Flôr do Pântano

Corria o ano de 1970 e era como se a vida tivesse começado para ele naqueles dias, entrando de vez na fase adulta da vida que lhe mostraria algumas surpresas.

Ela se chamava Olívia e era no mínimo dez anos mais velha do que ele, esse tal de fosse um dos motivos de só o chamar de Menino, mas com tanta ternura e meiguice como era de se esperar vivendo num lugar como aquele e isso o surpreendeu, geralmente ela começava... -Venha Menino, me pague uma cerveja. Você não é homem de cabaré vamos dançar um pouco ja passa da meia noite e de manhã vc vai trabalhar.

Em plena segunda feira e o tom de amargura e tristeza na voz, com a história contada pela enésima vez sob a luz vermelha do salão, porém sem o menor traço de raiva ou rancor teria lá uns 36 , 38 anos de idade e uma beleza raramente vista em locais como aquele. Vulnerável ao extremo e com um coração de ouro e ao mesmo tempo tão forte, vivendo no lugar errado o verdadeiro significado da palavra contraste.

Tinh um porte altivo, linda essa era a palavra certa para ela, talvez ela conseguisse sobreviver e voltar a sua sua cidadezinha do interior, sem chegar ao fundo do poço. Porque a sarjeta fede e machuca e são poucas as que conseguem sair dela com algum brilho e o Menino tinha esperança que ela fosse uma destas poucas pessoas.

Mas um dia ela chegou perto dele e falou numa tristeza de dá dó...

- Não Menino,hoje eu não quero beber nada, só uma água e você pode dançar e conversar um pouco comigo?

Depois da segunda música o choro doloroso das lágrimas na altura do ombro dele, .as com um nó na garganta quê o impedia de falar qualquer coisa, somente afago carinhoso na nuca dela pra diminuir a tensão e ele com um sentimento de infinita impotência, talvez ela já desconfiasse que não teria muito tempo por causa da idade o do tipo de vida que levava desde que foi expulsa da terra natal pelos seus próprios familiares.

Porque o futuro era uma incógnita e a vida uma escada que nos leva a ele, subindo um degrau de cada vez. Alguns as chamam de " mulheres de vida fácil", mas em que é fácil a vida destas mulheres? E aos vinte e pouco anos o Menino descobriu como a vida pode ser madrasta para algumas pessoas.

E ele a comparar o Cabaré maís famoso da sua cidade com os círculos do inferno de um livro que ele tinha lido uma vez, o de a maioria das almas eram dignas de piedade e compaixão mas poucas conseguem alcançar os círculos do purgatório, menos ainda o paraíso.

Tornaram se frequentes as visitas a amiga que ele julgava sem sorte na vida mas era tão digna e pura de coração como uma florzinha que nasce no pantano. E agora ele só tinha uma certeza. Nunca conseguiria fazer amor com ela,embora ela fosse a mulher mais linda que ele já tinha visto , ambos sabiam que se isso acontecesse por outro sentimento mais puro que a amizade e uma amargura infinita tomou seu coração a partir daí.

Com o passar do tempo vieram os banhos de rio a noite, as confidências e os pequenos sonhos que se esvaziam com a permanência dela no cabaré e a idade avançando inexoravelmente. Alguns dizem que; a vida só é dura para quem é mole, porém algumas pessoas passam por adversidades com resignação e dizem que é o destino. E um belo dia ela o surpreende com uma afirmação categórica.

- Eu vou para São Paulo, Menino! Não fique triste nem com raiva de mim, se eu soubesse fazer qualquer coisa ou pelo menos ler, eu poderia deixar esses lugares. Eu tô gostando de você e desse jeito a gente não tem futuro.

Olha, vamos voltar pro interior Oli... Ele a chamava assim de um modo todo carinhoso.

- Eu posso tirar uns 15 dias de folga, acho que dá pra ajeitar as coisas por lá. Depois você fica em casa e eu volto pra trabalhar e acertar .unhas coisas também.

-Nao eu não posso aceitar isso de você e nem vc ligar para casa, você sabe como são tratadas as meninas que dão pra quenga lá pelos sertões, pelos próprios parentes, eles não aceitam aquela mancha na família e dão graças a Deus quando elas somem do lugar.

-Eu sinto falta dos finais de semana na minha cidade, quando eu podia ir á missa nos domingos e tomar um sorvete na praça onde todos falavam comigo.

-Estou ficando velha pra essa vida e não quero a acabar como a Mariléia que ficava semanas sem ganhar nada por causa da idade, os homens não a queriam mais e nós tinhamos que pagar as refeições dela, senão ela passava fome. Você acha que ela morreu de acidente?

Foi não meu amigo. Já estava entrando na terceira semana que ela fazia dinheiro nem pra pagar o quarto aí Seu Dino chamou ela e disse que aquele seria seu último final de semana na casa, e que na segunda-feira ele queria o quarto desocupado.

Também ela não está a mais aguentando beber, quando me lembro ainda choro. Naquele dia ela não quis o marmitex do almoço e disse a Isa pra gente não se preocupar com ela que a noite ela iria embora. E quando a gente viu, lá estava ela embaixo de um caminhão nomeio da estrada, morta.

