O VIOLINISTA
Por Carlos Sena


 
Daniel era violinista da Orquestra Sinfônica do Recife, nos anos setenta. A chamada revolução de 31 de março ainda estava em pleno ranço de perseguição e mortes, embora de forma discreta, dissimulada. Contudo, a gente sabia que atrocidades e perseguições ainda eram frequentes. Os militares sabiam que não podiam “dar mole” como se diz na gíria. Como musico importante, Daniel passou um bom período sem executar alguma peça importante, pois Recife, como todos sabem, foi um foco da Revolução dos mais importantes, por conta do Governador Miguel Arraes. As manifestações artísticas locais, também por isto, ficaram sufocadas, em especial a musica instrumental que dependia de verba pública para se manter de pé.
Contudo, esse “jejum” não tirou de Daniel a vontade de fazer carreira como violinista do seu estado de Pernambuco. Ele já era consagrado na região, mas decidira que talvez uma carreira internacional não fosse impossível pra ele conseguir. Sua carreira internacional foi motivada por conta dos aspectos políticos sérios que tornavam as artes no geral, e a musica no particular, algo muito difícil de decolar. Por conta disto, Daniel começou se comunicar com outras orquestras do mundo, inclusive a Filarmônica de Cuba. Fez contato com alguns músicos de Paris e ainda manteve correspondência com outro de pouco renome na Áustria.
Daniel era dessas pessoas que, sem maldade, nem envolvimentos políticos além da sua “politica de arte”, nunca se preocupara com o teor de suas correspondências internacionais. Pensava ele que, em sendo música, os patrulhadores milicos não iam investigar suas cartas, suas partituras, etc. Engano. Tudo de Daniel era aberto e lido, mas liberado sem maiores problemas. Mas, certo dia entrou um censor novato, no lugar de um coronel idoso que teria se aposentado. Esse neófito de dedo duro, logo se encarregou de despertar nos demais uma dúvida que não havia de fato, mas que, a partir dali, passou a existir na mente doentia daqueles militares despreparados. A primeira carta que esse coronel recente identificou para sua saga, foi um pedido de Daniel para que umas peças suas fossem arranjadas. Reuniu seus subordinados e foi logo dizendo: “nesse angu tem caroço”. Vocês estão liberando as cartas desse tal Daniel, mas eu vejo códigos secretos, principalmente sendo Cuba um dos destinatários da sua preferência. A partir de hoje eu quero que me localizem o endereço desse tal de Daniel. Quem são seus pais, o que fazem e se tem ou tiveram no passado alguém ligada ao partido comunista. Toda a equipe ficou perplexa com essa ordem, mas militar é um pouco do “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, embora nem sempre quem manda seja quem pode e nem sempre quem obedece tem o juízo no lugar. Estaria, a partir daí, decretado o inferno desse músico espetacular.
Belo dia ele sentiu-se seguido até sua residência em de Casa Forte – bairro nobre do Recife – reduto de Gilberto Freire e da maioria das autoridades do poder “revolucionário” de então. Alguns telefonemas estranhos foram dados pra sua casa, cheios de perguntas evasivas e tudo mais. Certo dia a empregada da casa, astuta e atenta, escutou um voz ao fundo do telefonema: era alguém dando ordem unida num quartel! A empregada, preocupada, logo falou para seus patrões. Mas até então, isso não significava muito, pois aquela família, embora morando num bairro cheio de autoridades do poder revolucionário, não tinham nenhum envolvimento com Miguel Arraes, nem com o partido comunista.
Certa tarde, quando Daniel saiu do Conservatório de música (ele estava terminando seus estudos) foi abordado por uma pessoa com óculos escuros, uma echarpe no pescoço e fumando um charuto enorme. Essa pessoa, estranhamente, lhe perguntara onde era que no Recife os jovens mais se reuniam para conversar sobre música. No bojo da conversa perguntou também se era universitário e em que Universidade trabalhava e ainda, se tinha amizade com alguém ligado a Dom Helder Camara. Daniel se manteve em silêncio e, aproveitando que o sinal estava aberto, atravessou e deixou o sujeito lá o observando  estranhamente.
