UM FANTASMA NO CABIDE

Era uma cidade pequena e de uma atmosfera tranquila, lá vivia Lindolfo Fontes Paranhos. Beirava trinta e poucos anos de idade. Trabalhava numa estatal, e como fazia todas as tardes depois do expediente, marcava ponto com os amigos, no boteco do seu Jaime. Aquela era uma sexta-feira muito especial, pois era o dia de pagamento.

Lá, entre torresmos e porções de tremoços, eles já haviam secado algumas garrafas de cerveja e um litro de cachaça. Vale aqui dizer, que as goladas de cachaça vinham sempre antes da cerveja. Era mais que um ritual, diziam que era pra matar o bicho.

Lindolfo morava num alojamento para solteiros. Era um espaço de mais ou menos quatro por cinco construído em madeira ordinária. Uma velha cama patente, uma mesa, um fogãozinho jacaré e um cabide de pernas era o que constituía os móveis e coisas do modesto ambiente.

No balcão, era hábito oferecer ao santo, o primeiro gole da branquinha. Só nunca me disseram que santo era esse. E eram tantas as oferendas etílicas que no cantinho uma pequena poça destilada já se formava. Conversavam sobre futebol, mulheres e bebidas. Um ciclo vicioso entre os já beberrões, e os que se iniciavam na “nobre arte de beber”. Lá pelas tantas, quando deu por si, Lindolfo viu o adiantado da hora. Precisava ir embora, chegar em casa, tomar um banho e depois queimar a lata. Embora beliscasse uns tremoços aqui, e uns torresmos ali, ainda estava carente de uma boa janta. Por isso antes de sair, pediu ao seu Jaime que lhe cortasse um generoso naco de linguiça defumada e também lhe pesasse um quilo de farinha de mandioca, da grossa exigiu.

No caso da linguiça, era somente puxá-la com um pau comprido, pois elas estavam penduradas no teto. Mas no caso da farinha, era preciso antes, pedir licença aos gatos que preguiçosamente dormiam enrodilhados sobre as sacarias. Tomou a popular saideira e lá se foi para o seu amável lar. Para abrir a porta do barraco, era preciso muita paciência. Aquela velha chave grande e gasta, e a não menos velha e gasta fechadura, viviam em constantes rusgas... Pronto! A surrada porta já quase sem pintura e rachada pelo sol, rangia até ficar totalmente escancarada. Uma pedra a mantinha aberta enquanto ele preparava o jantar. Preferia primeiro deixar a comida pronta para em seguida tomar banho. Assim o fez.

Depois do asseio, sentou-se à mesa para digerir a gororoba, cujo cardápio era a soma de um pouco de arroz e feijão de ontem, mais a farinha e umas rodelas de linguiça. Baratas bem criadas já iniciavam o turno da noite. Três aqui, duas acolá, outra ensaiando um voo. .. Depois da pança bem forrada e alguns blatídeos esmagados, a velha garrafa térmica ainda lhe ofereceu um resto de café zurrapa. Acomodou-se então na borda da cama e pegou a matutar, dando longas puxadas no seu recém aceso cigarro, aquele de sete síbalas; continental sem filtro preferia sem filtro. Depois fechou e trancou a porta.

A noite estava calorenta, era assim já no mês de novembro e ele até pensou em abrir a única janela existente que dava para a parte de trás do seu barraco para que entrasse uma brisa, mas se deparou com dois sérios problemas. Um, eram os implacáveis pernilongos que atacavam em nuvens, e o outro, era o mau odor que vinha do terreiro, fruto dos penicos que eram esvaziados através das janelas por alguns vizinhos.

A solução foi a mais sensata, a janela fechada, e fechada permaneceu. Dentro daquele quarto cheirando a mofo e tabaco, o rapaz suava feito cuscuz. Apanhou uma velha revista e dela improvisou um abanador.

Assim como os outros solteirões que ali moravam, ele também parecia estar bem distante de seus familiares. Por isso, para atenuar a saudade, lia e relia frequentemente as cartas recebidas, tudo isso, com a anuência da solidão que dividia com ele o pequeno quarto.

