SAIU BRANCO Rev. 2016

Ele era um jogador. Não o atleta, isso longe de ser, mas um adepto e contumaz da jogatina. Um inveterado que abarcava todas as modalidades de jogos que o seu dinheiro permitia. Bingos, jogo do bicho, raspadinhas, loto, bilhetes etc.

Realmente gastava quase todo o seu salário tentando a sorte. Ou o azar? Chamava-se Ranulfo.

Muitas vezes até se privava de alguma coisa por causa do vício, e por isso, Etelvina sua esposa, por várias vezes o ameaçara de abandono. Mas qual nada, ela nem o abandonava e nem ele deixava o vício.

Um dia Ranulfo acordou esfuziante. Beijou Etelvina, coisa que não fazia há mais de quinze anos, e revelou a ela que naquela noite havia sonhado com um homem que lhe mostrara um número de bilhete, e que com ele ficaria muito rico.

- Mais uma das suas bobices, disse ela dando de ombros.

- Bobice? Ara! Nesse aqui eu acredito, vai ser a nossa salvação. Assim que eu encontrar o bilhete, estamos feitos. Respondeu-lhe apontando com o dedo um extenso número escrito num pedaço de papel.

E assim contrariando pela enésima vez a sua Etelvina, saiu ele à procura do seu sonho quase realidade. Era algo quase impossível, pra não dizer impossível. Afinal, encontrar um milhar cheio e vinda de um sonho, já era difícil, mais difícil ainda seria ser sorteado.

A verdade é que o “quase impossível” deixara uma possibilidade, e ela incrivelmente aconteceu. Ranulfo vasculhou por toda a região, e tanto pelejou que num golpe de sorte encontrou o bilhete. Comprou-o inteiro, eram vinte vigésimos e o prêmio era de um milhão. Na realidade, trocara o seu parco, mas precioso salário por um bilhete que valeria um milhão.

Com toda a segurança, dobrou o bilhete e o enfiou na cueca. Em casa, mais feliz do que nunca, esnobou:

- Não disse que encontrava? Olha aqui, olha! Agora é só esperar o sorteio.

- Sim, e daí? A gente espera e enquanto isso vamos comer o quê?

Por fim, Etelvina cumprira as suas ameaças. Era o fim da linha. Pegou suas tralhas e foi-se embora.

Mas tudo aquilo não afetou a Ranulfo cuja única preocupação era o bilhete. Onde guardá-lo? Receoso que pudesse sofrer qualquer rasura, perdê-lo ou até ser roubado... o homem teve uma ideia curiosa. Pregou o bilhete com dezenas de tachinhas na parte detrás da porta do quarto e lá ficou até o dia da apuração, guardando e venerando aquele papel colorido como se ele fosse uma divindade! E assim passaram-se dez dias.

Um dia após o sorteio, ele ansioso, entrou na única lotérica da cidade para conferir o seu bilhete. Folheou pra lá e pra cá aqueles informes sobre resultados lotéricos. Em dado momento os seus olhos ficaram parados, esbugalhados. Aquela numeração em negrito batia com a do seu bilhete. Só isso!

Quis gritar, sair pulando, soltar rojões, mas era muito dinheiro, não deveria alardear, era perigoso demais, manteve-se discreto o quanto pode. Pronto! finalmente o passaporte para a felicidade. A dinheirama lhe resolveria todos os problemas, tinha em mãos a bagatela de um milhão.

Já em casa,com medo de rasgar o bilhete, desparafusou a porta, colocou-a nas costas e saiu rumo à caixa econômica. Mas no caminho, resolveu entrar na igreja matriz para agradecer aos santos, anjos, beatos, etc. o milagre ocorrido.

E mal ganhava as escadarias da igreja, um que bebia num boteco ao lado apontou e disse:

- Olha lá! Aquele mão-de-vaca vai pagar alguma promessa! – É, e quem não tem uma cruz, leva uma porta! Arrematou outro, e riram desabridamente.

Mas o padre não consentiu que ele entrasse com a porta dentro da igreja, todavia permitiu que a colocasse lá nos fundos da casa paroquial.

Enquanto ajoelhado agradecia altar por altar beijando fitas e mantos, lá na casa paroquial o sacristão, alheio a qualquer coisa, deu a porta a um velho que caçava material para reciclagem.

Então Ranulfo ficou uma fera, quase teve um troço. Saiu correndo ladeira abaixo atrás do homem da carriola. Por sorte, numa esquina o avistou fuçando uma caçamba cheia de lixo.

- Hei! Essa porta é minha. Gritou.

- Sua uma ova! O sacristão me deu. Respondeu o outro enxugando o suor que lhe escorria no rosto sujo de poeira.

- Tudo bem! Tudo bem! Quanto você quer por ela?

- Quer comprar?

- Sim, Quanto quer?

- Sei não!

- Te dou vinte!

- Quarenta!

- Trinta. É tudo o que tenho!

- Fechado!

Era uma porta velha, não valia dez, mas guardava um tesouro que ainda estava lá intacto.

O velho pegou o dinheiro, enfiou no fundo do bolso e saiu com ar vitorioso, como quem no passado, tivesse vendido um bonde.

Finalmente Ranulfo chegou ao banco e um pequeno tumulto aconteceu. Insistiu por conversar com o gerente e a ele explicou tudo.

Então, o tal gerente impecavelmente trajado o acompanhou desde a entrada até o seu luxuoso escritório. Lá ofereceram ao homem da porta, um rico tapete para pisar, cafezinho com biscoitos, água fresca e ar condicionado, além do sorriso de todos.

O gerente com muita paciência conferiu e reconferiu aqueles folhetos que traziam os resultados. Finalmente deu uma resposta seca:

- Infelizmente houve um engano, esse resultado é da loteria estadual, e o seu bilhete é da federal. Não deu nem aproximação. Saiu branco!

Falando em cores, Ranulfo que era branco como uma vela, saiu foi vermelho de vergonha e raiva! E acompanhado agora, pelo guarda do banco colocou a pesada porta nas costas e saiu. Foi uma cena quixotesca.

No caminho de volta para casa passou bem em frente àquele boteco onde os mesmos ainda enchiam a cara. E foi de súbito que um gaiato gritou:

- Aí mão-de-vaca! O que aconteceu? O santo não aceitou a sua oferta? Ah!ah, ah,ah...

E mesmo ofegante, com certa dificuldade devido o peso da porta, Ranulfo ainda teve tempo de retribuir-lhes com gestos obscenos até dobrar a primeira esquina!

Um conto de José Alberto Lopes®

02/06/2010

José Alberto Lopes
Enviado por José Alberto Lopes em 19/11/2010
Reeditado em 26/01/2023
Código do texto: T2625012
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