O Ladrão de Chaves

A cidade era pequena demais. Uma história contada na pracinha corria pelas ruas estreitas, atravessava a Ponte Romana, e sem muitos rodopios caía na padaria. Tudo ali seguia um ciclo, nem sempre bem definido, que gerava histórias – e estórias – fantásticas.

Foi assim que o fantasma que morava debaixo da ponte se tornou imperador de Roma. Também dessa forma, todos se admiravam com a coleção secreta de mapas das colônias guardados na casa da Dona Lúcia, dados a ela por seu amante em Lisboa. Alguns ainda acreditavam que os mapas não eram coloniais, mas que pertenciam ao imperador romano. Ainda havia, como em tantas outras cidades pequenas, forasteiros que atravessavam a fronteira a procurar quem desse abrigo em troca de seus contos e lendas.

Os jovens da cidade passavam tardes a conversar com essas figuras peculiares, alguns velhos conhecidos, outros nem tanto. Figuras que traziam o resto da Europa àquela cidadezinha entre as montanhas que se extendiam a longínquos territórios espanhóis. Poucos daqueles forasteiros revelavam seus nomes. Era a melhor parte: o segredo os tornava cidadãos de um mundo sem fronteiras, onde eram perseguidos por cidades e reinos inteiros.

Certo verão, um senhor de bengala passou pela pequena cidade. Suas roupas velhas e sujas atestavam para a dura viagem que ele fez até aqui. Nos primeiros dias, foi confundido por um bêbado e foi largado à beira do rio, perto da ponte. Quando se identificou com o local, boatos se espalharam, a ecoar de Dona Margarida, que o imperador havia retornado para encontrar seu tesouro. Alguns dos poucos mendigos que andavam por aquelas terras passaram a vigiar o velho, na esperança de encontrar-lo, na madrugada, no momento em que descobrisse qual pedra daquela ponte guardava sua fortuna.

Os jovens se interessaram pelo caso conforme os dias passavam. Quando corriam pela ponte numa daquelas tardes, ouviram o chamado.

- Ei, ei...você, você – o senhor chamou – vocês todos.

Um momento de indecisão pairou sobre a estrutura de pedra. Alguns minutos se passaram. Olhares foram trocados. Um menino louro, o mais jovem de todos ali, se desvincilhou do braço de sua irmã e desceu pelas escadas ao encontro da figura. Aberta a porta da curiosidade, os outros seguiram.

O homem tinha um talento para reunir seu público. Esperou alguns minutos antes de falar. Ele tinha um sorriso suave que fazia par com seus olhos claros e sinceros.

- Meus meninos, venham, cheguem mais perto – ele disse e sentando-se também,

Após um longo silêncio, o homem começou sua história. Quantas vezes já a havia contado? Quantas crianças já sentaram em volta de seus pés descalços a esperar uma história como quem espera um presente de natal?

- A minha história não tem fantasmas – disse ele, mas logo se corrigiu – bem, há alguns sim, mas nao esses que voces imaginam. Eu sou francês e nasci numa pequena vila como essa. Nunca tive muito, mas sempre sonhei com grandes fortunas. Um dia, um velho sábio me disse que as chaves da minha fortuna me esperavam em terras além da Espanha. “Chaves do meu destino,” disse ele. Eu então deixei minha terra onde eu nao tinha quase nada. Cruzei aquele país e aprendi o espanhol. Também encontrei muitas pessoas de seu país e logo aprendi também o português. Não encontrei as chaves enquanto cruzava aquele país, mas minhas esperanças se renovaram quando ouvi alguns viajantes comentarem sobre essa cidade, Chaves.

Ele fez uma pausa e percebeu que o clímax de sua história teria que aparecer logo. Então, continuou.

- Fazia dois dias que eu andava na estrada que me apontaram. Havia umas poucas fazendas e umas casas muito pobres. Ao fim do segundo dia, encontrei um homem que seguia na mesma direcao. Ao me aproximar, o homem virou-se e disse algo que eu nao compreendi. Seus olhos escuros me miravam. Vestia trapos e era mais velho que eu. Assim passaram-se alguns momentos: ele a me examinar, perplexo. Arrisquei a primeira palavra. Logo descobri que ele falava casteliano, uma lingua que eu sabia muito pouco.

- Procuramos abrigo numa casa abandonada. Já era primavera, mas as noites ainda eram geladas e longas. Ele me contou de reinos longínquos, lugares fantásticos. Seu sonho era alcançar o mar. Ora, o mar, o homem queria o mar. Ele dizia que as minhas chaves também estavam lá. Nao há nada no mar, eu lhe disse. Ele se irritou profundamente e virou-se a dormir. No dia seguinte, ainda muito cedo, o homem partiu sem deixar nome ou sobrenome. Sob minha cabeca, ele havia escrito na terra: nos vemos no mar. Naquele dia, a estrada se dividiu e pouco havia para decidir. Temendo as montanhas, segui pela estrada da esquerda, que se abria em um grande campo. Foi nesse campo que uns forasteiros me roubaram o pouco que tinha. Foi ali também que encontrei uma macieirra. Nunca gostei de maçãs. As maçãs da minha terra tinham um gosto ácido que queimavam a minha língua atrevida. Embaixo da árvore havia esse mapa aqui. Penso que o homem queria que eu o seguisse. Algumas cidades a frente, descobri que o homem havia saqueado quase todo o comércio e matado duas mulheres. – o homem virou-se e alcançou um pedaço de papel no chao.

Já era tarde e as maes e madrinhas corriam pela ponte a procurar pelas crianças. Como um bando de passarinhos, o grupo se disperçou.

- A gente pode ajudar a procurar as chaves? – perguntou uma menina.

O homem sorriu apenas. O nome dela foi logo chamado e os olhares dos dois se cruzaram mais uma vez.

Na manhã seguinte, o homem havia desaparecido. Da ponte, ele levou uma pedra que estava solta havia anos. As crianças lamentaram a perda do contador de histórias. Ah, se ele tivesse mais uns minutos. Ah, se as mães e madrinhas pudessem ter esperado... Mas o homem já tinha ido, roubando um tijolo, um pedaço de pão, e as chaves.

A senhora a minha frente agora dorme com aquele feitiço, talvez a desvendar o mistério da pedra sumida há sessenta anos, enquanto a noite nos envolve e as primeiras luzes se acendem.

Era um ladrão de chaves que roubou o fim da história.

Pescador de Olhares
Enviado por Pescador de Olhares em 04/07/2011
Reeditado em 08/07/2011
Código do texto: T3074543
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