A BAIANA - Cap. XIII

A BAIANA

XIII

Micaela era a fina-flor das mulheres de Tucano. Muito elegante, de corpo e no caminhar. Pareciam estudados todos os seus movimentos, que eram amplamente apreciados pelos mais velhos, acima dos cinquenta anos, com tamanha atenção, que ela notava e sabia provocar. Era muito vaidosa. Os mais novos também não se furtavam aos olhares atentos. Contudo, para esses ela mostrava indiferença.

Tinha momentos de reflexão sobre a sua pessoa e o seu destino de jovem viúva, que sonhava ver desfeito num colo de homem livre.

Olegário não era esse homem disponível. Apenas era a sósia mental do falecido, de quem guardava boas e saudosas recordações.

Micaela debatia-se com uma confrontação interior entre se deveria ou não perpetuar, ainda que clandestinamente a memória de Januário ou se deveria esquecer e partir para nova aventura, apagando o passado.

A partir do momento em que ela leu a carta deixada na caixa do correio pelo cunhado Olegário, mais estas reflexões tomaram conta das suas horas de sono. Nunca antes tinha despertado tanto, a realidade da sua vida e a tinha posto a olhar em frente, para um futuro que esquematizava e pintava de muitas cores e formas.

Começava nova etapa na sua vida.

Dizia para si mesma: De que espero? Sou livre. Januário já morreu há cinco anos. Fiz o luto em respeito pela sua memória. Tenho a certeza que se ele pudesse falar, também gostaria que fosse feliz. Afinal, se ele me não pode ter, se eu for feliz daqui para a frente, também o honro pelos cinco anos de casados vividos com muito amor.

Demais o corpo pede-me mais qualquer coisa. Beijos, abraços, sexo.

Meu cunhado Olegário, não me permite sair à rua lado a lado como meu marido. Não me pode dar esse prazer de mulher, que quer retomar o curso natural da vida. Tudo o que fizer com ele será sempre às escondidas, com a agravante de se se vier a saber, dará escândalo. Ainda assim, estou tentada a aceitar o desafio até que alguém me dê sinal, que me pretende e seja homem livre e eu possa amar. Não quero um homem por homem. Quero um homem que me ame intensamente, mas também quero amar do mesmo modo.

Enquanto não aparecer, vou manter com Olegário uns encontros esporádicos.

Micaela tinha no subconsciente um homem de quem ainda não recebeu qualquer sinal e a quem se entregaria de alma e coração. Esse homem era de Ribeira do Pombal e andava com uma carrinha a vender peixe pelas ruas.

Chama-se Alfredo o homem que aparece em sonhos a Micaela. Homem muito calado, respeitador, nunca deu sinal algum que lhe pudesse criar expectativas. Era três anos mais novo.

Micaela sabia ser discretamente provocadora, mas ele recebia a mensagem com indiferença.

Em Ribeira do Pombal, era onde estava a mulher da sua vida, a mulata Edite Celeste. Não abria mão dessa mulher, por isso eram-lhe indiferente os olhares insinuantes de Micaela.

Micaela desesperava por não receber dele, sinal que a satisfizesse. Depressionava-se. Perante alguma fragilidade psíquica, acabariam por os seus pensamentos caírem em Olegário, como o mal menor. Foi com este cenário menos bom de Micaela, que Olegário vai atacar em força.

Nas “saídas” ao Abstratus Bar, que ele dizia à mulher, Olegário, depois de sair de casa, caminhava cem metros, virava à esquerda e percorria as ruas das traseiras num movimento circulatório que o levava até à casa da cunhada, em visita de reconhecimento do terreno e dos perigos à sua “ integridade”. Aí chegado, todo o cuidado era pouco, porque Maria do Tanque, mulher sem família, e que vivia para os seus sete gatos pretos, dispunha de muito tempo livre para deitar atenção à vida da vizinhança.

Tinha setenta anos esta mulher beata que não dispensava as idas à igreja quase diárias, pela tardinha, onde levava informação ao padre, a ponto de este a alcunhar de “Jornal da Caserna”.