O dia seguinte por ser sábado, dia de folga, resolveu ira até Santos para fazer umas comprinhas, e para isso teria também que dormir mais cedo pra pegar o trem das oito. Antes de fazê-lo, apanhou algumas roupas que estavam sobre a guarda da cama. Uma calça, uma camisa e um longo guarda-pó e de forma desordenada atirou peça por peça no seu guarda-roupa, ou seja, sobre o cabide de pernas que ficava no no canto do quarto e por cima de tudo jogou seu chapéu. Esticou-se na cama e percebeu que o sono demorava pra vir. Era um contumaz leitor do gênero literário, suspense e terror. "Talvez se lesse um livro" pensou. E pegou um desses livros de papel ordinário que costumava comprar em bancas de jornal, e passou a folheá-lo, detendo-se aqui, acolá... O sono então começou a dominá-lo. Sem mover -se demasiado, e em meio de uma gambiarra de fios procurou a pera que lhe acenderia um arremedo de abajur que ficava no chão junto à cama e em seguida apagou o bico principal de luz. A fraca luminosidade do abajur pouco clareava, no muito se esforçava. De repente, faltou luz. Só alguns postes da rua se mantinham acesos. Tateando no escuro, conseguiu acender uma vela. Dentro de um prato próximo da cama, a vela com sua chama agonizante, projetava principalmente nas paredes longas sombras indecifráveis. E entre elas uma era descomunal e estava no canto parecendo saltar do cabide. Os olhos de Lindolfo colados de sono, de repente saltaram esbugalhados. Ele viu bem a sua frente, uma figura aterradora. Um enorme espectro de um ser magro e alto que tinha um nariz aquilino e o queixo proeminente e trajava o que parecia um longo sobretudo e um chapéu largo. Apontava-lhe um fino e longo dedo, que tremulante, parecia julgá-lo e condená-lo. Lindolfo não teve dúvidas, aquilo não era um sonho, era real. O espectro viera para conduzi-lo ao desterro umbroso, ou apenas para dar-lhe um ultimato?

O fato de ele levar uma vida pouco regrada pesou-lhe a consciência... Trapaceava no jogo, não era um bom exemplo de empregado, já enganara várias mulheres com falsas promessas... Então diante do quadro que se apresentava, Lindolfo com voz trêmula apelou para o céus. “Meu Deus, valei-me, amanhã mesmo mudo de vida!”Fez o sinal da cruz e aproveitando enquanto tinha forças para correr, atirou o travesseiro na direção do vulto, e lá veio como que lhe dando o revide, o pesado cabide sobre ele, como abraçá-lo e sufocá-lo. Lindolfo, num instinto de sobrevivência conseguiu rapidamente se livrar da grotesca criatura e soltou um grito (um grito mudo) como aqueles que se dá quando se tem um pesadelo, mas que nunca ouvimos, e saiu tresloucadamente em direção a porta. A chave grande e gasta lá estava, girou-a duas vezes para a esquerda, por sorte abriu de primeira, e ganhou os becos escuro, aí sim, gritando desesperadamente com toda a força de seus bofes:

- Socorro, há um fantasma no meu cabide!

Correndo pelos labirintos formados pelos cubículos, ele nunca fora tão rápido em sua vida. Logo chegou a uma esquina iluminada. Trôpego, parou e examinou o fundo escuro de onde acabara de sair, e vendo que nada de anormal havia, retornou.

A luz agora já havia voltado. Caiu na realidade. A sua imaginação fértil o colocara numa situação ridícula. Seguiu ainda mais rápido para casa, o mais rápido que pôde para não despertar a curiosidade daquela gente, na maioria seus colegas de trabalho. Chegou, entrou com cuidado, acendeu a luz principal, apagou a vela, e ainda esquadrinhou os quatro cantos, levantou e recolocou o cabide em seu devido lugar e disse aliviado entre suspiros:

- Ufa, Que maçada! Vou parar e ler Allan Poe!

Um conto de José Alberto Lopes®