Lendas da Chapada - Livro 1: Um Hoje de Cada Vez

I

O Chamado

— Tudo o que você viveu até este momento deveria ser suficiente para lhe fazer compreender que esse caminho te conduzirá ao fracasso. Insistir nesses devaneios de novas possibilidades sempre resultou em caos para você. Parece que lhe falta maturidade e preparo para mudar essa realidade. Por vezes, tenho a impressão de que os desafios dos últimos tempos não lhe serviram de aprendizado algum — disse, em alto e claro tom, como se fosse um sábio guardião das eras.

— Não dê ouvidos a ele. Ele não tem consciência do que está dizendo. Ao falar dessa forma, assume o papel de grande mestre, detentor de todas as verdades. Você sabe que é preciso estabelecer um propósito e viver como se já o tivesse conquistado. Disciplina, foco e dedicação diária! Você conhece a verdadeira receita! — enfatizou, como se o tempo não permitisse mais delongas.

A pressão que enfrentava era avassaladora. A angústia, insuportável. No entanto, minha única certeza era que não havia razão para permanecer como estava. Não era uma questão de desistir ou chegar ao fim da linha. Era algo indescritível, sem nome, certeza, preço, fórmula ou direção. E, definitivamente, era uma questão de viver um dia de cada vez, em uma realidade onde o Passado e o Futuro não tivessem domínio. Mesmo diante de todas as incertezas, cobranças e dores, e, é claro, do mais implacável dos adversários à espreita: o meu ego.

— Meus caros, lamento profundamente, mas creio que hoje os decepcionarei. Essa tríade insana chega ao fim aqui e agora — declarei, antes de me levantar, reunir poucos pertences e sair do quarto escuro do tempo.

O fim de tarde avermelhado me dizia que aquele lume de estrelas que tanto me impressionava, logo chegaria. A luminosidade da noite de Alto Paraíso de Goiás, que tanto me encantara nas visitas anteriores, agora seria degustada lentamente. E era muito provável que ela comporia um belo pano de fundo para todas as perguntas que eu carregava em minha mochila da vida. Eu havia chegado à Chapada dos Veadeiros - agora em definitivo, há pouco mais de duas horas, depois de uma viagem confusa e cheia de inquietações.

Deixar para trás o conforto do “meu ninho” era desafiador, mesmo para um homem de 46 anos e cheio de experiências. As velhas imagens dos brindes com amigos do peito, das incontáveis rodas de samba na Portela e das muitas paixões arrebatadoras, faziam companhia ao ciclo desconhecido que ora se descortinava. A troca da cidade maravilhosa pela mística região do cerrado brasileiro era uma resposta a um chamado que vinha não sei de onde, nem como e nem porquê.

Calmamente, o espetáculo das luzes do céu da Chapada se formou sobre minha cabeça e se sobrepôs a qualquer pensamento. Eu apenas olhava aquele presente celeste feito um menino cheio de perguntas e ávido de entendimento. “Que céu é esse, meu Pai?” — indagava-me.

Na velha casa emprestada, a mobília era pequena e não contava com gaveteiros ou armários de quarto. As roupas ainda iriam permanecer por um bom tempo em malas e mochilas. Na ampla cozinha havia apenas um velho frigobar e um pequeno fogão de quatro bocas. Ao menos, a cama parecia confortável e resistente. Mas eu não estava em condições de reclamar de nada. Foi uma decisão minha. Deixei minha cidade natal, amigos, sociedade numa agência de publicidade e minha produtora de livros. Tudo era passado. O motivo? Eu não sabia responder. Apenas estava claro que nas visitas anteriores à Chapada dos Veadeiros, eu percebi um chamado em minha alma. Um chamado que aconteceu em um momento de vida confortável, mas que eu achava tudo era sem sentido. Logo eu, um sujeito urbano e amante das coisas intensas.

Na verdade, a única certeza que eu tinha era aquela - a mesma que eu carregava desde a adolescência: “É só no caminho que a vida acontece”.

Sem resposta para outras tantas perguntas, apaguei as luzes da casa e degustei cada devaneio da primeira noite estrelada. Naquele momento, era tudo o que eu tinha.