Chegando em casa, a empregada foi logo dizendo a ele a história do telefonema e do que ela ouvira no “pano de fundo da ligação”. Esse foi o ponto em que Daniel, de fato, desconfiou que estivessem lhe “espiando”. Só que ele não entendia o porquê, pois tudo que fazia na vida era estudar música e cursar a faculdade de Biologia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Reuniu a família e contou as suas desconfianças e nessa conversa a empregada contou também o que ouvira, além da abordagem daquele homem esquisito no trajeto do Conservatório. A família era pequena. Pai, Mae, Daniel e uma irmã que fazia residência medica em Cuba, por conta de um convênio da Universidade Federal na área de medicina tropical e de família. O Pai era auditor aposentado e a mãe era pianista e tocava em casamentos importantes da sociedade pernambucana – talvez a grande inspiradora de Daniel no mundo da música. Após a reunião, a família ficou deveras preocupada, pois as notícias não paravam acerca de alguém saiu de casa e não mais voltou,  outros que apareciam mortos em simulação de assalto, etc., mas que se sabiam que eram obra da repressão militar que continuava com seus “porões cheios” sob diversos tipos e modalidades de torturas.
Com Daniel não foi diferente. A gota d’água para sequestrarem ele foi a descoberta de que um dia ele fez um solo de violino numa igreja comandada por Dom Helder que, embora não pudesse falar (estava proibido disto pelo regime) essa paróquia era dirigida por um padre tido e havido como assessor do Dom que, mais tarde veio a falecer tragicamente nos arredores da cidade Universitária no Recife. Certa noite, ao sair da aula do curso de Biologia, nos arredores do Bairro de Dois Irmãos, foi rendido por pessoas encapuzadas que o levaram, sabe Deus pra onde. Mas, os milicos não contavam que não há crime perfeito. Daniel havia confidenciado a um colega de faculdade o que vinha sofrendo de ameaças e esse colega, chegou a avistar o momento exato em que ele fora preso. Não teve dúvidas, discretamente, seguiu com seu fusca o carro em que Daniel foi colocado qual bode embarcado. Deram várias voltas, inclusive na Praça da Casa Forte, depois subiram pelo alto José do Pinho, beco do Quiabo, alto da Foice e outras bibocas lá do Bairro de Casa Amarela. Mas, Pedro – esse era o nome do amigo de Daniel, não se fez de rogado. Com sua “fubiquinha” conseguiu ver o trajeto que fizeram com seu amigo e, finalmente, o carro dos militares, placa fria e sem distintivo algum da corporação, entrou no quartel do Derby pela porta lateral.  O destino de Daniel estaria ali sacramentado, pensou Pedro. Sairá com vida? Devo avisar aos seus pais? E sua irmã que está em Cuba será que se vier ao Brasil não será presa? E eu, continuou Pedro, sabendo disto tudo e dizendo a família não irei correr riscos de também me darem “sumiço”?
Nessa noite, Pedro não pregou o olho. Um cochilo sequer ele deu. Ficou com aquele segredo só pra ele, pois imaginava que se contasse pra alguém esse alguém contaria para outrem e a merda viraria mais boné do que já tinha virado. A família de Daniel, dois dias depois, foi a casa de Pedro. Nessa época o telefone era o convencional, o como costumo dizer, celulite. Mas a mãe de Daniel não se conformou em ligar para Pedro. Ela imaginava que ele soubesse de alguma coisa e, assim, perder tempo pra quê. Chamou o marido e foram à casa de Pedro. Ele não estava, mas as famílias se conheciam e ficaram por ali papeando até que, inesperadamente, Pedro chega. Cheio de olheiras, a mãe de Daniel foi logo dizendo: “já sei que estavas com Daniel em noitadas por aí”. Não, senhora, respondeu Pedro. Por falar em Daniel, por onde ele anda que já faz dois dias que na faculdade não aparece? Eu já estava querendo mesmo ir a sua casa pra saber dele, concluiu Pedro. – Você não sabe de Daniel? Afinal, você é seu melhor amigo e não sabe dele! Meu Deus, meu Deus, por onde anda meu filho? O esposo, como sempre: calma, mulher, calma. Afinal o Daniel já não é mais uma criança, ele deve estar por aí com as raparigas. Nessa idade, sabe como é, passou um rabo de saia, os jovens vão atrás. Eu já fiz muito isto! Todos se entreolharam num silencio sepulcral. Estava, certamente, rondando nas cabeças todas que ali estavam que Daniel poderia ter sido sequestrado pelo Regime.  – Vamos pra casa, disse a mãe. Eu quero saber onde anda meu filho! Meu filho, ouviram! O marido, silencioso e cordato: “vamos, querida, vamos. Vai dar tudo certo”...
