O último plantão

O dia de inverno chegava à noite, aquele foi o antepenúltimo plantão de Stanislaw Balner como médico na enfermaria de pediatria no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Aposentadoria à vista, possibilidade de poder se dedicar apenas ao consultório em Madureira. O hospital não atende emergências, mas elas aparecem pontualmente, a Saúde – bairro do centro da cidade – tem população que sabe que não será barrada na porta, eventualmente, surgem pacientes vindos de cafundós. Relaxado, Stan, como é chamado pelos íntimos, deitara-se na cama do quarto de repouso dos médicos. Lia alguns poemas de Joseph Brodsky, quando Ana, a residente entrou e disse: Dr. Balner chegou uma asma, o hemograma está normal e o raio X também, posso prescrever nebulização e depois liberá-la para a casa? Naquele momento, antes de levantar-se, estava deitada com o médico a medicina, sua companheira das noites e dos dias durante as horas de labuta e de descanso, homem da geração dos anos setenta do século XX, tempo em que não se dispunha ainda a gama de exames complementares de todas as naturezas capazes de facultar aos profissionais de saúde, médicos, informações científicas de forma fria. Isto é, em detrimento da semiologia médica, de quando o único recurso era o exame clínico, embora não se desconsiderasse a importância dos exames complementares.

A jovem Ana era e deve continuar a ser uma bela moça, alta, de cabelos negros e corpo esguio, escondido sob o jaleco reto. Seus braços torneados. Sempre muito educada e solícita, em resposta à pergunta se podia prescrever a nebulização para a asma e depois liberar o pequeno paciente para casa; ouviu como resposta: A criança veio com a asma? Sim, respondeu a doutora. Então, vou lá examinar a criança, qual o nome dela? Está na ficha de atendimento, digo já, já, ao senhor. Percurso rápido entre o quarto dos médicos e o hall de entrada da enfermaria de pediatria. O médico se dirigiu a mãe da criança: Qual o nome da senhora? Ester. E o do menino? Joãozinho. O Balner ajoelhou-se à frente do guri. Olhou-o dos pés à cabeça, aprendera com seu professor Edilson Rigotto a fazer isso. Olhe seu paciente da cabeça aos pés, dizia o mestre.

Olhe os pés do Joãozinho, Ana, estão defletidos. De fato, os dedos dele apontavam para o chão. Segurada a planta do pé e levado o pé aos noventa graus em relação à perna, largado ele pendia, sem força, para o chão novamente. O paciente está hipotônico, doutora. E o que ocorria com os pés ocorria com os braços. Esse menino está com algum problema neurológico, vamos interná-lo, é importante que seja avaliada por um neurologista amanhã de manhã. Está bem, chefe, disse Ana, vou chamar a enfermeira para providenciar o leito.

E assim foi feito.

Em virtude de o plantão ser uma vez por semana, o médico só voltou uma semana depois. Assinou o ponto e foi tomar café. Mal entrou na enfermaria, dona Ester veio a seu encontro. Doutor, o senhor estava iluminado, se meu filho tivesse ido para a casa teria morrido, ele teve uma parada cardíaca na manhã após o seu plantão. Doutora Ana também se aproximou. O que houve, Ana? Joãozinho foi para a UTI pediátrica. Teve meningite viral. Dona Ester lascou um beijo na bochecha do Balner. Obrigado, doutor, muito obrigado. Ele vai ter alta amanhã.

À noite, o médico não teve tempo de dizer para o pai da menina chegada com sintomas de gripe que o vírus da gripe é um agricultor, Balner usava essa metáfora para explicar que como agricultor o vírus arranha a garganta, mas que diferentemente do agricultor ele, o vírus, não escolhe o que vai plantar, isto é, o agricultor escolhe se vai plantar arroz ou feijão, o vírus ao arar a garganta não garante se vai crescer alguma coisa na garganta arada, pois pode não crescer nada, pode crescer bactéria ruim, causando amigdalite, que pode ser viral ou bacteriana, sendo que para viral não há remédio específico, podendo se prescrever antitérmicos, colutórios, e que, de imediato, não se deve prescrever antibióticos, porque ele, o antibiótico, pode selecionar a flora de bactérias menos agressivas e matá-las, impedindo-as de competir com bactérias mais agressivas que, assim, crescem mais facilmente, podendo causar doenças mais graves.

