O DESEJO DE SARITA

Ela estava grávida de quase nove meses e de um mês para cá, passou a sentir uma enorme vontade de comer um leitão à pururuca.

Estava tão animada que até pediu a Lourenço, seu marido, que convidasse uns parentes lá da capital para partilhar sua alegria e o leitão é claro. Porém, ele de cara rejeitou a ideia. Convidar novamente aquela gente metida, não lhe passava mais pela cabeça. Preferia convidar gente dali mesmo. O caso até virou uma pequena discussão...

O casal já tinha um filho de quatro anos e vivia numa casa simples num sítio. Não eram ricos como aqueles, mas viviam muito bem. Junto com Lourenço, também davam duro lá na roça, (Alvaiade) que se chamava Honório e (Cipó) que se chamava Damião, seus empregados, homens afeitos a qualquer tipo de trabalho.

Dona Berê também era do tipo faz-tudo. Cozinhava, lavava, passava, limpava...Se lhe dessem corda, também falava mais que um bando de maritacas. Além de prendada era também a única parteira do lugar e se gabava por ter ajudado a trazer ao mundo um sem número de crianças. Isso era verdade, como também era verdade que nas horas vagas adorava uma branquinha curtida no cambuci, mas nunca exagerou... A não ser uma vez quando foi ao rancho do senhor Arnaldo. Lá chegando notou sobre a mesa um garrafão e estava cheio. Seus olhos então ficaram deste tamanho! Pela origem disse que era da boa! Não demorou entornou boca adentro a forte bebida. Foi numa golada só. Depois veio aquela reação como se a garganta estivesse pegando fogo. Deu uma pequena pausa, respirou fundo, bateu o copázio na mesa e pediu outra! Depois estatelou-se no chão.

Não foi com muito custo que Lourenço conseguiu demover da cabeça de Sarita aquela ideia de convidar os bacanas lá da capital e tudo ficou em paz.

Então naquele sábado, o atencioso marido rumou logo cedo para a casa de Euclides para buscar a leitoa encomendada. Na boleia da charrete ia também Sabugo, um mestiço perdigueiro que adorava passear sobre rodas. Turuna e Catito, os outros dois cães, ficaram guardando o sítio. Enquanto isso lá na cozinha, dona Berê matraqueava ao mesmo tempo que preparava a farofa para o recheio. Uma farofa de farinha de milho amarela com bastante miúdos, cheiro-verde e manteiga.

— A senhora devia ficá discansando, o barrigão tá grande. — Argumentou a velha à Sarita que com dificuldades tentava alimentar o fogão a lenha. Subitamente sem nada dizer e com a saia amarrada em uma das pernas a velhota saiu num passo e voltou n’outro trazendo um bom feixe de lenha seca. Aproveitou e acendeu também o forno.

— Pronto, agora num apaga mais. — Disse.

Quase duas horas depois ouviu-se um patear estridente de cavalo misturado aos latidos de cães. Era a charrete trazendo o desejo de Sarita. A leitoa sem a barrigada, limpa, como combinado.

— Que bunito leitão!— Exclamou dona Berê.

— É uma leitoa...— Respondeu Lourenço.

— Que diferença faiz homi?

— De verdade? Nenhuma. — Retrucou ele sorrindo.

Sem mais conversa socaram-no toda aquela farofa de farinha de milho. Deu umas duas bateladas. Costuraram-lhe o couro e o colocaram numa espécie de tabuleiro. Depois untaram o bicho com manteiga de tal maneira que mais parecia uma sessão de maquiagem. O forno já estava quase no ponto. Mas algo deu errado.

— Num vai dá gente! num vai dá!— Berrou dona Berê balançando a cabeça.

— Aff! Não mesmo. — Disse alguém.

A carcaça de fato era grande para aquele forno. Fora bem criado, teve boa engorda, ali não caberia. Alguém até sugeriu que cortassem em pedaços mas Sarita logo reprovou a ideia, afinal, o seu desejo era uma leitoa inteira com farofa dentro e com uma maçã na boca, igual naqueles filmes de reis....

