A BAIANA - Cap. XX

A BAIANA

XX

Conforme auto sugerido, Micaela na companhia da filha, saíram cedo à rua para fazer compras e de caminho passar pela cunhada. As compras que fez hoje tiveram só que ver com aquisição de géneros alimentares. Destes, destacam-se algumas gulodices que Otília aguarda sempre com ansiedade e que também sugere à mãe.

A ansiedade de Micaela tem a ver com desejos íntimos. Por ditames do coração. Nela a ansiedade chama-se Alfredo. A hora de passagem do peixeiro trá-la sempre em alvoroço. Recorre diversas vezes ao espelho, e às vezes mais que uma vez, num só minuto. A escolha da roupa, para se apresentar é conflituante. É um veste e despe frenético, que acaba quase sempre em resignação, pelo sibilar da buzina do peixe. Um ligeiro baton e um creme hidratante que espalha em abundância na face, fá-la brilhar e espelhar com a incidência dos raios solares. O perfume que Olegário ofereceu, aplica-o moderadamente (sabe que outro tão cedo não terá por aquele preço).

É assim que três vezes na semana, (segunda, quartas e sextas-feiras) Micaela vive as suas manhãs. Os outros dias que não vê Alfredo, têm outra carga de sofrimento. As horas e minutos parecem parados. Dá consigo tantas vezes a pensar nele, então há noite, quando se vai deitar, acaricia os seios como que a oferecê-los a Alfredo, para deleite deste. Acredita que essa hora chegará. O sono é feito num abraço apertado ao travesseiro. Os sonhos chegam a desencadear-lhe espasmos acompanhados de poluções. Em nenhum deles a centralidade é Olegário. Aquela “vez” definitivamente afastou-o das ambições imediatas de Micaela. Tudo o que vier a acontecer com o cunhado, não tem nada que ver com amor.

Hoje, segunda-feira é dia de peixe. No regresso das compras, Micaela passou pela cunhada e vai aguardar aí a chegada do peixeiro. Enquanto este não chega, o que deve demorar cerca de meia hora, as cunhadas conversam das mais diversas coisas. Entre estes temas, fala-se de Olegário. D. Gertrudes falou-lhe de comportamentos estranhos do marido, desde o aniversário de Otília. Diz que fala pouco, que se isola, sempre nervoso, irritante, por tudo e por nada se zanga e até na cama o acha diferente. Olhe que mal me podia ver a mudar de roupa, já estava com ele em “cima”, dizia Gertrudes. E quando ia tomar banho, apercebia-me que me espreitava pela fechadura da porta do banheiro. Como ele está mudado… Na cama era endiabrado, agora estou quase em paz. Não o entendo. Talvez tenha de o levar ao médico. Há em Salvador um tal Dr. Forjaz, que dizem que é entendido em doenças de homem. Não é por mim, que estou cheia de ser macheada, mas não o queria ver assim. Não é feliz e fico triste também, porque não sei que lhe deva fazer.

Enquanto esta conversa se desenrolava, Micaela mentalmente já há muito estava com a cabeça dela no cerne desses comportamentos ditos anormais, pela D. Gertrudes. Não quis fazer comentários que adicionassem argumentação para os explicar. Laconicamente disse que isso faz parte da vida de homem como na de mulher. Chama-se a isso andropausa, que é um período de desinteresse sexual com arrastamento desses comportamentos de ordem psicológica, dizia.

Olegário estava em casa àquela hora, espreitou por trás da cortina da sala e saiu à rua como que para cumprimentar a cunhada, mas com objectivo que só ele conhecia. Desceu as escadas até ao terreiro, onde a Gertrudes e Micaela conversavam, enquanto aguardavam o peixeiro e cumprimentou a mulher que o traz naquele estado, que a D. Gertrudes descreveu.

Diálogo a três:

- Olegário estava aqui a dizer à cunhada Micaela, que ultimamente andas esquisito.

- Oh cunhada, deve ser da idade. A mudança…

- Qual idade qual carapuça. Estou como novo.

- Estás estás. De paleio até me pareces mais novo do que és. Sabe Micaela que agora me trata tão bem. É só carinho. Nunca tive tanto mimo como agora aos sessenta anos. Até me oferece jóias.

- É sinal de que a ama muito.

-Mais vale tarde do que nunca. Que queres? Ando louco por ti e não és assim nova e “boa” como a cunhada.