Após um mês, a família quase em desespero, eis que foi colocada uma carta datilografada e anônima, na porta da casa dos pais de Daniel. Nela alguém confirmara o que já se esperava, pois o ritual de confinamento era sempre o mesmo quando os militares agiam. A linguagem utilizada foi discreta e sem maiores detalhes. Diante das ameaças que todos sabiam que Daniel vinha sofrendo, inclusive o telefonema que a empregada interceptou, além das conversas de Daniel acerca do homem que o seguira, foram o complemento para o fechamento dessas Gestalt tão triste. O que encafifava a todos era o fato de Daniel não ter ramificação ideológica. Sua musica era sua vida costumava dizer aos amigos. Certo dia um desses amigos teriam lhe dito: “cuidado senão vão te chamar de viado, pois tu só te interessas por esse violino”. Mas ele, cabeça boa, não se incomodava com isto, até porque no mundo das artes essas insinuações são mais frequentes do que se imagina.
O tempo foi passando e a família de Daniel foi se virando, pois a vida sempre continua. Sabe-se Deus como, mas passa. Deixa marca e desenganos. Para a mãe era como se sua vida não existisse mais, mesmo sabendo que a outra filha estava bem, embora em Cuba que tantas confusões causavam no Brasil por conta do seu regime político. Viver sem o filho era inconcebível para aquela família tão resumida. Mas, como o tempo a tudo acomoda, aos trancos e barrancos a família teve que administrar a vida e, devagarzinho, ir buscar alternativas de localizar o filho lá pelas redondezas dos porões dos quartéis da cidade.
Dois anos se passaram. Daniel sofreu tudo que um ser humano pode sofrer encarcerado num regime militar. Pau de arara, “bituca” de cigarros apagadas em seu corpo, noites de frio numa área descoberta e com chuva, colchão molhado com agua gelada, pão dormido com água do esgoto, ferro quente em seus olhos e até, pasmem, ameaças de cortar sua mão principal – aquela mão direita que ele solava as mais lindas melodias ao violino. Certa noite, quando o capataz colocou ferro em brasa juntinho dos seus olhos de Daniel, ele pediu para ser morto, pois ouvira dizer que depois daquele castigo outro ainda pior viria. Faltando pouca coisa para que Daniel perdesse a visão, algo milagreiro parecia acontecer: uma voz ecoou meio que abafada dizendo que ele não era pra morrer. Por que não? Um guarda replicou. Afinal, quem é você pra me dar essa ordem? A voz prosseguir em defesa de Daniel: vocês dizem que ele está preso porque recebia mensagens comunistas, mas eu sou músico e quero lhes dizer que esses “garranchos” são partituras musicais  com arranjos novos que as orquestras internacionais mandavam pra ele. Essa “voz” que salvou Daniel da morte era de um soldado que, coincidentemente, era músico e, sem coincidência, houvera estudado musica no mesmo conservatório em Recife.
Independente desse soldado ter garantido o que todos já sabiam, a tentativa de decepar a mão direita de Daniel surtiu tanto efeito que até o Comandante do Quartel queria marcar uma data para ele mesmo, ver a atrocidade sendo praticada. O que jamais se imaginou foi que o Coronel mantivesse algum caso extraconjugal. Mas mantinha e de forma pouquíssima ortodoxa. O coronel tinha um “romance” secreto com um soldado dono da “voz” que, podemos dizer, salvara Daniel. Jovem e imponente, não bastando ser o “preferido” do comandante, ainda era portador de “dotes avantajados” que deixavam a mulherada em polvorosa por onde passava. Achando pouco, ainda se dava ao luxo de ser exímio músico. Foi numa tarde, adentrando o porão onde as torturas eram praticadas, que o soldado soltou sua “em surdina” a sua voz em defesa de Daniel. Consciente do poder que tinha sobre o Comandante (afinal era seu caso secreto) exigiu dele que não machucasse mais aquele jovem, aquelas acusações acerca das partituras eram fantasiosas e improcedentes. Na qualidade Soldado, de músico e de “amante” (o soldado usou sua melhor prerrogativa) garantia que aqueles “rabiscos” não significavam códigos secretos que pudessem comprometer a soberania nacional. As partituras eram universais com peças de Mozart, de Strauss, Handel e Villa Lobos e outros de quem Daniel era fiel seguidor. O Comandante do quartel ficou literalmente de calças curtas, uma vez que já concordara com os torturadores em “apagar” o Daniel, inclusive porque sua irmã médica, lá de Cuba, mantinha com o irmão todo tipo de conexão. Mas isto não era verdade porque Daniel, desde preso, nunca teve oportunidades, sequer, de saber se seus familiares estavam vivos.
