“SE ME CHAMASSE RAIMUNDO”...

Ainda vejo tua face invisível nas águas escuras e profundas. Minha mãe e outras mulheres da redondeza iam lavar roupa nas pedras do velho rio. Os meninos da minha idade e eu adorávamos aqueles dias. Enquanto nossas mães lavavam as roupas, nós lavávamos a alma nas águas escuras do rio, engolíamos piaba para ficarmos fortes. Lembro-me ainda com certo frio na barriga do perigo que era saltarmos daquela ponte quase em ruínas, das aventuras dentro da mata em busca de passarinho.

Costumávamos subir rio acima pelas margens. Numa dessas caminhadas afastei-me dos outros meninos e passei para a terceira margem do rio. Foi de lá que eu o vi pela primeira vez, estava no meio do rio, de pé sobre as águas e não afundava, era um homem já velho de baixa estatura, usava um chapéu de massa preto e redondo, ele olhava em minha direção fixamente como se notasse que eu o observava. Trocamos olhares e silêncios por alguns minutos seguidos, até que eu quebrei o encanto, movido menos pelo susto do que pela surpresa. Gritei os meninos que estavam do outro lado do rio, com desespero e alegria. “Venham! Venham ver!” Era como se tivesse encontrado um tesouro enterrado num campo distante e precisasse de ajuda para retirá-lo da terra. Queria mostrar aos meus amigos aquela figura enigmática que, indiferente aos meus gritos, continuava ali, tesa, a me olhar.

Os meninos chegaram perto de mim; “ali, ali, estão vendo aquele homem me olhando?” Indaguei-lhes, apontando com o indicador na direção do velho. “Homem? Que homem? Você está ficando é louco, aquilo é um touco”. Respondeu-me um dos garotos juntando-se aos demais nos risos e zombarias direcionados a mim. Entretanto, o homem permanecia a me olhar, agora como a revelar compaixão a meu respeito. Depois de algum tempo retornei ao lugar onde minha mãe lavava roupa, não quis comentar o episódio com ela, já me bastava ser chamado de louco pelos colegas. No fim daquela tarde voltamos para casa, nós, o sol e o céu azul de nuvens mansas.

Nunca mais seria o mesmo depois daquele banho no rio, o rio jamais o mesmo seria, só aquele desconhecido seria sempre o mesmo dentro da minha cabeça.

Outras vezes regressei ao rio, meu olhar já ia direto na direção que aparecera o homem estranho, mas ele já não estava mais lá.

A vida corria normal no povoado, como o rio corre pro mar. Todavia, eu sabia que o rio faz curvas...

***

Nossa casa, na beira da estrada, foi o oásis mais óbvio para um viajante sedento que passava. “Moça, tenho sede”, disse a minha mãe o homem de baixa estatura, já velho e que usava chapéu de massa preto e redondo. Tinha voz claudicante, minha mãe lhe deu água, ele bebeu, sentou-se um pouco debaixo da árvore no meio do terreiro e após certo tempo seguiu sua estrada, sem dizer palavra. Minha mãe me disse que se tratava de algum doido. Os doidos sempre passavam na estrada e pediam comida ou água.

Outras vezes o homem passaria no povoado, silencioso como raiz de mato, jamais qualquer morador dali ouvira “um bom dia” ou “uma boa tarde” sua. Tanto silêncio, contribuiu para espalhar nas redondezas sua fama de doido. Muitos pais já não deixavam suas crianças brincando no terreiro, outros, quando queriam ameaçar os filhos ou puni-los por alguma desobediência, bradavam: “Vou lhe entregar a Raimundinho!”. As crianças se pelavam de medo...

Raimundinho, eis o nome que os moradores do lugar deram ao velho moribundo, no diminutivo, creio que por causa do seu tamanho miúdo.

Ninguém sabia o verdadeiro nome de Raimundinho, acredito que não tivesse nome nenhum, ninguém sabia onde ele morava, de onde viera, para onde iria.

Raimundinho era feito vento de redemoinho; assim imprevisível, cheio de perigo e mistério.

Eu, porém, sabia desde sempre a morada de Raimundo, todos queriam descobrir seu esconderijo, saber mais sobre ele, havia mesmo quem o seguisse, no entanto era inútil, pois ele em dado momento desaparecia repentinamente, feito água do mar que evapora sem que a gente se dê conta.

Gosto de chamá-lo de Raimundo e não de Raimundinho como os meus conterrâneos, faz-me recordar aqueles famosos versos que eu viria aprender anos mais tarde na escola: “Se me chamasse Raimundo seria rima e não solução, Raimundo vasto Raimundo mais vasto é o meu coração”. Ainda bem que Raimundo não lia poemas, nunca saberia disso. Nem eu lhe diria, não, porque ele não ouvia quando a gente usava palavras, só ouvia com olhares e silêncios. Por isso escolhera morar no rio, longe das gentes, perto dos matos, dos bichos que não diziam palavras, só havia um tipo de barulho que gostava de ouvir: o barulho das águas do rio, das águas escuras e profundas como sua alma.