- Cala-te com essa conversa. Não sou, mas já fui. Olha lá que não tenha tudo o que ela tem.

- Lá isso tens, ou melhor. E riram-se os três.

- Então que se passa consigo cunhado? É falta de chá a quatro joelhos?

- Também me parece isso cunhada. Ele agora não dá uma para a caixa.

- Arranje-lhe uma nova, vai ver que até os dentes se lhe renovam.

- Esteja lá calada. Só se for para se envergonhar.

Olegário estava numa encruzilhada em que duas mulheres lhe conheciam a vida. A argumentação de defesa não tinha sustentação. Por isso, preferiu não cair no ridículo de revelar aquilo que não era. Gertrudes, nem por sonho sabe que diante de si, tem a mulher que sabe tanto da “impotência” do marido, quanto ela.

Eis que a buzina do peixeiro já se ouve à distância.

- Vamos até ao portão, que o peixeiro está para chegar.

Micaela naquele instante deu de olhos a Olegário como que a revelar-lhe carinho e convite para outra “empreitada”.

Ele percebeu e sorriu.

Micaela passou a mão por si abaixo como que a assentar melhor a roupa e a sacudir o pó que não tinha. Estava vestida com saia acima do joelho e blusa cavada de decote singelo, a fazer adivinhar a beleza dos seios. Estava muito bem penteada. Com um cabelo negro e liso, atado atrás, que lhe dava mais frescura de rosto. Os olhos muito negros e rasgados faziam o resto. Era tudo isto que o sexagenário Olegário via naquele momento e que o incitava a esquecer o passado e recarregar baterias para o futuro.

Só que esta compostura não foi pensada para Olegário, ao contrário do que este supõe. O homem a quem se dirige, está para chegar.

E eis que chega e pára. Micaela fez questão que Gertrudes se aviasse primeiro, porque ela queria ter mais tempo para si. Tratou de se despachar da cunhada o mais rápido que pôde. Gertrudes não se apercebeu, pagou e despediu-se de Alfredo. Regressou dentro do portão onde estava ainda Olegário em missão de observação, mais às pernas de Micaela do que à conversa que se desenrolava. Gertrudes também se deixou ficar, mas agora para ver se apanhava qualquer conversa entre o peixeiro e a viúva.

Diálogo entre marido e mulher:

- Olegário, já viste como a nossa cunhada se ri para o peixeiro!

- É o jeito dela. Foi sempre assim, muito simpática.

- Achas? Não vês nada ali? A mim não me parece ser só simpatia.

- Olha que não dizes mal. Realmente, ela parece que não o larga.

- Pois não. O peixeiro quer-se ir embora e ela prende-o. E olha o jeito dela. Os movimentos de corpo e a maneira de falar.

- Pelo sorriso dela é de desconfiar. Muito expressivo. Até os olhos parecem mais brilhantes. Que queres? Uma mulher nova, viúva. O peixeiro é boa figura e até parece mais novo do que ela.

- Isso é verdade. Já muito séria tem sido ela. Nunca se ouviu falar nada dela, pois não ou tu sabes alguma coisa dela e nunca me disseste?

- Eu sei como tu. O que tu sabes também eu sei. Sempre séria.

- Mas pareceu-me, que até ficaste nervoso. Até a fala se te prendeu. Tu deves saber alguma coisa…

Olegário deixou morrer ali a conversa.

Alfredo, mantém-se inamovível em relação aos seus sentimentos, embora no seu interior ele reconheça que se não tivesse a reserva sentimental que tem para com a sua “mulatinha”, poderia ser uma oportunidade. Alfredo é um homem escravo dos seus sentimentos e fiel a quem nele deposita confiança. Daí se perceber as razões do seu estaticismo. Edite Celeste é o seu primeiro grande amor. O amor maior que um homem pode ter. Aquele que resultou de olhares cruzados, que se interagiram numa química de amor, em fenómenos neurobiológicos complexos, de confiança, crença, prazer e recompensa. Está selada uma paixão mútua.

O estaticismo dele em relação a Micaela não irá desanima-la. È uma guerra por batalhas que ela não quer perder.

Feitas as compras e pagas, despediram-se. Micaela enterrou nele os seus olhos felinos de chita, como sinal de desejo arrebatador e incontornável.

Gertrudes, aguardou intramuros até ao fim, para ver a despedida.

- Olegário, viste a forma como se despediu do peixeiro? Até parecia que o tombava com os olhos. E logo ela, que sabe que os tem rasgados e bonitos.