“Então, o que fazer?” A ideia veio como um raio. E foi de dona Berê. E levaram-no para assar na padaria do senhor Antão, lá os fornos tinham capacidades maiores.

E lá se foi mais uma vez a charrete carregando o desejo de Sarita. Pra variar, Sabugo foi o primeiro a tomar assento. Quinze minutos após chegaram ao local.

— Isso vai levar com fogo alto, umas três horas. Disse seu Antão enquanto secava o suor da testa com as mãos enfarinhadas.

— Tudo isso?

— É um animal grande, pois!

—Tá bem!

— Me pagas quando eu entregar, e olha que não estou a te cobrar o frete!

— Combinado! — Disse Lourenço sorrindo.

E foram as horas mais demoradas e aguardadas... Mas o senhor Antão era pontual, apesar de careiro. No momento exato os cães ficaram ouriçados. Alguém chegava. Descendo um pequeno morro, lá vinha o fordeco do padeiro dando tiros pelo escapamento. Enfim, o desejo realizado.

Os cães eram bastante receptivos e antes de o carro parar, correram os três velozmente ao encontro de quem chegava.

—Venha cá Sabugo, você também Turuna, sai daí Catito...— Acudia Lourenço espavorido.

Em vão foram os gritos. Os animais assediavam aquele estranho cortejo que vagarosamente adentrava a casa pela cozinha. O cheiro estava maravilhoso, porém, algo de mal parecia iminente. E aconteceu.

Quando a preciosa iguaria ia sendo colocado sobre a mesa, os cães engalfinharam-se por qualquer razão enroscando-se nas pernas de Antão e do seu ajudante.

E foi um tal de “Ai Jesus”, “minha Nossa”....

A carcaça espatifada no chão era um convite e os caninos não perderam tempo. Abocanharam o assado como se fossem chacais famintos e o arrastaram de modo prudente, pois ainda estava quente, até o fundo do quintal sob os olhares atônitos de todos. Foi um tremendo fiasco o que se viu.

Sarita quase teve o parto antecipado, mas no final reagiu bem. Porém, diante daquela cena, um asco enorme a dominou.

— Carne de porco? Nunca mais! — Disse Sarita se retirando dali às carreiras.

Enquanto Sabugo, Turuna e Catito se fartavam com o fortuito banquete, na cozinha, no meio daquela mixórdia entrou quem faltava. Dona Berê. Aí a água esquentou. Com uma guimba de cigarro que ia e vinha de um canto a outro da boca, igual a um goleiro na hora do penalt, a danada senhora com um olhar finório foi logo perguntando:

— Fugiu?

— Acabou de fugir.— Respondeu Lourenço com ares de irreverência.

— Intão num tava bem assado não sinhô.

—Tava sim!— Respondeu lá de fora seu Antão meio furibundo.

—Será que tava portuga?— Insistiu a velha senhora.

— Olha que estava sim, pois, pois!— Respondeu tentando manter a calma.

Ao final de tudo, o português cascudo acabou aceitando a zombaria de dona Berê. Meneando a cabeça e alisando o espesso bigode cinzento, deu as costas e saiu.

Enquanto lá nos fundos do quintal os cães empanturrados dormiam, no quarto, Sarita, com uma forte náusea era amparada pelos chás caseiros da velha senhora:

— Toma! esse é uma milagrura!— Insistiu.

Já era noite, e o silencio finalmente se fez. Nem latidos estridentes, gritos quase intermináveis e o matraquear de dona Berê. Sarita agradeceu por mais uma noite e pelo silêncio e tentou dormir, já passava da meia noite.

Às dez da manhã seguinte, Sarita sentiu as primeiras dores do parto, e como não podia deixar de ser, dona Berê foi chamada às pressas. Não demorou uma hora e ouviu-se então um vagido persistente. Dona Berê ergueu o recém-nascido depois de romper-lhe o cordão umbilical e disse em alto e bom som:

— Gordinho que nem um bacurim....

Conto de José Alberto Lopes.

SBC-15/10/2009 – corrigida em 25/11/2012017/2018