A BAIANA -Cap. XI

A BAIANA

XI

Chegados da viagem a Salvador, onde estiveram a passar o dia, diga-se, um fantástico dia de praia, muito haveria que contar, especialmente Gertrudes, que há trinta anos não ia até aquelas paragens. Trazia consigo uma panóplia de assuntos para contar ao seu Olegário.

O crescimento de Salvador nos últimos trinta anos foi deslumbrante. A cidade virou-se massivamente para o turismo. Teve um crescimento exponencial muito grande. Novos arruamentos, arranjos urbanísticos na zona histórica, novas áreas residenciais, muitos complexos turísticos e hoteleiros. Gertrudes estava deslumbrada.

Josy fez questão de ir com a mãe até à igreja de S. Francisco, orar ao santo com o mesmo nome do namorado. Já lá havia estado na sua primeira vez. As duas agradeceram ao Divino pelo jovem Francisco e pediram que lhe desse saúde, porque Francisco era merecedor dessa graça e porque era um jovem diferente de todos os outros…, com muita maturidade.

Feitas estas orações e pedidos, dirigiram-se à caixa das esmolas e “pagaram” antecipadamente o serviço, na esperança de que o santo honrasse a satisfação dos pedidos.

Outra visita que entrou no roteiro, foi a Faculdade de Medicina, que Josy não poderia esquecer de mostrar à mãe. Gertrudes estava feliz feliz.

A minha filha, casada com um médico? Vai ser naquele palácio, que o meu futuro genro, vai ser médico? Que coisa. Se eu e Olegário alguma vez pensávamos ter entre portas um médico, e para mais genro, pai dos nossos netos e quero que sejam muitos. De tudo, vou dar parte a Olegário, que até se vai arrepender de não ter vindo, dizia Gertrudes para si, em pensamentos deambulantes de cá para lá.

Quando chegaram a casa à noite, Olegário estava sentado no sofá a ver TV. Sentiu o vozear da chegada, levantou-se, veio à porta receber os veraneantes.

Estava a ver que não chegáveis. Caramba. Se soubésseis o quanto me custou a passar estas duas últimas horas?

Tivesses ido, dizia Gertrudes. Não sabes o que perdeste. Que coisas lindas que vi.

Olegário recebeu a mulher com um beijo repenicado, igual àqueles que ele um dia, irá dará a Micaela.

Arrumaram-se as trouxas. Para o jantar, Gertrudes trouxe acarajé embalado em recipientes próprios para comida. Fê-lo a pensar em Olegário.

Durante o jantar pôs-se a conversa em dia, a de cá e a de lá.

Começou Gertrudes.

- Olegário, não sabes o que perdeste. Como está linda e grande Salvador!

- Fica para a próxima…

- Então aquele palácio onde o “nosso” Francisco vai ser médico! É a coisa mais bonita do mundo!

- Ai sim? Só podia ser. Para fazer médicos tinha de ser um bom palácio.

- E a praia! Gente, gente, muita gente.

- Oh.

- Que tens homem? É só sim, oh… Desembucha. Tens coisa contigo?

- Nada. Tive muitas saudades tuas. Não me consigo ver longe de ti tanto tempo.

- Oh homem, já aqui estou. Não precisas de estar assim. Chegamos bem e felizes. Que mais queres?

- Agora estou a ficar recomposto da ausência da minha gatarrona.

- Deixa-te de pieguices. Não tens idade para isso. Quando eras novo, não eras assim. Olha que foste um osso duro de roer

- Esquece isso. O que conta agora é o presente. Passado é passado.

- Olha que ainda tenho marcas no coração. Eras um machão. Ainda bem que a idade te fez ver, que, aqui a Gertrudes é a tua perdição. Sempre mais vale tarde do que nunca.

- Hoje aproveitei a vossa ausência e fui ao Dr. Jesualdo para consulta.

- Achaste-te doente?

- Não. Consulta de rotina. Quis tirar cá umas dúvidas.

- Dúvidas?

- Sim.

- Quais?

- Tu sabes que ainda estou muito vigoroso.

- Sei, infelizmente ando sempre contigo a cavalo.

- É por isso. Tenho medo que seja doença grave que tenha.

- És tolo. Doença é na tua cabeça.

