A Geada Rev. 2016

Apanhou a velha bengala de cabo de osso e seu cachimbo. Solicitou seis dos seus funcionários e rumaram para o campo a fim de contabilizar os possíveis estragos causados pela geada. Saíram emplumados de agasalhos, mesmo assim, batendo o queixo e os cambitos.

Nem aquelas pedras de anil que as lavadeiras usavam para alvejar as roupas, eram tão azuis quanto o céu daquela manhã. A temperatura estava muito baixa, coisa de trincar os ossos. O ar parecia parado.

O pasto era uma vastidão branca. Assim como os telhados, o capô do velho Ford e os moirões da cerca. Até a superfície dum bebedouro parecia coberto por um grande vidro baço. Pandora com certeza, não poupara nem um pouco quando abriram-lhe a caixa.

Seu Manoel Felício tinha muito orgulho da fazenda Esperança. Fora formada aos poucos e a custa de muitas dificuldades e trabalho. Ia de um morro ao outro e fugia à vista a sua extensão. Mesmo assim o velho fazendeiro carregava uma ponta de decepção quanto aos seus dois filhos. Nenhum deles se inclinou a ajudá-lo na lida daquelas terras. Eram formados em outras atividades e preferiram trabalhar em empreendimentos próprios. Todavia, agora era de se notar que o fazendeiro procurava influenciar o neto Pedrinho que passava férias na fazenda. Pelo menos, curiosidade o menino demonstrava ter, e andava pra cima e pra baixo enrabichado às calças do avô.

— Caiu uma geada daquelas, não é vovô?— Perguntou o menino esfregando as mãos.

— Meu filho! veja bem, teria caído se fosse neve! Geada não cai do céu. É a temperatura muito baixa que acaba congelando toda a umidade da superfície.— Corrigiu o velho homem explicando com muita paciência e naturalidade, tendo total atenção do menino.

Parecendo chaminés que caminhavam continuaram até chegar num ponto alto donde era possível avistar um mar de cafés alinhados impecavelmente e estáticos como guerreiros de terracota. Desceram para uma inspeção mais detalhada.

Após longo e exaustivo exame, exclamou aliviado o velho fazendeiro.

— Graças a Deus! Desta vez a geada foi nossa camarada. Um ou outro pé queimado e só, pouca coisa mesmo!— Sorriu. E continuou. — Sabe! Além de matar, a geada é capaz de causar falências e grandes prejuízos até à economia dum país, mas acho que os credores, aqueles que sugam a não poder mais, são os piores... Desta vez nos safamos, mas, enquanto durar o inverno, corremos perigo... — Completou, apertando o fumo no seu velho cachimbo!

De fato caro leitor, muitos credores inescrupulosos querem somente a garoupa em suas mãos. Vivem na verdade da especulação, nada produzem. Ou paga-se a exorbitância dos juros, ou perde-se as terras. É assim que funciona! É possível que alguns deles nem saibam o que é geada ou seca no campo, ou mesmo uma enxada, ou coisa do gênero. E o café que tomam, acho, pensam que já nasce moído e torrado. Veja se pode isso?

Voltaram para casa, agora, pisando o gelo derretido que aos poucos revelava o estrago no capinzal. O verde viçoso do dia anterior, estava tisnado, como se um fogo invisível passasse por ali. Chegaram e já era de tarde.

Finalmente podiam tomar o café e de forma menos preocupante, havia muito tempo para isso. O resto do dia, descansar e prosear, como gostava de fazer.

Então ele resolveu contar ao neto uma história, a origem daquela fazenda e do cafezal.

— Éramos jovens, e isso faz muito tempo, bem antes que um outro tipo de geada tomasse em definitivo os meus cabelos. —Sorriu meneando a cabeça e continuou. — Isso aqui era apenas um sítio. Mas quero falar da geada propriamente dita, a mais forte na região até hoje, a mais devastadora.! Nosso pai cultivava um modesto cafezal. Perto disso aqui, era uma moita de café, mas dava gosto ver as floradas e as cerejas maduras de cafés que adornavam a paisagem. Até que ela chegou e cobriu quase tudo. Essas paragens mais pareciam aqueles cartões de natal lá da Europa. Não sobrou nada!

— Nada vovô?

— Quase nada! Pensamos em destruir tudo, queimando ou arrancando pela raiz. Mas, chateados e com dívidas até o pescoço, abandonamos aquela área. Todavia, passados quase três anos, resolvemos caminhar por lá. Ai aconteceu. Os olhos de meu pai encheram-se de luz, pois pelas mãos restauradoras da natureza, o que restara do cafezal condenado e abandonado por nós, havia não só resistido como estava nevado, sim, nevado, mas de flores, muitas flores. Até mesmo o capim que normalmente cresce rapidamente nos carreiros, parecia ter respeitado aquela ação da natureza, não cresceu quase nada. "Um milagre" gritou meu pai erguendo as mãos para o céu. Confiante disso, resolvemos então completar as falhas que haviam e também ampliar a plantação a partir dali. O resultado é o que você acabou de ver, e o nome da fazenda veio desse acontecimento. "Esperança"

— Puxa vovô! Que história linda, dá até um livro!

— Você escreve? Que tal "A geada" como título?— Sugeriu sorrindo."

Pois bem! Na fazenda a prosa se arrastara por toda a tarde e chegou a noite. Isso ajudou ao fazendeiro esquecer por algumas horas o problema que martelava em sua cabeça.

A venda daquela safra, já estimada, daria um respiro, quitaria as dívidas com alguns credores e ainda lhe proporcionaria um bom lucro. Mas, tudo isso dependia da natureza. Mesmo aquecer o ar com fogueiras espalhadas por todo o cafezal, não valia a pena.

O céu daquela noite estava ironicamente belo. Arqueado sobre as planícies, mostrava-se totalmente limpo, só empoeirado de estrelas e adornado por uma sorridente lua cheia que prateava até onde a vista conseguisse alcançar. Céu limpo e a temperatura baixando gradativamente, pintava um quadro não promissor, e muito preocupante para o fazendeiro, quanto a formação de geada.

Manoel deitou-se mas não conseguia dormir. A sua preocupação vencera o cansaço.

— Durma meu velho. Seja o que Deus quiser!...— Disse a esposa quase sussurrando e apagando a luz principal. O homem respondeu com um breve muxoxo e virou-se de lado.

Enquanto isso pela janela do quarto de hóspede, o menino Pedrinho, deslumbrado e despreocupado, contemplava a vastidão daquele céu, a magia da natureza, coisa que jamais presenciara na cidade.

Conto de José Alberto Lopes

junho de 2014 verificado em 30/12/2023