Aliás, uma gripe pode evoluir para meningite viral ou bacteriana, a partir da porta de entrada da garganta arada, viral como aconteceu no caso do Joãozinho. Podendo também evoluir para miocardite. Entre outras complicações. Balner, em linguagem a mais simples possível, sempre explicava isso, porque ouviu muitas vezes pais de pacientes dizerem: o médico disse que era só uma gripe, agora meu filho está com meningite! Então, os pais de crianças com gripe sempre saiam do consultório sempre iam para casa com a receita de medicamentos para os sintomas, sabendo que o filho poderia ter essa ou aquela complicação, e principalmente, sabendo porque elas poderiam acontecer, embora não fossem comuns de acontecer na maioria dos casos.

Muito agressivo, o pai disse: cuida da minha filha, senão semana que vem volto aqui e mato você!!! O homem parecia um touro na arena, mas a arena estava vazia, Balner olhou para o rosto dele com espanto e terror. Mesmo sabendo ser aquele o seu penúltimo plantão, antes da aposentadoria, ainda voltaria ao hospital mais uma vez e sentiu a ameaça.

Certa vez, numa madrugada, atendeu um menino com amigdalite e febrão, diagnóstico fácil, placa de pus nas amígdalas, deitou o menino na maca, fez o exame clínico completo, calmamente, orientou a mãe sobre o antibiótico, prescreveu uma injeção dipirona, consulta rápida e honesta. O pai, irritado, por ter interrompido seu sono, disse: só isso doutor? Claro que não, sente-se por favor, enquanto a mãe leva o seu filho para receber a injeção de antitérmico, o senhor mora no bairro? Sim. Tenho uma filha da idade do seu filho, o senhor pode me indicar um clube onde possa levar minha família aos fins de semana. Sim, o Campo Grande Tênis Clube. Onde tem um teatrinho para crianças? Lá perto da Churrascaria do Gaúcho. E as perguntas e respostas durariam mais, se o pai da criança não tivesse dito: já entendi, doutor. Oras, acordara, passara uma água no rosto, atendeu a criança prontamente, como o camarada vem perguntar: só isso doutor?

Que idiota sentiu-se o Balner! Em vez de me irritar, deveria ter aproveitado a oportunidade de explicar os motivos corretos da mãe em trazer o filho de madrugada, deveria ter dito ao pai que a amigdalite pode evoluir para glomerulonefrite, e que, quanto mais cedo medicado, menos chance para a criança ter complicações, afinal uma bactéria é uma bactéria. Mas o que dizer para um touro bufando em volta da filha em atendimento? Como se cercasse o médico, pronto para a investida, ou preparado para voltar na semana que vem e matá-lo. Uma complicação tem implicações estatísticas, ela pode ocorrer em um em um número de casos, mas o que adianta dizer para familiares de uma criança que nasceu com uma síndrome genética, que um caso como esse só ocorre em um para dez milhões de casos? Para os familiares o caso é único, porque aconteceu com um ente querido.

O mesmo aconteceria se a filha do touro feroz tivesse uma complicação, e o médico se sentiu como um caso único, cheio de medo. Pai sua filha tem uma gripe, o vírus da gripe é como um agricultor... Não me venha com conversa, médico. Se acontecer algo com minha filha volto semana que vem!

Está bem, vamos medicá-la.

Não se faz profilaxia da meningite bacteriana em todos ou em qualquer caso de gripe. A menina tinha um pouco de coriza, garganta vermelha, sem pus. Normalmente, não se faria uso de antibióticos profiláticos nesses casos. Mas há excepcionalidades. Casos hilários e outros muito tristes, assassinatos de médicos por motivos fúteis são noticiados na imprensa. Divagação: Balner lembra do caso do bandido morto, provavelmente infarto, trazido por seu grupo ao pronto-socorro. Oswaldo, o médico mais antigo do plantão, imediatamente, entrou com o morto na sala e disse: não podemos dizer que ele está morto! Enfermeira, gritou traga o soro. E começou um teatro de ressuscitação cardiopulmonar do cadáver. Intubação: adrenalina! E deixou cair uma cuba no chão como sonoplastia. Massagem cardíaca. Ritual que durou cerca de dez minutos, antes de ser aberta a porta e dito aos acompanhantes: fizemos tudo que era possível, infelizmente, o Luís faleceu, meus sentimentos. Apertos de mão, obrigado, doutor.

O médico precisa se proteger. Protegida contra eventuais complicações bacterianas, havia a possibilidade de complicações virais, meningite, miocardite, como já foi falado, sem esquecer da síndrome de gullain-barré. Na semana seguinte, o plantão foi tranquilo. Era o último plantão de Stanislaw Balner, novamente, a residente Ana compareceu à enfermaria. Conversou e disse: eu nunca vou esquecer o caso do Joãozinho.

Fabio Daflon
Enviado por Fabio Daflon em 26/07/2022
Código do texto: T7568229
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