Pizza no boteco
Ao entrar no boteco da esquina fingiu que não era mais um duelo. Mas o dono do bar percebeu, e ficou sério, ao mesmo tempo em que sorria.
Sim, era um cowboy. Sim, um duelo terrível ia começar. De um lado o dono do bar. Do outro lado ele. Um embate onde estavam em jogo altos ideais, tão altos quanto os mais altos da civilização moderna.
Ele cumprimentou as mesas e suas garrafas de cerveja, acenou para os que jogavam sinuca. Encostou-se no balcão sujo. Começou a olhar a estufa. Coxinhas, risoles, salsicha recheada, tudo bem pousado sobre papel de pão engordurado. Uma mosca aprisionada era uma testemunha do engorduramento dos petiscosos acepipes.
O dono do bar olhava impassível, sorriso duro na cara. Olhos tensos. Ele? Ele fingia naturalidade. Sua estratégia era ser natural. Mas todos que sabiam o que ali aconteceria tinham ciência que essas caras e gestos eram parte do combate.
— Hum... Me dá uma pizza!
Havia começado.
— Pois não amigo! Pizza... aqui está!
Manobrou a espátula com fúria contida. Alçou a pizza, quase três centímetros de massa sem gosto, coberta de queijo amarelo, molho de caixinha. Havia dado sorte, pois um pedaço de calabresa coroava a fatia. O orégano era desigual sobre a superfície da fatia. Como se tivesse sido atirado por um bombardeiro americano jogando napalm sobre uma aldeia vietnamita. Com a estufa aberta a mosca ganhou a liberdade, e fugiu como se soubesse que aquele era um campo de batalha. Uma rinha feroz se iniciara:
— Ok.
— Aqui está...
— Sei. Mas não está faltando nada?
— Como assim? Pediu pizza, aqui tem a pizza!
— Mas não é assim que se serve...
Todas as mesas se calaram. Ouviu-se apenas uma bola da sinuca chocando-se contra outra, que teimosamente bateu no bico e não caiu na caçapa. Um clima pesado tomou o ambiente. Alguns pararam com o copo de cerveja no ar. Outros nervosos espetavam os salgadinhos dos pratos com palitos de dente.
— Como que se serve então?
— Num pratinho.
— Como?
— Num pratinho. Num prato...
— Por que?
— Não dá pra comer pizza no guardanapo!
— Todo mundo come.
— Mas não é certo.
— Mas todo mundo come. Ninguém que pede pizza aqui pede no prato.
— Mas tá errado!
— Ora, que tem o guardanapo? Ora...
— Mas nem que fossem duas folhas de guardanapo! Ainda mais uma folha só...
— Não vou ficar segurando isso aqui mais tempo não. O amigo vai ou não querer a pizza? Decida-se logo, por favor...
— Assim não quero. Onde já se viu? Comer pizza em guardanapo!
— Mas agora também não dá pra desistir!
— Ih! Por que não posso desistir? Agora sou obrigado a comer sua pizza!
— Você pediu, agora vai ter que comer!
— Ora essa! Mas que...
— O guardanapo já grudou na pizza, não dá pra voltar ao tabuleiro...
— E eu vou comer pizza com guardanapo?
— Você pediu...
— Pedi pizza, não guardanapo.
— E ia comer na mão?
— Comer num pratinho, como se come pizza.
— Aqui se come no guardanapo.
— Então tá! Não quero não... Só se você colocar num pratinho.
— Pra que sujar um prato só com uma pizza?
— Porque é o certo, ora essa!
Irritado o dono do bar teve que ceder. Era a cruel realidade de uma sociedade capitalista se impondo. Era submisso ao consumidor. O consumo tudo rege.
Trouxe um prato, porém serviu a pizza com o guardanapo, que agora era parte da pizza de tão grudado.
Ele era o triunfo encarnado. Com golpes da faca empenada ia traçando a pizza. Claro que reclamou do novo ingrediente da pizza. Claro que resmungou ainda. E, claro que se voltou para alguém, rindo sobre alguma coisa. O dono do bar estava desolado. Derrotado. Disfarçava a tristeza gritando comentários para a mesa de sinuca. Mas não dava pra fugir da realidade: servira a pizza no pratinho...
Sempre perdia o combate praquele sujeito. Permanecia o resto da noite estressado. Por isso vingava-se, aumentando a água no catchup e diminuindo o remédio de rato. Não que fossem doentes os ratos. Muito pelo contrário eram bem cevados. O remédio era pra impedi-los de expulsarem o dono do bar do seu boteco. O catchup era pra render mesmo.
Naquela noite vendera mais um pedaço da pizza. Com satisfação viu o Zé Broguete, depois de sua dose de branquinha com mel, comer, satisfeito, a pizza.
Agora sim no guardanapo.