Volta e meia Raimundo saia do seu lugar misterioso e passava no povoado para ir à cidade, não se sabe até hoje a que propósito.

O alvoroço crescia a cada dia entre grandes e pequenos, quando Raimundinho apontava na estrada, portas e janelas iam-se fechando em sincronia.

***

Certo dia uma lavadeira desceu ao rio a fim de pegar a roupa que deixara secando na cerca de arame, qual não foi sua surpresa e desespero ao deparar-se com o corpo de uma menina – sua filha – boiando sobre as águas escuras do rio. A perícia logo descartou a hipótese de afogamento e concluiu que a criança teria sido estuprada, assassinada e posteriormente lançada ao rio para sugerir afogamento, e assim despistar as investigações.

O caso chocou o povoado, até ali de vida monótona e pacata. As famílias, em pânico, já não permitiam nenhuma criança pôr o pé na rua, a não ser acompanhada de um adulto, que por sua vez só saia de casa armado.

Todas as suspeitas do crime brutal, naturalmente, recaíram sobre Raimundinho, ainda mais porque este fora visto vindo do rio pela mãe da criança na ocasião em que ela descera até ali para buscar as roupas.

Raimundinho foi preso e torturado para confessar o crime, os soldados cansaram de bater o velho infeliz, mas não havia método de tortura capaz de arrancar-lhe um simples “ai” ou mesmo um natural pedido de clemência. O silêncio de Raimundinho irritava demasiadamente os soldados, os quais a cada dia intensificavam tanto quanto possível a dose de maus-tratos. E assim, seguiram-se intermináveis anos e nada se provou contra Raimundinho nem tampouco ele pronunciou qualquer palavra em todo esse tempo de prisão.

***

“Raimundinho é solto por falta de provas”. A notícia foi recebida com grande temor pela gente do povoado. Entretanto, Raimundinho retomou sua antiga rotina como se nada lhe tivesse acontecido, passava quieto na estrada, como sempre. As crianças, agora, e também os adultos, temiam-lhe mil vezes mais do que antes. Eu, contudo, nunca tive medo dele, não me escondia quando ele passava, ao contrário, ia para o terreiro (escondido de minha mãe) com o intuito de vê-lo, ele parava diante de mim, olhava-me como daquela vez primeira que nos vimos no rio, ele não precisava pedir água, eu já sabia, e lhe dava com prazer. Ele bebia, devolvia-me o copo e continuava a me olhar como quem implora por compreensão e consolo e depois seguia seu caminho de mistério.

Descobrir sua morada para a gente do povoado não era mais uma questão de curiosidade, mas de necessidade, era preciso conhecer seu “habitat” secreto para melhor poder defender-se dele.

Eu sabia o lugar que Raimundo morava e a ninguém poderia dizer, daí porque Raimundo sempre demonstrou confiar em mim e se mostrara a mim primeiramente no rio.

***

Nunca disse a ninguém no tempo da minha infância, somente agora revelarei a morada de Raimundo, agora que ele já não está mais aqui e que eu já sou crescido, posso dizer: Raimundo morava no coração do mundo e o mundo morava no coração de Raimundo. Está dito e pronto final.

Hoje, depois de grande, tento entender melhor aquele mundo sem explicação. Às vezes penso que Raimundo era uma palavra que ficou entalada na garganta do mundo sem poder sair, outras vezes imagino que talvez ele fosse um heterônimo desconhecido daquele poeta português, um heterônimo mudo que só existiu para habitar o silêncio do poeta. Nunca soube nem saberei quem foi aquele ser enigmático, e é por esse motivo mesmo que ainda hoje o amo e me lembro do seu rosto com a mesma nitidez da primeira vez.

Raimundinho morreu com o tempo, assim como o rio de águas escuras e profundas desaparece dentro do mar infinito. Sua morte, tal qual sua vida, foi cercada de silêncio e mistério: Uns dizem que ele morreu de câncer no fígado, sofrendo solitário no meio do mato, outros, que ele foi picado por cobra venenosa, há os que afirmam que ele foi assassinado, os que sugerem que ele teria se matado nas águas escuras e profundas do rio; um poeta da região garante, em seus versos, que Raimundo não morreu, transformou-se numa bela borboleta preta que ainda hoje sobrevoa as três margens do rio colhendo o néctar de uma rosa que nasceu num lugar difícil do rio aonde gente não vai.

Diga o que quiserem sobre a morte de Raimundo, quanto a mim; guardarei debaixo de sete chaves o nosso segredo.

Gil Guimarães
Enviado por Gil Guimarães em 25/08/2010
Reeditado em 26/08/2010
Código do texto: T2459394