Despertar Anônimo

Abri os olhos. A luz da janela nua fulminou minha vista. Cerrei os olhos, lutando para mantê-los abertos. O silêncio sussurrava “solidão” em meus ouvidos. Inalei o ar ranço como quem cheira flores no pomar. Por vontade própria, cada músculo meu se contrai e cada membro meu se estica em uma direção aleatória, como que querendo fugir do meu tronco. Me espreguiço, retorcendo-me e extrapolando os domínios seguros da minha cama. O colchão velho resmunga a cada empurrão que recebe. Quando volto à minha posição inicial, ele solta um grunhido de dor e se cala. Levo os dedos indicadores aos olhos e os esfrego demoradamente. Ao terminar abro os olhos novamente e consigo um foco. Faço o mínimo esforço com o pescoço para o lado direito para que a gravidade se ocupe do resto da tarefa de virar a cabeça para lá. Passa da uma hora da tarde. Pisco algumas vezes, absorvendo, como quem viu uma notícia catastrófica na televisão, mas já se acostumou a vê-las. Olho para o lado esquerdo, através da janela, e vejo o céu desesperadamente azul. Nenhum prédio à frente, nada. Parece mais que pintaram aquele trecho da parede de anil.

Como olhar para baixo e pra cima dá muito trabalho, volto a olhar pra frente, para o teto, tentando mais olhar para um ontem turvo e nublado. Vejo no meio das brumas muito álcool, uma mulher e muitas roupas... Por aí. Muito álcool: comum. Uma mulher: comum. É incrível como por fora são tão diferentes, mas no fundo é sempre a mesma. Ainda vou desmascarar a maldita que vem sempre fantasiada de uma mulher diferente para me atazanar. É como se elas fossem todas uma só entidade: puta, com uma roupa diferente a cada dia. Não é preciso ser um gênio para entender que puta é igual a sexo e sexo é bom. Nem para entender que álcool é igual a embriaguez, que também é bom. Portanto somando cachaça e puta, uma noite maravilhosa. Da qual eu não me lembro de nada. E adoro isso.

O que passou, passou e eu devo ter curtido. Bebi, transei, gozei e dormi. Não tem coisa melhor. Hoje estou aqui deitado nu e não preciso me lembrar que paguei pra isso. Pior: que paguei pouco. O que é bom pra minha carteira desnutrida, mas pode não ser... As DST’s que o digam. Mas que se dane, elas vêm depois, agora eu estou apenas aqui, deitado na minha cama ranzinza com esse trapo me cobrindo. Desenrosco o pé de um dos buracos e, com o mesmo pé, afasto a manta de cima de mim. Espero algo acontecer. Nada. Ninguém virá até aqui querendo me acordar. Ninguém me servirá o café da manhã. Nem o despertador irá tocar. Um despertar completamente anônimo e alheio ao resto do mundo. Onde quer que esteja, minha família deve estar almoçando já a essa hora. Minha mãe chamando insistentemente pelo meu irmãozinho, que acabou de voltar do colégio ainda suado pela aula de educação física, enquanto meu pai impacientemente espera para poder meter os dentes naquele delicioso macarrão que fumega à mesa.

Penso na minha geladeira vazia, que me lembra minhas costelas à mostra, que me lembram as contas embaixo da porta, que me lembra a gambiarra de energia do poste do lado da minha janela, que me lembra as quedas constantes de luz, que me lembram banhos gelados, que me lembram frio, que me lembra as janelas sem vidro nem cortina, cuja ausência me presenteia com esse impressionismo de uma cor só. Esse azul que poderia até combinar com meus olhos... Se eu não tivesse nascido de olhos negros opacos.

Suspiro novamente e penso em mim e no que me cerca e o que não me cerca. A cama que geme, o muquifo em que moro, o céu que me encobre, a prostituta que passou, as doenças que ainda virão, a falta de comida na geladeira e no estômago, a falta de dinheiro na conta e uma família que me esquece. Tudo isso seria o desespero de uma pessoa normal, mas eu nunca me achei normal. Eu estou aqui, e isso me alegra. Sorrio demoradamente. Uma expressão que ninguém vê, mas que vale a pena por si só. Suspiro novamente e levanto-me, partindo para mais um dia.