Sabe Menino, eu acho que ainda tenho alguma chance, antes que os homens deixem de me procurar e comecem a me olhar com desprezo e pena. Obrigada pelo livrinho da quevocé me deu, a Marta e a Antônia vão comigo elas disseram que vão me ensinar a ler,eu nem sei se posso te falar tudo isso que estou falando, mas se cuide, não transe sem camisinha principalmente aqui no cabaré, desculpe, é que a Fátima me disse que você e aquele a.igo seu ajudaram ela e outras meninas lá naquela cidade de onde vocês vieram e a gente não quer que nada de mal aconteça com vocês e você diz. Esse mu do não é tão grande e a gente se vê por aí.

Se Deus quiser vai dar tudo certo, mas eu queria mesmo era poder voltar pra casa, já passou da meia noite e amanhã você vai trabalhar, boa noite e fica com Deus.

No dia seguinte e nos outros dois dias ele não passou no cabaré, foi do trabalho pra casa tentando encontrar uma maneira de ajudar sua amiga. Quando na quinta-feira chegou ao cabaré por volta das 21 horas, a Isa veio toda chorosa falar com ele.

- Menino a nossa amiga foi embora, chorou muito durante o dia e deixou isso pra lhe entregar.

Era um bilhete quase uma carta que a Isa mesmo escreveu. Colocou o papel no bolso,e pensativo botou a mão no ombro da Isa e falou.

- Vamos tomar um conhaque!

- Mas você não bebe conhaque!!

É mas hoje vou tomar um e dormir.

- Se quiser dormir aqui, a cama dela está vazia eeu juro que deixo você dormir. Não vai ler o que ele disse?

- Não minha amiga, depois . Não estou com cabeça pra isso, obrigado boa noite e fica com Deus.

Ao chegar em casa abriu o bilhete, eram quase as mesmas palavras que tinham conversado alguns dias antes, no final dizia.

...eu vou rezar por você e não te esqueça de mim, não se esqueça da sua amiga Oli .

Fica com Deus.

Depois daquele bilhete ele tentou se afastar dos Cabarés mas o gosto pela vida noturna levou o Menino a uma peregrinação pelos cabares afora e conhecer algumas figuras singulares. Algumas mulheres cultas e que não precisavam estar naquela vida mas, cada cabeça é um mundo e além do mais os Cabarés tem seu próprio ritmo de vida o que os formam um mundo totalmente a parte, inclusive da sociedade e da lei.

Ele encontrou também algumas almas gêmeas na simplicidade da sua amiga, algumas dignas de admiração outras de pena e ajuda, o que nem sempre conseguem. O tempo passou e fecharam o Cabaré, e agora por onde andaram aquelas meninas?

É bem verdade que algumas dão a volta por cima e conseguem sair daquela vida mas a grande maioria tem um fim trágico ou mais deprimente que a vida que levam e dificilmente retornam aos seus lugares de origens, quando voltam o que raramente acontece.

Madalenas, putas, raparigas, quengas ou sejam lá como as chamem são pessoas, seres humanos como outros quaisquer, só trabalham e sobrevivem de outra maneira então porquê vê las com outros olhos?

Lembrando as raparigas da sua infância no seu interior por exemplo, elas tinham o respeito das senhoras casadas e até mandavam algum moleque avisar...

...moleque vai na casa de Dona Fulana e avisa que o senhorzinho já está bêbado aqui.

Muitas iam as missas e procisões nos domingos, talvez por isso tenham ganhado a simpatia das pessoas do lugar. Lembra as moças espalhafatosas do Maciel, da Ladeira da Montanha e Praça da Sé exporem seus dotes e qualidades nas janelas dos antigos casarios.

Ou como diziam lá no Sul, "as vacas da Paulista" que desfilavam pelos passeios apreensivas com medo da polícia e até mesmo as "mariposas ' do Cine São José e do 69.

E perdido em pensamentos a imaginar como seriam as cidades sem seus Cabarés boates,, bordéis e similares. Mesmo assim a sociedade finge que não os vê, que não sabem das Olivias, Martas, Isabeis , Madalenas...

O despertar pra realidade o pegou num amanhecer frio de maio depois de um final de semana na Paulista, aquele corpo miúdo estendido no asfalto frio indicava o final de uma vida curta e a busca louca por um pouco de paz e felicidade. Aquele ser humano violado mesmo depois de morto por um animal que chafurdava no seu decote vermelho a procura do pouco que tivesse ganhado durante a noite, ao ver o se rosto pálido e anjelical o Menino teve certeza de que ninguém colheu aquela flor antes que chegasse ao fim seu tempo de vida no pântano. Ao reconhecer sua amiga naquele ser humano maltratado deixou o profundamente ferido, ele que tinha alimentado a esperança de ela conseguisse alcançar e galgar os degraus do purgatório agora tinha certeza que os círculos do inferno foram demais para ela. A dor pela perda da amiga mostrou que já era tempo de abandonar os Cabarés da vida, porquê eles nunca mais seriam os mesmos, mas a vida continua e o Menino lembrou que quando era criança alguém lhe dizia que até os animais quando morrem suas almas vão para o céu.

E agora ele se pergunta se...

...não existe um céu para as flores do pantano ou pelo menos um lugarzinho de paz em algum paraíso??

Fernando Alencar

28/03/1979

Camaçari/ Bahia

Fernando Alencar
Enviado por Fernando Alencar em 09/11/2022
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