- Sei lá. Ele há cada uma.

- Oh homem, tu estás como quando casamos. É sinal de saúde. Tu da maneira que estás, ainda botavas a baixo uma nova. Ainda a fazias passar as passas do Algarve.

Olegário riu-se. Recebeu um testemunho de confiança na sua virilidade.

- Não. Quem me comeu os ossos, vai-me comer a carne.

- Ao contrário querias tu dizer. Quem te comeu a carne vai-te comer os ossos.

- Ou isso.

- Folgo em saber que me és fiel. Já agora também te digo do fundo do peito: Nunca te seria infiel.

Terminou por aqui a conversa relacionada com a visita ao Dr. Jesualdo. Entretanto Olegário quis ainda assim falar da conversa com Calixto. Tinha uma absoluta necessidade de se sentir confiante para as investidas que hão-de vir.

- Passei também parte do tempo, com o meu amigo Calixto.

- Fizeste bem. Deves estima-lo. Afinal sois da mesma idade.

- Tive pena dele.

- Porquê?

- Puxou-me conversa da sua intimidade.

- Ele fez isso? Essas coisas não se falam a ninguém.

- Pois não. Eu nunca falo. Ele é que teve necessidade de desabafar.

- E tu?

- E eu? Ouvi. Os amigos devem escutar os desabafos daqueles a quem queremos bem.

- Lá isso fizeste bem.

- Sabes o que ele me disse?

- Como vou saber, se tu ainda não disseste nada?

- Ele diz que já não brinca com a mulher. Que tem doença da próstata. Tu já ouviste falar disso?

- Coitado. Quem havia de o dizer. Um homenzarrão daquele tamanho. E bonito.

- E bonito? Isso para aqui não é chamado.

- Ciúme, meu gato.

- Pois. Senão te amasse tanto, nem me importaria.

- Como é bom saber que estás louquinho por esta gatarrona, já cheia de varizes nas pernas. Nem isso te afasta de mim, homem.

- O amor é cego. Quero lá saber das varizes, nem que elas fossem maiores.

- A conversa com Calixto, foi só isso ou houve mais alguma coisa?

- Nada de especial. Fui todo ouvidos.

- Lembra-te que não quero que fales das nossas “vidas”.

- Não falo nunca.

Ficou por aqui, este diálogo. Olegário não teve interesse em falar mais, não vá a Gertrudes ter conversa com a mulher de Calixto, a Glória, e depois…

Josy, quando chegou a casa à noite, não foi logo à caixa do correio. Não era conveniente. Francisco ainda estava com ela. Logo que ele voltou costas, foi directa à caixa e viu que tinha outro poema.

Continuava sem perceber quem o faria e qual o seu verdadeiro propósito. Contudo, qualquer que seja, ela continuava a guardar com carinho os poemas na cómoda da roupa, bem no fundo, em lugar insuspeito. Este era já o terceiro.

Micaela saiu à rua para fazer compras. Trazia consigo Otília e ao passar à casa do cunhado, a pequenita quis ficar com Josy. Bateram ao portão e chamaram Josy,Josy.

Josy apareceu, beijaram-se e Micaela disse que Otília queria ficar com ela, enquanto ia às compras à padaria, talho e farmácia. Disse também que ia ao padre Lira encomendar missa pelo falecido marido. Fazia cinco anos, que Januário havia morrido.

Olegário apercebeu-se de gente e espreitou por trás da cortina da janela do seu quarto. Viu Micaela. Desceu rapidamente, com intenção de a ver de perto. Micaela já havia iniciado a caminhada para fazer as compras. Olegário ainda assim, veio apressado até à esquina da horta para a ver desaparecer na curva.

Dizia para si:

Oh que boas pernas e não têm das varizes.

Olegário veio para dentro de casa, fez festas à Otília e perguntou onde foi a mãe.

Pensou…, vai dar tempo de fazer a barba e me vestir. Digo à Gertrudes que vou ao Quiosque da Esquina comprar o jornal e zás, caço-a num desses sítios.

Antes da saída, mirou-se no espelho da casa de banho e perfumou-se com um perfume, que Francisco havia oferecido à Josy.

