriu pontualmente ao encontrar o patrão que lia seu jornal.

No entanto, um sentimento a invadia aos poucos junto à saudade. Viajante do destino. Uma esperança que ainda lutava com e contra forças extremas. Uma vela acesa na ventania. Estudos que são chamas e que levaram aquela humilde jovem, milhas à frente.

Celita formou-se dentista, após alguns anos de dedicação intensa. Trabalhou como assistente e logo conquistou seu espaço. Entre céu e mar, num pequeno consultório em meio ao charme de Copacabana. O sonho apagou-se, consumido por anos difíceis. Um espaço vago em seu peito. Cristais que se partiam em seu coração.

Celita entrou no cinema, protegendo-se da forte chuva. Um homem a cumprimentou e ofereceu uma jaqueta.

- Por favor, não recuse. – falou ele.

Entraram juntos na sala. Celita devolveu a jaqueta após a sessão e assistiu aquele homem sumir em meio à penumbra.

III – Caminhos

Raramente havia um encontro entre os colegas de faculdade como aquele, numa tarde doce de verão. Um clube refinado, repleto de piscinas e coqueiros. Ruas estreitas cercadas de muros.

O homem estava lá, sentado num banco de madeira, admirando o movimento. Celita percebeu e já se afastava. Refletiu. Voltou e sentou ao seu lado. Estar ali, naquele mesmo dia, no mesmo local tinha outro sentido.

- Aloísio, prazer.

-Celita, mas que coincidência... - falou assustada.

- Destino. – Aloísio completou. Celita sorriu.

Tarde de palavras e gargalhadas. Aloíso revelou sua natureza, sempre carregando uma piada, diferentemente do homem sério que em uma palavra declarou-se. Força do destino que nos move, mesmo que tenhamos que esculpi-la em alguns momentos.

Um beijo e outro adeus. Momentos que marcam. Celita deixou o local escuro, já iluminado pela lua. A brisa noturna acariciava seu rosto. Olhou para trás e sorriu. Aloísio contemplava o céu, como se pudesse escrever ali aquela data.

Encontraram diversas vezes, propositais ou não. O namoro durou alguns meses e se casaram numa tarde nublada, mas iluminada pelo amor. Aloísio conhecia aquele sonho, apesar de Celita esforçar-se para ocultá-lo em seu peito.

Por muitas vezes, pensou estar pecando. Uma casa, saúde e amor. Esforços que se uniam, comemorando cada conquista. Celita tinha medo de querer algo mais. Um medo que nasceu em um cristal partido.

- Homem, vou entrar nesse curso! – Celita encorajou-se.

- Mas...

-Tenho que tentar – Celita falou enquanto Aloísio sorria em concordância.

O tempo passou rapidamente enquanto Celita cursava inglês, sempre ao anoitecer.

Ela entrou naquela casa rosa como fez tantas vezes. Cruzou a garagem e entrou na sala. O ar mudou. Alegria e saudade.

- Que benção ter essa chance de morar nos Estados Unidos – vovó falou.

Celita sentiu algo no peito, mas pouco conseguiu refletir sobre aquelas palavras.

-Concorda Celita?

-Ah! Claro – Celita respondeu mesmo que não soubesse ao certo o quê.

Celita já estava há alguns anos no curso e vislumbrou ali a oportunidade de sua vida. Rapidamente, assistiu sua história como um filme, sonhando com as linhas a serem escritas.

Celita e Aloísio sempre foram os parentes distantes que almoçavam conosco em raros domingos, incluindo o Natal.

Era tarde quando Celita ligou. Jantávamos em nossa nova casa, nos Estados Unidos.

- Celita?

- Estou indo em julho, com a Dalila – falou.

Celita ainda não tinha o visto necessário. Já se tornava uma época díficil para esse processo.

- Eu vou!

IV- "It is not mole não"

Longos meses passaram-se e aos poucos Celita mostrava novamente a mesma determinação que naquela tarde chuvosa transformou sua vida.

O verão americano surpreende aquele início de junho. O visto atrasou alguns dias. Relampejava naquela tarde. O telefone tocou.

- Cristina – houve uma pausa. Outro relâmpago. – O visto está comigo. Estou a caminho!

Celita seguiu para o aeroporto em plena madrugada. Embarcou horas depois. Dormiu após certa resistência. Fechou os olhos na certeza de um novo amanhecer. Acordar em um sonho, numa manhã de luz.

Pude observá-la quando deixou a escada. Contemplei seu sorriso sonhador e seu olhar delicado. Um objetivo trilhado a cada renascer do sol e brilhar da lua. Uma história que não acabava ali, mas ganha um novo capítulo. Uma nova página.

Celita dormiu tarde naquela primeira noite. Ainda pude ouvir sussurros em seu quarto, junto ao ruído das entradas de ar. Não entendi o que dizia, mas sim o que sentia ao ver seu sorriso no dia seguinte.

- Estou em sonho ainda! – disse ela sorrindo durante o café da manhã.

Celita fez suas compras e viveu aquilo pelo qual batalhou durante toda sua vida. Não sonhava com a Disney e sua fantasia. Sonhava com um país de igualdade e respeito. Um sonho tantas vezes afastado pelo destino.

Os dias passaram e Celita retornou ao Brasil no mês seguinte. Rumamos para o aeroporto enquanto Celita relembrava cada momento. Uma tia que se torna amiga.

-Vocês realizaram um...- Celita deixou a voz morrer num abraço, enquanto lágrimas tomavam sua face.

Celita recuperou-se, olhou para os lados e viu um último carro passar pela janela antes do embarque. Sorrriu olhando o nada.

- Eu voltarei! – Celita falou.

Naquele momento pude ter uma certeza, mesmo conhecendo as nuances do destino intimamente, sabendo que o tempo não é uma preocupação: ela voltará.

Pescador de Olhares
Enviado por Pescador de Olhares em 17/10/2009
Reeditado em 17/10/2009
Código do texto: T1872517
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.