O Homem sem Histórias

O Homem encontrava-se sentado em um dos muitos bancos de madeira da praça. Jogava alpiste aos pombos e os olhava disputarem. Olhou para o outro lado da rua calçada e viu um outro homem, com aproximadamente a mesma idade que a dele, cercado de algumas crianças. Elas se sentavam no chão e olhavam atentas para aquele senhor. Ele, com sua vasta barba branca, transcendia aquele pacífico dia, e voltava à sua época, traduzia a estranha linguagem do passado para a compreensão rala do presente. E as crianças deliravam. Sorte daqueles que não perderam o dom infantil de transcender o tempo, assim como o espaço. O homem das histórias, como um pintor, pincelava palavras no ar que, ao entrar nas pequenas cabeças das crianças ao seu redor, transformavam-se em pinturas vivas, impressionistas talvez, porem muito mais fiéis que qualquer retrato acadêmico.

Ele regia uma orquestra de suspiros e exclamações com gestos exagerados, aceitos com a maior inocência do mundo pelos músicos sentados em sua volta. O Homem não ouvia nada disso, estava completamente alheio. Depois de fixar os olhos por algum tempo nessa cena, voltou a observar os pombos. Faziam apenas um barulho murcho na sua disputa frenética pelo alpiste. Teve nojo daquilo. Cansara de ver empresários gananciosos em suas eternas disputas egoístas com todos. Lembrava-se, inclusive, dos ternos pretos, que também cobriam os pombos, mas que por baixo escondiam todo o tipo de doença. Pingou o colírio que carregava consigo, pois seus olhos constantemente estavam secos.

Cansou-se e olhou para o senhor do outro lado da rua novamente. Mais uma ou outra criança havia se juntando ao redor do senhor. Ele com certeza era muito simpático, e demonstrava em seus olhos o prazer de simplesmente estar fazendo os outros felizes. Pois de comportamento o Homem entendia tudo: foi necessário aprender a arte da manipulação para obter a ascensão que ele tanto ambicionava na carreira. Mas ele via claramente que o homem à sua frente não manipulava. Conduzia. O homem das histórias não apontava o caminho para as crianças, as pegava por suas mãos e as conduzia no caminho mágico daquela história que passava por seus olhos.

O Homem não sabia o que era aquilo. Já não sabia mais o que era fazer algo que não estivesse suportado por algum interesse. Simplesmente tudo deveria ter uma utilidade, do contrário, de que adiantaria? A não ser que nessa ocasião o puro e simples desperdício de tempo fosse útil. Aliás, já estava descansado o suficiente – este era o motivo por estar ali sentado na praça – e seu tempo começava lentamente a ser desperdiçado. Quando ameaçou se levantar uma moça parou em sua frente.

- Posso me sentar? – perguntou com um sorriso e já foi se sentando ao seu lado como se tivesse ouvido um “sim” como resposta. Sem opção, o Homem emitiu um som qualquer, significando um sim áspero, e moveu-se um pouco para o lado, dando espaço para a moça sentar ao seu lado.

- É incrível como as crianças gostam dele, né? Quem dera eu poder ter metade dessa mágica que ele tem para falar! – O Homem, que demorou um pouco para perceber que a moça se dirigia a ele enquanto olhava para um outro lado qualquer, acordou de repente.

- Perdão? – falou com um sorriso embaraçoso, mas mesmo assim muito dissimulado.

- Aquele senhor – apontou para o Homem das Histórias, que discursava para a platéia hipnotizada – é meu pai. Você deve ter ouvido suas histórias também. Ele fala tão alto que até o pessoal do outro lado da rua deve estar ouvindo.

- Realmente ele fala bastante alto – retrucou o Homem, como quem não queria muito papo.

- Sabe, quando eu era pequena ele sempre me contava muitas histórias, essas mesmas que ele está contando. Já ouvi todas elas mais de mil vezes! Ele sempre dizia...

Nesse instante o Homem se indagou porque diabos aquela mulher estava falando aquilo. Ele não tinha feito uma pergunta sequer. Não havia demonstrado, em nenhum momento, que tinha qualquer interesse pela infância da moça. Ele mal lhe dera permissão para que sentasse ao seu lado. Mas o senhor do outro lado da passarela o intrigava. A mulher continuou.

- Ele sempre dizia que o importante na vida não é construir o futuro, mas sim construir o passado – e a face da moça tomou uma feição mais séria, como se estivesse ocupada demais com seus pensamentos para que se preocupasse com seu rosto – O resto é conseqüência. Ele dizia que o futuro não existe, ninguém conta histórias do futuro, a não ser o mentiroso e o enganador.

O Homem olhava agora fixamente para a moça. Lutava para não cair em uma reflexão interna ainda mais profunda que a da moça. Não gosta de pensar em nada que fosse muito além do material. De fato, nada que fosse o mínimo além do material lhe interessava. Mas neste pacato domingo algo se abateu sobre ele. Foi tentar dar continuidade ao assunto, mas quando ia falar algo, a moça se levantou.

- Ah, ele terminou! Me desculpe, senhor, eu estava só pensando alto. É que isso me trás tantas lembranças...

- I... imagine! Queria eu que pessoas conversassem mais com desconhecidos. Principalmente assuntos tão interessantes! – disse o Homem com um sorriso já não tão dissimulado.

