Asas de Sangue

(Eliane Verica)

 
 
Recém casados, diziam as letras brancas pintadas no vidro do carro, pela porta entreaberta curiosos espiavam a cena da tragédia. Sobre uma poça de sangue jazia o corpo do noivo, uma cratera na sua cabeça revelava a arma do crime. Um martelo ensanguentado ao lado do cadáver. A parede branca manchada por pequenos pontos vermelhos, desenhando um céu noturno, um longo caminho de estrelas em direção ao infinito... Um buraco negro no centro da via láctea.

- Eu só queria voltar a ver as borboletas coloridas em revoada sobre a terra lodosa nas tardes quentes.
...
A mulher de baixa estatura, cabelos negros e finos caídos sobre os ombros, trajada com um vestido de noiva manchado com o sangue vermelho escuro da vitima, fitava a câmera no canto da sala, contava quantas vezes a luzinha vermelha piscava e vagava em seus pensamentos.

- Então, foi isso que aconteceu? – a policial buscava por respostas... A mulher, por perguntas. Continuou em seu silêncio infinito procurando as razões para tanta coisa estar acontecendo em sua vida.

A policial retirou algumas fotos do crime da pasta amarela sobre a mesa e espalhou sobre a mesa branca.
- Você fez isso?

A mulher desviou os olhos grandes e escuros da câmera e parou sobre as fotos, sem nenhuma reação aparente apenas sinalizou que sim com a cabeça, encarou a sua interrogadora imperiosamente,

- Você quer saber por quê?

- É para isso que estou aqui.

- Mas é uma longa história.

Preparou o gravador sobre a mesa.

- Pode começar.


- Era na primavera, eu acho – sua voz calma era livre de qualquer tipo de sentimentos – no rio perto de onde eu morava, centenas de borboletas faziam uma revoada sobre as flores nativas, voavam de um lado para o outro, pareciam brilhar no sol, coloridas fazendo do dia uma tela dessas que a gente compra pra pendurar na parede. Eu tinha só 12 anos. Meus pais não eram pais para mim, não tinham nenhum afeto. Nada. Mais tarde descobri o motivo de tanta frieza, mas naquele tempo eu apenas queria dançar com as borboletas no lago.

- Morávamos em uma cidade muito pequena, as casas eram distante umas das outras, quilômetros de distancia, víamos nossos vizinhos apenas nas rezas. E foi em uma que eu encontrei com meu destino cruel. Ele tinha mais ou menos a minha idade, mas era maior, cabelos castanhos escuros, sardas no rosto e grandes olhos amarelos. Aproximou-se lentamente e me entregou um embrulho, dentre uma caixa de madeira, e dentro uma borboleta presa por pequenas agulhas, com as asas abertas e sem o corpo.

- Seus grandes olhos brilhantes me diziam que era a coisa mais linda do mundo, que eu iria gostar. Porém os meus viram morte e dor, a maior das crueldades, aquela que priva a beleza de existir e ser livre... E a confina para seu próprio prazer... Sufoca e mata para que seus olhos possam se deitar sobre a beleza morta e inerte.

 - Não pude fazer nada além de encará-lo com um misto de espanto e nojo e rejeitar o presente.

- Como uma criança quando vê uma comida que não gosta em seu prato, olhar de repúdio... Ele tinha me observado, sabia que eu gostava de borboletas, mas minha inocência infantil não me permitiu perceber isso.

- Como se a vida fosse uma eterna brincadeira, corria com os afazeres da casa, e eram muitos, para ver as borboletas no entardecer, era o que fazia meu dia valer à pena, mas nesse dia algo a mais me aguardava.

- O sol já estava quase na linha do horizonte quando eles apareceram, grandes olhos amarelos e outros dois, um moreno do cabelo queimado e o outro quase loiro de um olho furado, tinham o semblante assustador.

- Sabia quem eram? Seus nomes? – o rosto da interrogadora era duro como pedra, como exigia sua profissão.

- Não.  Tinha visto o caolho algumas vezes, mas o outro, nunca. Tentei fugir, mas me seguiram, me cercaram, e o moreno me perguntou se eu me achava melhor que o amigo dele para rejeitá-lo, eu estava com tanto medo que não consegui dizer uma palavra, então ele me bateu, me deu um soco no rosto. Eu caí, então me deu muitos chutes no estomago, até eu ficar sem ar, então... O caolho segurou meus braços enquanto o outro rasgava minha roupa... Ele... Ele segurou minhas pernas e trocou olhares com o amigo... De olhos amarelos, ele veio... Acho que a senhora já sabe o que aconteceu?

- Ele a violentou.

A tensão transpareceu em seu rosto como uma sombra pousando em sua face. Apenas sinalizou que sim com a cabeça.

- Você prestou queixa da violência?

A sombra permaneceu. Porém um sorriso de sarcasmo aparecia no canto de sua boca.

- A senhora não pode imaginar o que houve depois. Vejo em filmes, que as vitimas de estupro desmaiam pela dor, pelo trauma, mas não perdi os sentidos em nenhum segundo, e acho que era o que eu mais queria. Eu era virgem... Praticamente me arrastei até a casa chorando. Minha “mãe” me perguntou, me pressionou, mas apenas me banhei e fui me deitar. Quando meu pai chegou bem tarde da noite, me acordou na pancada. Contei a ele...

