O apagão

Nem bem se acomodaram em suas camas e faltou a luz. A mãe correu a acender uma velinha de azeite que costumava ficar numa prateleira de canto ali mesmo no quarto. A luzinha amarelada parecia travar uma luta ferrenha contra aquela escuridão. Mesmo trêmula, persistia.

- Justo na hora da novela. Reclamou Katherine a filha mais velha, no que concordou Emily sua irmã.

- Que horas são? Perguntou a mãe.

- Que diferença faz se está tudo escuro! Exclamou Katherine.

- Acho que está na hora do meu remédio. Retrucou a mãe.

E apanhando a velinha de azeite deslizou pelo corredor rumo à cozinha, com seu par de pantufas com cara de coelho, perseguida por sombras disformes e deixando para atrás um profundo breu.

Um burburinho vinha lá de fora. Emily abriu a veneziana com muito cuidado e pode ver que pessoas conversavam nos portões, enquanto algumas crianças ensaiavam alguma brincadeira.

- Nossa! A noite está linda! Venha ver só que lua cheia no céu, parece dia! Exclamou a menina com a cabeça do lado de fora da janela.

De fato a noite estava tão clara que as camélias do jardim pareciam prata brilhando e era possível também identificar algumas constelações como: Escorpião, o Cruzeiro do Sul e três Marias, entre outras. A serra mostrava seu contorno cor de petróleo e o rosário de luzinhas que desciam pela escarpa. A noite exalava uma mistura de aromas primaveris e a temperatura era muito agradável. Até Pipe, o gato malhado de Emily que estava dormindo se interessou pelo movimento e veio deitar-se no parapeito da janela.

Quando a mãe retornou as duas meninas estavam na janela e a réstia do luar que entrava deixava uma poça prateada no chão escuro do quarto. Um vagalume afoito entrou num voo suave e empolgou as meninas, com o piscar intermitente de uma luz quase esmeraldina.

- Ah! que luar lindo, fazia tempo que a gente não via um assim! Exclamou dona Amélia. E continuou. _ A lua me lembra das histórias que eu ouvia quando menina, e na maioria das vezes eram histórias de assombração ou coisa parecida!

- Então conta uma pra gente? Nossa! Faz tempo que não conversamos sobre essas coisas. Disse A mais velha!

- Lembrei-me de uma, mas essa é engraçada! _ Era já no lusco-fusco e havia uma lua cheia saindo de trás do cume de uma igreja que ficava perto de casa. Eu estava no quarto dobrando algumas roupas, quando vi da minha janela uma cena bem curiosa. Parei e fiquei a observar. Havia ali bem na beira da rua um monte de areia para construção. Um homem que usava tamancos, e naquela época era normal usar tamancos, acho que para desviar de uma poça d´água caminhou pela areia e acabou lá perdendo um dos pés do tamanco. O engraçado da cena é que ele ficou tão apavorado procurando o tamanco, que de cócoras, mais parecia um cachorro preparando uma cova para fazer cocô! Concluiu dona Amélia sob risos incontroláveis das meninas....

Terminada a sessão de risos, Katherine veio com suas lembranças.

- Vocês lembram quando o pai chegava do trabalho e depois da janta, descia aquele velho rádio que ficava longe do nosso alcance e o colocava sobre a mesa da sala para ouvir músicas e principalmente aquelas emissoras em ondas curtas? Pois é, enquanto isso, o que mais me chamava a atenção era a traseira do rádio. Eu ficava maravilhada olhando aquelas válvulas acesas e imaginando que lá é que ficavam os cantores e locutores com seus vozeirões...Nossa! quanto tempo e que saudades do pai. Ele era muito engraçado e as histórias que contava, acho que inventava ali mesmo na hora. Concluiu ela com os olhos marejados.

Então foi a vez de Emily: _ Mãe, conta aquela história do homem bêbado que entrou em nossa casa por engano? Dona Amélia deu uma pausa e começou:

- Foi quando faleceu um vizinho que morava na rua debaixo. Os amigos, os parentes vinham para dar um último adeus. Já era quase hora do almoço, quando pela porta da cozinha entrou um homem que mal ficava em pé. Parou bem em frente à minha máquina de costura que eu sempre cobria com um lençol branco. Tirou o chapéu de feltro e começou a reverenciar aquilo que ele achava ser, balbuciando umas palavras que mal se entendia. Somente entendi um tal de: - Vai com Deus.. Quando eu percebi a cena fui logo dizendo: “O senhor bebeu e entrou no lugar errado. O morto mora na casa debaixo” O homem saiu balançando e resmungando, e nem sei se achou a casa certa depois.

Foi mais uma sessão de risos, enquanto lá fora ainda se ouvia pessoas conversando e crianças brincando. Um grilo no jardim, resolveu fazer sua serenata e era também possível ouvir: _ elb, elb, elb ...... Um canto dissonante das rãs que viviam num pequeno brejo logo abaixo da rua.

- E a história do homem da lamparina, mamãe? Cutucou Katherine.

- Sim, essa era seu pai que contava. Era um homem que morava na raiz da serra e tinha o hábito, de todas as noites.......

- Graças! Chegou a luz! Gritaram as meninas com os olhos arregalados de alegria.

Lá fora também se ouviu aplausos e gritos comemorando o retorno da energia!

Imediatamente fecharam a janela, apagaram a velinha e ligaram a televisão. Nem rãs, nem grilos, constelações, o cheiro de murta.....Tudo voltou ao que era antes. No quarto nenhum pio, só o monólogo da TV. A rua ficou com a solidão da lua donde mais nada podia se ouvir, com exceção dos apitos do guarda noturno que vez por outra ali passava em sua bicicleta!

[Conto publicado na revista Brasil Nikkei Bunngaku nº 63 - Nov. de 2019]

Conto de JAL® / abril/2019