- Deve ser jeito dela.

- Jeito dela? Só se for para ti também, assim. Para mim não é.

- Lá estás tu. Mete na cabeça que a nossa cunhada deve ser a viúva mais séria destas redondezas.

-Será. Tu és homem e vocês costumam saber dessas coisas melhor que ninguém.

Micaela ainda foi dentro buscar a filha, que tinha ficado com Josy. Apercebeu-se que os cunhados lhe fizeram espionagem, mas “saiu por cima”. Afinal, é viúva e livre para voltar a amar.

Gertrudes quis tirar “nabos da púcara”, mas Micaela não estava em hora de fazer conversa, pegou na filha e depois das habituais despedidas seguiu para casa.

Micaela é uma mulher inteligente. Naquela hora poderia não ser feliz na argumentação que teria de usar, face à curiosidade de cunhada. Noutra altura e já com preparação de respostas pré elaboradas, pode enfrentar a curiosidade dela ou de qualquer outra, sem se sentir nervosa.

Olegário está em fase de enchimento anímico e uma nova oportunidade se desenha no horizonte. As saídas nocturnas até ao Abstratus Bar, para conversar com Calixto e que haviam sido suspensas, regressam. As passeatas de reconhecimento do terreno junto à casa de Micaela, gatos pretos e Maria do Tanque vão ser novamente equacionados, para que nada falhe. Então os gatos, é que não podem atrapalhar como da última vez.

Hoje vai ser a primeira saída até ao bar. Gertrudes vai ficar satisfeita, porque é sintomático de melhoria do seu estado de saúde.

- Olegário, hoje vai até ao teu amigo Calixto. Ele é muito agradável. Conversas e quando vieres já vais parecer outro.

- Está bem. Vou. Arranja-me aquelas calças que levei ao aniversário da nossa sobrinha. Ah, e a mesma camisa, também.

- A camisa está aqui. As calças não sei onde as puseste. Que raio de caminho deste às calças, homem?

- Pus tudo aí. Tu é que sabes o que lhe terás feito. Olha lá que não as tivesses deitado ao lixo por engano.

- Ao lixo? Então ia deitá-las ao lixo... Não estás bom.

Com aquelas calças não poderia ser. Olegário sabe como ninguém o destino das calças que havia vestido na “visita” a Micaela e que o contentor do lixo recolheu naquela noite.

Gertrudes arranjou-lhe outras calças e Olegário lá foi até ao bar, ao encontro de Calixto. Partiu com desculpas pré preparadas para as questões que eventualmente o amigo lhe iria colocar.

Chegado ao bar, Olegário cumprimentou os presentes, particularmente o Sr. João da Esquina, proprietário do Abstratus, que lhe dirigiu palavras calorosas de saudação, tendo até ido chamar a mulher, para o cumprimentar também.

A Teresa Violante, sempre com a sua habitual boa disposição, dirigiu-lhe palavras de bom humor, tendo-lhe perguntado se tinha andado às gatas, uma vez que já não o via acerca de duas semanas.

- Oh Teresinha, na minha idade um terço para rezar e uma sopa com um bocado de barriga de porco dentro…

- Você não tem cara de quem se contenta só com rezas e sopas…

- Olhe que é mais olhos que barriga…

- Sim sim... Aparecesse uma trintona… Por falar em trintona, a sua cunhada não há meio de voltar a casar. Aquilo é que é fidelidade, mesmo na viuvez…

- A minha cunhada, já quando tinha o marido a trabalhar em Portugal era uma mulher ajuizada. Agora de viúva, até me parece ainda mais.

- Realmente. Olhe que não sei se me seguraria… Viúva há cinco anos. Ela deve estar como nova, e riu-se.

- Olhe que o seu homem não ouça, e riu-se.

- Oh João, estava aqui a dizer ao Sr. Olegário, que a cunhada dele tem sido uma mulher segura e que não sei se me aguentaria tanto tempo. Até os bichinhos gostam…e riu-se com estridente gargalhada.

- Tem lá juízo mulher. Mas que a sua cunhada já tem sido falada pelo seu bom comportamento, lá isso tem. Poucos se gabam de ter uma mulher como ela.

- O Sr. Olegário, por certo já afiou os dentes alguma vez…Até apostava, dizia Teresa Violante.