Já fora do portão, para que Gertrudes não se apercebesse dos cuidados na aparência, dizia: Josy diz à mãe que fui comprar o jornal, A Folha de S. Paulo, ao Quiosque da Esquina e que devo demorar um bocado, talvez vá até ao Abstratus Bar ver se está o Calixto.

Este Calixto, terei de estimar muito, serve-me para todas as desculpas, dizia para si.

Enquanto isso, passou ao Quiosque, comprou o jornal para disfarçar e aí travou-se o seguinte diálogo:

- Bom dia Sr. Octávio.

- Olá. Por aqui Sr. Olegário?

- A Folha de S. Paulo, se faz favor.

- É a primeira vez que me compra jornal, Sr. Olegário. Vai passar a ser meu cliente? Quer que lhe faça reserva de jornal?

- Quem sabe.

- Você está muito bem vestido e cheiroso.

- É...

Olegário acertou a camisa e o casaco no pescoço, deu ligeiro movimento de ombros e passou a mão pelo ombro a sacudir o pó que não tinha.

- Que perfume é esse que você traz consigo?

- Um perfume que Francisco, o namorado da minha filha, lhe ofereceu.

- E você, foi pôr no cabelo perfume de mulher?

- Porquê? Os perfumes não são todos iguais? Não servem para homem ou mulher?

- Não, Sr. Olegário. Você assim parece bicha.

- Bicha? Eu?

Olegário, perante comentários tão indesejáveis, despediu-se e rapidamente se dirigiu ao Abstratus Bar. Entrou e cumprimentou os presentes com um Bom Dia e disse: Levo pressa, estou à rasca para ir à casa de banho.

Para simular esse desejo, deitou as mãos entre pernas na zona do baixo-ventre, travou o passo como quem não aguenta as urinas e entrou na casa de banho das senhoras, sem que ninguém se apercebesse.

Aí, tira o casaco, arregaça as mangas e disse para si:

- Eu bicha? Pelo contrário, um garanhão como dizia a menina Alice do Dr. Jesualdo, à portuguesa, descendente dos Cabrais.

Não, perfume de mulher não. Lavo a cabeça com este sabão e o cheiro deve sair. Depois ponho-me lá fora ao sol meia horita e fico com o cabelo seco. Ah, passo pela farmácia, compro perfume de homem mais caro que houver.

Depois da cabeça lavada, limpou-se à toalha que estava no toalheiro, desarregaçou as mangas da camisa, vestiu o casaco, olhou-se ao espelho, espanou-se e saiu.

Repararam que ele tinha saído da casa de banho das senhoras e disseram:

- Oh Sr. Olegário, que vem a ser isso?

- Isso o quê? Não estou bem? Que tenho?

- Não tem nada. Você está a sair da casa de banho das senhoras.

- E que tem? Elas não são ambas iguais?

- Não. Imagine que alguma senhora queria ir à casa de banho?

- Que esperasse. Ou então que fosse à dos homens.

- Ah, reparo que você esteve a lavar a cabeça.

- Estive a molhar o cabelo. Para se segurar melhor com o vento.

- Não está vento.

- Se não está, vai estar…

Olegário mostrou vontade se sair tão rapidamente como entrou. O seu pensamento era Micaela.

Havia que a procurar a qualquer preço. Talho, Padaria, Farmácia. Cada um destes estabelecimentos ficava em ruas diferentes e distantes algumas centenas de metros. Era o caso da Farmácia Brito.

Olegário meteu pés ao caminho e percorreu as ruas onde se situam, em busca de Micaela, como cão em tempo de cio, farejando sinal.

Passou três vezes diante dos estabelecimentos e não a encontrou. Estava desolado. Perguntava: onde se teria metido? Tucano não é assim tão grande. Vou mais uma vez dar a volta, mas agora em sentido inverso.

Ao passar à Farmácia Brito, olhou para dentro e pareceu-lhe tê-la visto no meio das outras pessoas. Entrou. Deitou os olhos e reparou que se tinha enganado.

Disse para si: Já que estou aqui vou comprar o tal perfume só para homem. Espero pela minha vez e se vir que está muita gente peço ao Sr. Brito ou ao Sr. Martins para ser atendido em privado, lá no quartinho das injecções.