O padre trazia em dia o que se passava de mundano nas vidas das pessoas e que Maria do Tanque pintava das cores que mais lhe agradava. A ela tudo lhe servia para tirar conclusões apressadas do que via e não via. Dormia com sono trocado, andando a pé quase toda a noite por casa. Vinha à rua dar de comer aos gatos, falava para eles, tratava-os pelo nome. A mãe e avó era a Moranga, o marido o Tareco, os filhos e netos ( Bebé-Kani-Kiki-Bina-Pantufa ). A todos distinguia, apesar de parecerem todos iguais.

Enfim, uma mulher “perigosa” para os intentos de Olegário e Micaela

Olegário antes de iniciar os “ataques”, fez exaustivo levantamento do terreno e apercebeu-se que os gatos o poderiam “denunciar”. Contudo ainda assim lhes deu o benefício da dúvida.

Programou a primeira “visita”, à cunhada para a próxima sexta-feira, dia de Santo António, com um bilhete deixado na caixa do correio nessa segunda-feira, nove de Junho.

Dizia o bilhete em mensagem telegráfica:

Adorada Cunhada

Na próxima sexta-feira à noitinha, dia de Santo António, padroeiro dos casamentos, estou aí para “matar o borrego”

Beijos húmidos

Olegário

Ter-se-á iniciado a semana mais longa da sua vida. Contava os dias, horas e minutos com extrema ansiedade e inquietação que até Calixto se apercebeu e lhe perguntou porque andava tão agitado.

Diálogo entre eles:

- Olegário, que é que você tem, homem?

- Não percebo onde quer chegar.

- Acho-o agitado. Algo corre mal na sua vida?

- Não. Pelo contrário. Está tudo bem encaminhado.

- Bem encaminhado?

- Sim. O namorado da minha filha, como sabe, o Francisco, vai ser médico. A minha mulher anda que nem cabe de contentamento.

- Então donde vem essa sua aparente agitação?

- Só se for dos gatos.

- Dos gatos? Que história é essa?

- Você conhece aquela “ bruxa”, a Maria do Tanque?

- Conheço.

- Os gatos dela põe-me a cabeça em água.

- Os gatos dela põe-lhe a cabeça em água? Como pode ser isso? Você mora a mais de quinhentos metros da casa dela…

- Mesmo assim, aqueles mafarricos não me largam.

- Não percebo.

- Nem eu.

- Explique-se melhor. Os gatos vão para sua casa e estragam-lhe a horta?

- Não vão mas é como se fossem. Ainda por cima, são todos pretos. Nem os vejo de noite.

- Agora é que não estou a entender nada do que você diz.

- Eu conto-lhe. Ás vezes vou por ali abaixo, até à rua onde mora a minha cunhada, passo à casa dela, espreito para ver se está tudo bem fechado por causa dos ladrões e os gatos da “bruxa” hão-de estar sempre por lá.

- Coitados dos bichos.

- Coitados o carago. Os gajos estão sempre atentos ao que se passa.

- Ora ora.

Calixto não quis adiantar mais conversa, pareceu-lhe que Olegário não andava bem das ideias, despediram-se com um até amanhã.

Olegário regressou a casa e pelo caminho, ocorreu-lhe o seguinte pensamento:

Além das cartas e bilhetes que lhe escrevo, se eu fizesse umas quadras para lhe meter na caixa do correio a exaltar o meu muito amor e sobretudo desejo?

Isso mesmo. Nem espero para amanhã. Vai ser já hoje. Estou com uma veia de poeta…

Dizia para si então: Vou ao quiosque do Octávio, compro papel de carta e caneta, retiro-me até ao jardim, vou para a beira do lago e do viveiro dos passarinhos, sento-me no banco e naquele ambiente, devem sair uns versos de rachar.

Deste pensamento à prática foi um ápice.

Munido do papel e caneta, foi até ao jardim público, onde nunca ia, porque achava um sítio de poucas-vergonhas, com os namorados aos beijos e encostados atrás das árvores.

Aí vai poema, dizia.

Quero-lhe muito a ela,

Á minha querida cunhada,

Ela chama-se Micaela,

A Gertrudes não sabe de nada.

A Gertrudes não sabe de nada,

Nem lhe vou dizer

Micaela é minha namorada,

É minha até morrer.

Acabado de escrever as quadras, ficou maravilhado com o seu “talento” poético e dizia: ninguém seria capaz de melhor. Perfeitas.

Escusado será dizer que Olegário não vai ter descanso enquanto não as colocar na cx. Correio.

Terminou da melhor maneira o dia para este homem alucinado e que parece fogo em palheiro velho.