- Não. Tenho muito respeito pela memória do meu falecido irmão. Agora, se ela não fosse cunhada…

Neste entretanto chega o Sr. Calixto, que o cumprimentou efusivamente com um abraço.

- Oh grande amigo, que é feito de si? Não me diga que andou às gatas e que ficou todo moído das lutas… e riram-se todos.

- Olhe que também lhe falei do mesmo, disse Teresa Violante.

Olegário insinuou virilidade no semblante que mostrou, em contradição com o que lhe vai na alma. Tenta viver exteriormente em função da fama de garanhão que granjeou, para vencer as fragilidades da sua intimidade. Não quis alimentar a conversa, antes a desviou para que não sentisse desconforto interior. Nesta medida convidou Calixto para beberem uma garrafa de vinho das pequenas e comerem um bacalhau frito, que foi aceite, tendo-se retirado para local discreto, ao fundo da sala, onde habitualmente conversavam.

Calixto perguntou-lhe se tinha havido algum problema de saúde que possa explicar a ausência de quase duas semanas, ao que respondeu que foi por falta de vontade de sair à noite. Simplesmente porque sentiu vontade de ficar por casa.

Rosa Maria vai hoje a consulta ao Dr. Jesualdo. Está um pouco tensa, mas confiante. Romeu e o seu bom aspecto geral inspiram-lhe confiança. A panaceia de todos os seus males não precisava de ser procurada em médicos. O “clínico” certo chama-se Romeu. Bastaria que este lhe correspondesse com alguns olhares mais comprometidos, além da sua habitual simpatia e Rosa Maria já viveria feliz. Este desencontro de desejos e afectos fazem-na sofrer como igualmente sofre Romeu destes mesmos desencontros, que o racional nunca explicará. Muito para além de cada pessoa, o amor nas suas três grandes vertentes estruturais: desejo – atracção – ligação, não são racionalmente orientados. Se o fossem, Romeu teria razões de sobra para amar Rosa Maria. Da mão desta jovem passaram muitos litros de leite e dúzias de pães, que saciaram a fome de Romeu e dos seus irmãos e pai. Romeu irá indefinidamente ficar grato àquela família, e na pessoa de Rosa Maria terá uma amizade que jamais alguém poderá cultivar tão expressiva e sincera.

Por volta das cinco tarde, Rosa Maria avisou a mãe da ida ao Dr. Jesualdo para consulta. Depois do que já havia sido falado entre as duas, a D. Miquelina ainda assim voltou a lembrar-lhe a sua inexperiência de vida e que depois não lhe atribuísse culpas do insucesso da consulta. Rosa Maria respondeu-lhe que estivesse tranquila. Que não iria haver nada de mal.

Dirigiu-se ao consultório e foi atendida pela menina Alice, que lhe perguntou se tinha consulta marcada, ao que lhe respondeu que vinha para vaga.

- Olá Rosita. Por aqui? Procuras alguém?

- Não. Venho para ter consulta.

- Pelo aspecto, a tua doença é de amor não assistido…

- Quem sabe. O Dr. é que me vai dizer qual a origem.

- Espera, que vou lá dentro saber se te pode atender hoje.

- Ok.

- Estás com sorte. Vais já a seguir.

- Está bem.

Entretanto saíram da consulta um casal já idoso e de seguida Rosa Maria foi mandada entrar, por Alice.

- Olá Rosita, por aqui?

- Boa tarde Sr. Dr., venho para consulta.

- Estás magrota, rapariga. Então quais são as tuas queixas?

- Ando com grande falta de apetite, a dormir mal, falta de concentração, respiração descontrolada e suor nas mãos.

- Muito bem. Cá para mim tu deves andar apaixonada… Verdade?

- Sim.

- Eu explico-te: A paixão é um fenómeno que mexe com o nosso cérebro. Há um conjunto de compostos químicos que numa situação como a que tu vives, se desencadeiam. São neste caso a Norepinefrina (que nos excita e acelera o bater do coração), a Serotonina (que nos descontrola), e a Dopamina (que nos faz sentir felizes).

A estes compostos químicos, designamos por neurotrasmissores, que são controlados pela Feniletilamina, que está presente no chocolate.

Esta substância controla a passagem do desejo para a fase do amor e é um composto químico com efeito poderoso sobre nós.

Mas cuidado em comer chocolates. Nada demais.

À parte esta explicação que te fará perceber o porquê desse teu estado e que não é doença nenhuma, podes estar tranquila, vou-te “receitar” uns conselhos que normalmente em casos semelhantes, costumam resolver a contento.