A mulher apenas sorriu e se dirigiu até o senhor no outro banco, que se levantava agora, e se despedia de todos os pequenos. Todos eles imploravam para o Homem das Histórias ficar e contar mais uma história. Só mais uma! O maestro parou e todos instrumentos tocavam em dissonância, cordas, sopros e percussões. Todos implorando por mais!

- Meus amigos, eu não posso mais ficar aqui com vocês! Afinal, se eu não andar por muitos lugares, eu não terei muitas histórias pra contar, não é? Então eu tenho que me apressar! – disse o Homem das Histórias. Aquilo fez completo sentido na cabeça das crianças, mas não adiantou muito. Elas queriam mais histórias. O Homem das Histórias virou-se e viu o Homem olhando perplexo.

- Porque vocês não pedem praquele moço contar uma história pra vocês? Aposto que ele tem ainda muito mais histórias que eu! – disse o Homem das Histórias enquanto olhava para o Homem com um olhar suplicante, porém simpático. O coração do Homem disparou quando percebeu o que estava para acontecer. Uma multidão de olhinhos brilhantes o observava agora.

- O senhor conta história pra gente? Conta? – disse uma criança enquanto já se aproximava. As outras crianças a seguiram. “Conta, moço, conta!”. “Por favor?”. Quando elas se aproximaram do Homem, todos os pombos fugiram afoitos levando consigo suas doenças e sua gula. Ele não sabia o que fazer. Via um rio humano de inocência se aproximando e, atrás dele, o senhor das histórias sorria para ele enquanto caminhava para longe com sua filha.

- Tudo bem, tudo bem – disse o Homem em meio a pigarros. Todas as crianças se calaram. Todas o olhavam. Olhos como poços sem fim de pura imaginação. Cada palavra que entrasse dentro daqueles pequenos ouvidos seria matéria-prima na construção de futuros homens. Porque a matéria prima do corpo é a comida, e a da mente é a magia.

- Bom... – a incerteza do Homem transparecia.

- Começa, tio!

- Eu estou pensando em alguma coisa legal...

Mas o Homem não estava pensando em história alguma. Que história teria ele para contar? De como acertou em cheio ao investir todas as suas finanças em um mercado de alto risco? Como ele acertou, de novo, ao reestruturar toda a companhia da qual era diretor, aumentando o faturamento consideravelmente e conseguindo reconhecimento em seu meio hipócrita? Talvez ele pudesse contar como se casou três vezes e abandonou um filho – com sua primeira mulher – pois o trabalho ocupava todo seu tempo. Nada daquilo interessava aos pequenos. Eram todas histórias pra adultos. Relatórios.

Nada que ele fez poderia ser de qualquer interesse para aquelas jovens mentes férteis. Talvez então algo que outras pessoas fizeram, algo que já lhe foi passado como história, algo que foi matéria-prima para sua própria mente. Porém nada lhe vinha à cabeça. Nenhuma história de pescador embalada pelo colo do vovô. Nenhuma história de terror no acampamento. Nenhuma história secreta de adolescência. Até porque essas, mesmo que existissem, não poderiam ser contadas.

Mas não existem. Nenhuma delas. O Homem já não sabia há quanto tempo estava mudo olhando para as crianças no momento em que percebeu que nunca alimentou sua mente. Alimentou sim seu cérebro, mas nunca sua mente. Já faz longo tempo que ela morreu de fome. Com pesar e vergonha, falou às crianças.

- Desculpem, crianças. Não tenho nenhuma história pra contar.

O Homem nem percebeu o desapontamento das crianças com ele porque só conseguia ouvir décadas de vida de despedaçando. Todos os instrumentos silenciaram. O concerto acabara, e sem aplausos. Escorreu uma lágrima, que caiu bem em sua mão.

- Colírio... Antes eu tivesse mais lágrimas pra hidratar meus olhos – o Homem disse para si mesmo quando, de súbito, um garoto sentou-se ao seu lado.

- Tio, você está chorando? – disse o menino, que não foi embora junto com os outros.

- Não, eu...

- Você se machucou? É por isso que você não quer contar histórias?

- Garoto, por que você não foi brincar com seus amigos?

- Porque eu ainda quero ouvir uma história? Eu adoro histórias!

- Ah é?

- É!

- E quem te conta todas essas histórias?

- Um montão de gente!

- Mas acontece que eu não tenho nenhuma história pra contar pra você, menino.

- Por que não?

- Porque eu não conheço nenhuma, garoto.

- Eu conheço várias!

Abriu-se uma porta. Quem sabe sua mente estivesse desnutrida, mas não morta. Quem sabe ainda era tempo de crescer. Crescer de verdade. Talvez sua língua ainda fosse sensível ao gosto da magia, que nunca sentiu. Aprende-se muita coisa na vida, exceto como ser uma criança. Ainda era tempo de aprender. E ninguém melhor para ensinar do que uma criança.

- Você pode me contar uma?

- Posso!

- Então me conte! – o Homem se acomodou no banco. Aquele domingo era, sem sombra de dúvidas, o dia mais vivido de sua vida. Talvez fosse o primeiro dia de sua vida. Não sabia definir ao certo, mas estava ávido pela nova vida que começaria a partir do momento em que o menino começasse a contar a história. E foi o que ele fez.

- Bom, era uma vez...