Reminiscências

Reminiscências

A minha história é por essência uma história de horror. Uma união de sensações suprimidas, guardadas. O nome real de minha família prefiro guardar em segredo. Não há em todo país um castelo mais agraciado de glórias do que o velho e melancólico solar de meus avós.

Deste tempo imemorial, minha família era chamada de visionária. De fato, em muitos pormenores notáveis, no tipo de nossa mansão familiar, nas pinturas do salão, nas tapeçarias dos aposentos, nas cinzeladuras das colunas da sala de armas; porém, e especialmente na galeria dos quadros antigos, na fisionomia da biblioteca e, enfim, na natureza muito particular do conteúdo dessa biblioteca, há de sobejo com o que justificar esta denominação.

Todas as minhas recordações estão ligadas intimamente àquela sala, aqueles intermináveis volumes dos quais gostaria de poupar minhas lembranças. Mas elas fazem parte de mim e do que represento hoje. Minha mãe morrera ali, foi ali que eu nasci entre as paredes, entre aquele mosaico radioso de livros e ensinamentos ocultos. Será que vivi antes? Se é que a alma não tem uma existência anterior. Não procuro convencer ninguém.

Na minha memória há uma reminiscência de formas aéreas, de olhos intelectuais e expressivos, de vozes harmônicas e melancólicas; uma reminiscência que não quer me deixar; uma espécie de lembrança semelhante a uma sombra vaga, variável, indefinida, vacilante. Sombra essencial eu admito! Da qual não poderei separar-me jamais e enquanto meu cérebro fulgir da razão.

E foi ali mesmo que eu nasci. Emergi das trevas, que pareciam ser, mas que não eram, o nada, para cair subitamente num país maravilhoso, num palácio fantástico, nos estranhos domínios dos pensamentos e da erudição, da magia, do ocultismo. Não é de se admirar meu olhar ardente e os tantos outros olhos que em torno de mim habitam.

Minha infância fora debruçada em livros, me impregnando de música, e de todo conhecimento que eu pudesse reter em mim, minha juventude fora banhada pelos meus devaneios; mas o que é singular, mesmo os anos, tendo caminhado, e o vigor da vida tendo-me encontrado ainda no solar de meus antepassados, o que é estranho, é a inércia que paralisou as coisas mais vitais em minha vida: fazendo brotar em mim a mudança de caráter dos meus pensamentos mais ordinários.

Sou a filha única, desta família de ocultistas. Tudo que aprendi fora com meus pais e meus avós. Há muito tempo atrás, tinha a fronte erguida e muito rosada. Os cabelos negros como o ébano, que sobre caem em minha fonte encovada em anéis de um negro que oscila, mas ardente, cujo caráter fantástico discorda cruelmente da tristeza do mirante de minha fisionomia. Hoje meus olhos não têm vida, nem brilho, parece não ter pupilas. Tenho os lábios afilados e contraídos, tenho uma fixidez quase vítrea. E quando estes lábios professam qualquer tipo palavras entreabre-se um sorriso mordaz e os dentes alvos, revelam-se lentamente.

A desgraça deste mundo é variada; multiforme é a miséria. Dominando o vasto horizonte o arco-íris finge sua beleza, e como ele as suas cores são diversas, distintas e, todavia, fundidas. Como eu pude de um exemplo de beleza tirar algum tipo de fealdade? De um emblema de aliança e paz tirar uma semelhança de dor. Ah! O Mal advém do bem. Na realidade é da alegria que vem o desgosto e com ele a dor.

A lembrança da felicidade passada produz a amargura de agora, que a amargura que existe tire da sua origem o prazer do que poderia ter existido. E agora eu lhe afirmo com toda certeza pois com o passar dos séculos, a realidade do mundo não me impressiona, mas suas visões sim. Minhas idéias loucas de um mundo dos sonhos são; não a preocupação da minha existência, mas sim o que darei a este mesmo mundo quando chegar a hora.

Donzela do Gelo
Enviado por Donzela do Gelo em 09/04/2018
Código do texto: T6303704
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