- Gostas de chocolates?

- Gosto sim, Sr. Dr.

- Então deverás comer chocolate, três vezes ao dia. Não em grandes quantidades, que então produziria efeitos perversos. Deves comer um bloco de 50 gramas de manhã e ao almoço e 100 gramas ao jantar. Tens jeito para pintar?

- Algum.

- Então sempre que tenhas tempo livre, pegas numa folha A4, lápis e borracha e desenhas figuras de homens. Vais também pintar ramos de flores em criação livre. Terão de ser coloridas. Daqui a um mês, quero ver pelo menos dez trabalhos, de cada, feitos por ti. Vais também ler poesia, especialmente à noite, para que possas ter um sono mais repousante. De manhã vais acordar sempre bem disposta.

Lembra-te que com estas prescrições, eu não pretendo arranjar-te namorado. Isso é trabalho teu. O que quero é resolver esse teu problema, que te traz em sofrimento interior, percebeste?

- Sim, Sr. Dr.

- Tu és uma jovem em fase de crescimento e que vive uma situação nova. Sei que dá sofrimento. Verás que com o decorrer dos anos, não terias esses sintomas tão acentuados. Nessas fases mais adiantadas da vida a razão controla-nos mais. Não quero dizer que se não possa apaixonar em qualquer idade, mas tudo seria diferente.

- Obrigado Sr. Dr.

- Pronto rapariga, daqui a um mês quero ver os desenhos.

Terminou desta forma a consulta de Rosa Maria. À saída a sua cara já era outra. A confiança parece ter voltado àquela cabeça.

Alice entrou para o consultório, enquanto Rosa Maria aguardava para efectuar o pagamento. Regressada disse: Rosita, o Sr. Dr. deseja-te as melhoras e que não te esqueças de voltar daqui a um mês.

- Quanto é da consulta?

- O Sr. Dr. apenas disse para voltares daqui a um mês. Nessa altura pagarás com as tuas pinturas…e riu-se.

Rosa Maria faz o regresso a casa. A mãe aguarda-a ansiosamente e pessimista quanto ao desfecho da iniciativa da filha.

- Olá mãe.

- Olá filha. Que te fizeram? Vens tão satisfeita. Não pareces a rapariga da manhã.

- Ai não? Está a ver. Eu não lhe disse que sabia o que me fazia falta. A vossa mania de pais, de se julgarem nossos protectores, atrapalha em vez de ajudar ao nosso desenvolvimento.

- Estou para ver. Oxalá me engane. Que te receitou o médico?

- Chocolates, desenhos, pinturas e poesia.

D. Miquelina, desatou em gargalhadas estridentes que se ouvia no outro lado da rua.

- Isso é coisa que se receite? O bruxo Caló de Milagres faria melhor e por menos dinheiro.

- O bruxo fica para si, quando precisar.

- Quanto pagaste? Devia-te ter levado um dinheirão. Apanhou-te com as mãos cheias de dinheiro.

- Está sempre enganada. Não acerta uma.

- Porquê?

- Nem me levou nada.

- Não te levou nada? Bom, oh menos isso. Ele sabe bem que não vai adiantar nada com essa receita.

- Não comece a adiantar prognósticos. Olhe que se pode enganar outra vez.

A verdade, é que ao fim de uma semana, Rosa Maria já estava mais gordinha e sobretudo menos tensa e muito mais concentrada, sem suores frios e sem taquicardias. A mãe via a filha a melhorar mas não dizia nada, achava cedo para tirar conclusões, além de que não lhe era conveniente, dar o braço a torcer.

Rosa Maria, à noite, sobretudo à noite fazia os primeiros esboços de figuras masculinas, entre o sossego do seu quarto. Fazia tudo a lápis para poder apagar e refazer, até encontrar o desenho cada vez melhorado. Era assim todas as noites. Os desenhos de flores também se iniciaram. Estes eram de criação livre. Ora desenhava rosas ora margaridas ou malmequeres. Mas as flores que ela iria fazer com mais carinho eram amores-perfeitos. Nestas flores iria pôr o máximo de empenho e concentração. As poesias, ainda não as iniciou com as leituras. Quer se informar melhor, das mais recomendáveis. Ouviu falar de uma autora portuguesa, de nome Florbela Espanca. Promete conhece-la e se gostar vai fazer-lhe companhia à mesinha de cabeceira.