Na manhã seguinte acordei com alguém me chamando no portão. Abri a porta ainda um pouco grogue de sono, quando uma conhecida sorriu com um embrulho nas mãos:

— Casa feliz é aquela que pode receber os amigos para celebrar. Trouxe umas coisinhas para você começar seu novo ciclo — afirmou Tarsila, antes de me entregar o pacote com pratos, copos e talheres, e seguir na sua sina de tornar mais felizes as manhãs alheias.

Não tive tempo nem mesmo de tirar as coisas da caixa quando escutei um barulho de um carro estacionando em frente a casa. Solano já entrou pela casa com seu jeito desengonçado trazendo mais presentes: leiteira, garrafa térmica, coador, café, leite, pão e outras coisas.

— Um carioca sem café na primeira manhã do resto de sua vida, pode ser um mau presságio — disse, espalhando as compras sobre a pequenina mesa daquela ampla cozinha.

Observei as horas daquela primeira manhã na posição de ouvinte e observador. Aquele movimento de pessoas atuando para tornar minha nova vida mais fácil, ao mesmo tempo me emocionava e intrigava. Porque todos queriam contribuir com o pouco que tinham? Que fio ligava todas aquelas pessoas que um dia chegaram na Chapada dos Veadeiros? Qual seria o meu papel nesse cenário?

No avançar das horas, resolvi dar uma volta pelos poucos e pequenos comércios da cidade para fazer as minhas primeiras compras. Ainda com sacolas nas mãos, resolvi parar num pequeno café. Depois de fazer o pedido, sentei-me à mesa, e passei a observar um grupo de pessoas que conversavam numa mesa próxima.

— Tenho a certeza de que fiz a escolha certa. Sinto que existe um chamado aqui neste lugar. Acho que o futuro me trouxe até aqui e que logo começarei a ter as respostas que procuro — disse Sarah, uma mulher de cerca de 30 anos, eufórica com sua recente mudança de vida.

Aquele comentário me fez pensar sobre a nossa perspectiva em relação ao tempo e à sua ação. Porque o futuro teria direcionado os passos daquela mulher? Não teria sido o passado através da força ancestral? Ou nada disso teria relação com o tempo e sim com as asas do destino de cada um?

Teci um paralelo entre o momento de Sarah e a minha decisão de deixar para trás, tudo o que havia de certo naquela “minha outra vida”. A disposição de romper com as falas do passado e do futuro em minha cabeça, obedeciam a minha velha certeza inata de que a vida era criada no hoje e no agora. Tinha absoluta clareza de que eu não sabia o caminho, mas que ele estava lá à minha espera.

O silêncio do meu pensar foi interrompido por Sarah:

— Você acredita que o futuro se encarrega de nos chamar para irmos de encontro ao nosso destino? — perguntou-me, com um olhar de curiosidade, acompanhado por suas amigas.

Desconfortável, tentei disfarçar o incômodo por ser interrompido em minhas conjecturas para tratar das reflexões alheias. Afinal, assim como eu, Sarah era apenas uma entre as muitas pessoas à procura de respostas.

— Não… sinceramente, acho que o futuro não existe. É apenas uma ideia que a gente coloca lá na frente. Desconfio que o destino é o resultado do que a gente faz agora — respondi, para nítido desmonte das feições de alegria e esperança das ocupantes da mesa.

— Como assim, não existe? — perguntou com um pequeno indício de inconformismo, com a minha resposta.

— Você acha que tudo que vivemos é resultado da força ancestral, não é isso? — emendou de imediato, uma das amigas de Sarah.

— Não, não. Acho que o passado não tem força porque também não existe. Ele é apenas um conjunto de lembranças e experiências que moldaram o que somos agora — respondi, de impulso, sem saber o porquê.

O que era animação virou silêncio e desconforto tanto para mim quanto para aquelas mulheres. A sensação de que eu deveria ter ficado calado era grande. Da parte delas, acho que reinava a desconfiança de que não se deveria falar com estranhos.

— Enfim, acho que é apenas a opinião de alguém que também está buscando respostas — conclui, na intenção de amenizar as sensações.

CONTINUA...

Anderson Julio Lobone
Enviado por Anderson Julio Lobone em 17/08/2023
Reeditado em 17/08/2023
Código do texto: T7863714
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