- E ele chamou a policia?

- Não. Me chamou de vagabunda, disse que sendo filha de quem eu era só podia ser uma prostituta mesmo, e me trancou no porão da casa. Era um lugar escuro e muito sujo, sempre soube que existia, e que se fizesse algo errado seria trancada lá. Lembrava dele quando era muito pequena, tinha relação com a minha mãe de verdade. Permaneci lá por, mais ou menos, uma semana, sendo tratada como bicho, comida e água empurrados por um buraco.

- Quando saí, a luz do sol pareceu uma nova esperança, continuei minha vida apesar de tudo, fui proibida de voltar ao rio.

- Mas nunca esqueci as borboletas... Era pra onde me refugiava quando os problemas me afrontavam... E eram muitos.

- Eles voltaram.

- A violentaram novamente?

- Não... Mas meu pai os contratou pra trabalharem nas nossas terras. Ele sabia. Mesmo assim contratou os três, me obrigando a conviver com eles, fazer-lhes favores deixar que me desrespeitassem, me tocassem...

- Seu pai a violentou?

- Não. Nunca, sempre dizia que tinha nojo de mim, mas tarde soube que era por causa de minha mãe, mas naquela época não fazia ideia. Ela amava outro homem... Ele a manteve presa no porão por anos depois que eu nasci. Acho que sou filha desse homem que ela amava. Até que ela morreu.

- Enfim, fugi daquela casa aos 16 anos, consegui restabelecer minha vida, mas as lembranças nunca me abandonaram, foram anos tomando remédios de todos os tipos, tentativas falhas de amenizar uma dor que estava alojada em minha alma você sabe como é?

- Sei... Os olhos da policial ficaram turvos enquanto ela tentava segurar a emoção.

- Há alguns anos conheci esse rapaz... Ele era perfeito. Achei que finalmente não estaria mais sozinha nesse mundo, namoramos por um tempo e decidimos nos juntar em matrimonio... Eu estava apaixonada... Não sei como não pude reconhecer aqueles malditos olhos amarelos.

- Era o garoto que a violentou quando criança?

- Sim. Ele me perseguiu, eu acho. Armou um cenário para me atrair. Não sei. Mas quando entramos na casa... As paredes repletas de quadros de borboletas espetadas... Ele só podia ser um psicopata – a moça interrompeu o relato num choro compulsivo...

-Não era eu! Minha raiva foi tanta, senti que tudo voltaria a ser como antes... Não podia permitir... Eu estava me defendendo... A senhora entende?

- Olha, não sei se você sabe, mas eu tenho uma clinica psicológica para mulheres que foram abusadas.

- Sei, vi sua foto no jornal... Foi por causa do que houve com você. Por isso exigi que me interrogasse.

A policial mudou o olhar, suas mãos estavam úmidas, punhos cerrados... Depois de uma longa pausa continuou:

- Parece ruim agora, mas tudo vai ficar bem.

A moça baixou a cabeça e chorou... Chorava e soluçava com o rosto sobre os braços. Ergueu os olhos molhados:

- Sabe, é muito difícil passar pelo que eu passei... Só a lembrança me sufoca... Como se não pudesse respirar – baixou os olhos e começou a puxar o ar com força.

A policial desligou o gravador e sugeriu que saíssem para tomar um ar.

Do lado de fora tudo parecia inebriado pela luz do sol, o dia estava pálido e bem quente, o corpo da moça foi invadido por uma forte náusea e seu mundo rodou... Ela caiu sobre os joelhos e o choro voltou, entre soluços transparecia seu desespero:

- Não sei como fui fazer uma coisa dessas... Não sei mesmo... Mas imagina a senhora no meu lugar... Todas aquelas borboletas na parede... Eu... Eu não consegui me controlar e todas as lembranças me voltaram na cabeça. Consegui reconhecer seus olhos... Malditos olhos amarelos.

A policial se abaixou, comovida com a situação, colocou as mãos nas costas da moça, o vestido branco esparramado na grama verde:

- Olha, acho que você precisa de um tempo, vou ter que verificar os dados que me passou. Precisa ir para casa trocar essa roupa e pensar um pouco. Amanha bem cedo você volta aqui. Ta bem?

A moça olhou para o chão, mediu as palavras:
- Isso não é contra os procedimentos?

- Vou buscar um copo d’água, você fica bem aqui – piscou um olho e entrou pela porta da delegacia.

Um sorriso vazou pelo canto da boca da noiva ensanguentada.
...

Em frente ao computador, a policial permanecia atônita... As provas iam contra os fatos.  Não havia fazenda, e o cadáver...  Um rapaz qualquer com uma coleção de borboletas.

Em outro canto do mundo, agora com os cabelos curtos e vermelhos, a moça organizava sobre a estante de mogno brilhante, diversos objetos colecionáveis, seus troféus. Entre as moedas de bronze e os selos antigos posicionou cuidadosamente a borboleta de sangue na moldura. Com os pés descalços na madeira do piso rústico dirigiu-se ao notebook sobre a cama, várias fotos de um senhor robusto de barba longa com sua grande paixão, uma coleção de discos de vinil. Estava na hora de inventar uma boa história.

 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 29/04/2014
Reeditado em 26/05/2014
Código do texto: T4788122
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