Chegada a sua vez, olhou para trás e viu que havia várias pessoas. Deu sinal ao empregado, Sr. Martins para ser atendido no quartinho interior.

Diálogo travado:

- Sr. Martins, quero um perfume de homem… para homem.

- De homem para homem?

- Para mim.

- Ah….

- De que cor tem?

- Sr. Olegário, os perfumes não têm cor.

- Então se não têm cor, de que paladar tem?

- Os perfumes também não têm paladar.

- Um perfume como aqueles de apanhar moscas.

- Não percebo.

- Mas que apanhe mulheres.

- Vou buscar.

O Martins está esquisito, dizia para si, Olegário.

- Ora aqui tem, Sr. Olegário, de várias marcas. Todas boas.

- Quero um que apanhe mulheres dos quarenta para baixo.

- Qualquer um destes é bom. É o que usam os moços novos.

- É destes mesmo, que quero.

- Temos estes tamanhos (e mostrou).

- Não tem de litro ou mais?

- Não Sr. Olegário. Um bom perfume vem sempre em frasco pequeno.

- Então levo cinco ou seis frascos desses mais pequenos.

- Isso é demais, Sr. Olegário.

- Eles não levam nada... É preciso um de cada vez.

- Não Sr. Olegário. Deita-se um bocadinho de cada vez e o cheiro fica por muito tempo.

- Acha? E dá para caçar?

- Para caçar o quê?

- Aquilo que lhe falei, dos quarenta para baixo.

O Sr. Martins fez de conta que não ouviu esta puxada.

- Mais alguma coisa, Sr. Olegário?

- Por hoje é tudo. Vamos lá pagar.

- Cada frasco 75 reais X 6 = 450 reais.

- Foda-se!!!!! Mais caro que vinho do Porto, que vem em garrafas grandes?

- Este perfume que o Sr. Olegário leva é o melhor do mercado. Quem compra desses é o Dr. Jesualdo. Se não puder pagar tudo, diga como quer.

- Em seis meses.

- Está bem. Veja se quer levar mais qualquer coisa. Não esqueça que nesta casa tem crédito.

Depois de comprado o perfume, saiu e disse para si:

O que teria acontecido àquela mafarrica? Ela terá algum amante? Acho que não, mas nunca se sabe. Vou andar mais de olho nela.

Olegário não sabia que Micaela tinha ido ao padre encomendar a missa de aniversário do falecimento do irmão, Januário.

Iniciou o regresso a casa desolado. Mas um pensamento lhe ocorreu no momento. E se por acaso ela aparecer de imprevisto? Tenho também de pensar nessa hipótese.”Homem prevenido vale por dois”.

Seguindo essa linha de pensamento, meteu a mão ao bolso, abriu um frasco de perfume e despejou-o por si abaixo. Disse para consigo: Deve durar até casa dela o cheiro, senão estou tramado. 75 reais não é brincadeira. Mais caro que vinho do Porto? O que vale é que na farmácia dão-me crédito. Só perde quem tem. Quando estes acabarem, vou comprar mais.

Foi infrutífera a saída de Olegário na procura de Micaela.

Regressa a casa cabisbaixo e ainda assim com a ideia de que a poderá encontrar ao chegar a casa, quando for buscar Otília. Ganhou leve ânimo. Este último pensamento bate certo. Efectivamente, Micaela estava dentro do portão, no terreiro ao fundo das escadas a falar para a cunhada Gertrudes e sobrinha Josy, com Otília pela mão.

Olegário chegou, e saudou a cunhada.

Iniciou-se o seguinte diálogo:

- Oh cunhado, você cheira muito bem. Que é isso? Tem amante?

- Realmente homem… que raio de perfume compraste e para quê? Não te chega água e sabão?

- Entrei na farmácia para cumprimentar o Sr. Brito e o Sr. Martins. O Brito já está um velho caquéctico. Estava a fazer uma demonstração de um perfume, a uma senhora e tombou um frasco inteiro sobre mim.

- Oh pai, a uma senhora?

- Sim, a uma senhora, porquê, não pode ser?

- O perfume não é de senhora, é desses que os moços usam.

- Pois é… Ela estava a comprar para o filho.

Micaela, ainda não sabe da carta deixada na caixa de correio por Olegário.