O soldado sentiu que o seu “comandante” se sentiu  refém de si. Algo como: “se eu não atender meu namorado” eu posso ser “desmascarado” diante da tropa e de minha família. Afinal, pensou o Comandante, “esse soldado não tem nada a perder”, pois tem toda a vida pela frente pra ser construída, eu não. Cobrado pelo Soldado acerca de soltar Daniel, o Comandante o chamou para um acordo: vou deportá-lo, em avião oficial, para um país distante. Lá, ele tem que se comprometer em não falar nada até que a vida tome outro rumo, sob pena de seus familiares sofrerem em seu lugar, principalmente sua irmã que já retornou de Cuba. A essa altura, Daniel já estava sendo torturado apenas psicologicamente. Os castigos físicos pararam e, certo dia, ele até pediu um violino para ver se ainda sabia tocar alguma canção. O soldado amigo não se fez de rogado. Pegou um violino velho, com cara de desafinado e levou pra ele. Foi uma festa dentro de um inferno. Foi um grito de liberdade dentro da prisão. Foi um brinde a vida em plena solidão. Daniel chegou a chorar quando sentiu que, embora desafinado, conseguiu tocar Ave Maria de Schubert. O comandante, a duras penas, dissuadiu os torturadores alegando que a prisão de Daniel se transformara num problema politico internacional. Com isto ele deu aos seus subordinados o total atestado de burrice, pois aquele preso jamais, como simples músico provocaria isso. Daniel, apadrinhado pelo Soldado, foi “extraditado” para Gana – país da África. Lá, jogado entre tantos miseráveis era como se fosse um “lixo” humano jogando no meio de tantos outros.
Lentamente, Daniel foi retomado sua vida como podia e diante das condições postas. Logo se envolveu com grupos de musica e, mais que se pudesse esperar, já estava dando aulas para a meninada carente do local. Através de contatos, pois Daniel falava o idioma Inglês e Espanhol, foi criando novos amigos em outros países. Seu sonho era, de fato, compor uma orquestra em Cuba – Ele ouvia muito a Românticos de Cuba nos seus tempos de estudo no Brasil. Inesperadamente, ele recebeu uma passagem para conhecer Havana. Foi amor à primeira vista, mas a lembrança da sua irmã lhe perturbara a mente. Não demorou muito ele teve notícia de que ela havia se formado e já estava no Brasil trabalhando como médica num hospital do governo. Mais tranquilo com a notícia alvissareira da irmã, ele, finalmente, foi convidado para reger a Orquestra Municipal de Havana. Os jornais locais divulgaram o grande evento e até jornais brasileiros cuidaram disso também. O Diário de Pernambuco deu destaque de primeira página, mas poucos se lembravam de Daniel. Afinal, já havia passado dez anos e a memória da maioria dos seus amigos já não estava mais tão boa.
No dia do grande encontro em homenagem a Revolução Cubana, o Maestro Daniel Di Core foi ovacionado pela multidão. Determinado momento, ele calou a todos quando, magistralmente, “Vassourinhas” – o grande hino do carnaval pernambucano foi tocado. Era a peça de encerramento dele naquele seu triunfal início de maestro profissional de uma Orquestra de nível Internacional.
No camarim, cansado, ainda com os olhos cheios de lágrimas, as autoridades cubanas foram lá homenageá-lo. Quando todos se vão, rodeado apenas dos seus auxiliares mais próximos, eis que alguém por trás lhe tampa os olhos: “Quem é, perguntou”. Adivinhe! Alguém respondeu. Ele apalpou as mãos, acariciou, apertou de leve e, não demorou muito: “mamãe”! – Era de fato sua mãe – beirando os noventa anos, acompanhada do seu pai numa cadeira de rodas e da sua irmã, solteirona que foi quem segurou a onda do irmão “sumido” pelo regime militar de 64 no Recife.